Capítulo 6

Dessa vez passou ilesa, por enquanto Agenor estava por perto, mas até quando? Se os cálculos estavam certos, existia uma grande possibilidade de seu protetor ser transferido, ou talvez até morto. Ivone ficaria sozinha, à disposição de Ludwig, para ele fazer o que bem entendesse com ela, e sob aval de Geraldo.

Ivone se levantou, pressionando a fisgada que incomodou a lombar; abandonou seus amigos cochichando conspirações no quarto e caminhou decidida até a outra ponta do salão, exatamente na primeira cadeira, onde Geraldo trabalhava curvado em frente ao notebook.

— Geraldo, será que eu poderia falar com meu filho agora? — disse ela bem baixinho, utilizando-se de toda a sua educação.

— Claro que pode — ele respondeu gentilmente, ainda fixo nas planilhas de Excel. — Vamos lá, vou pegar seu celular no armário. — Pôs-se em pé.

— Sério?! — Ivone franziu o cenho, estranhando a suposta facilidade.

— Sim, claro, venha comigo. Precisa de ajuda para caminhar? — disse ele, segurando as mãos atrás das costas e arqueando a monocelha.

— Não precisa. Obrigada.

— Bom, de qualquer forma, permita-me. — Com os dedos gordinhos de unhas roídas, ele pegou numa das mãos dela e a conduziu. Com o outro braço, envolveu-a por cima dos ombros. — Venha... devagar... sem pressa... Ah, e cuidado com o degrau, tá bom?

Chegaram ao quintal do asilo, passaram pelos vasos com plantações de pimenta vermelha, de coentro e de flores, até alcançarem o quartinho de limpeza nos fundos. As paredes eram sem acabamento e pintadas de branco com cal. Prateleiras de madeira empoeirada iam de cima a baixo na parede do fundo e da direita, enquanto que, do lado esquerdo, ficava o armário de metal, com dezenas de portinhas trancadas com cadeados. Etiquetas adesivas indicavam o nome do idoso ao qual o conteúdo de cada compartimento pertencia.

Geraldo retirou um molho de chaves chocalhantes de dentro do bolso do jaleco branco, remexeu-o e selecionou a chave mais nova. Enfiou no cadeado dourado, o qual bloqueava a portinha identificada com adesivo no nome de Ivone.

— Hum, deixa só eu achar aqui... — disse ele, revirando o armário preenchido com remédios de pressão, carteira de documentos, cartões e, finalmente, o bendito do celular.

"Que alívio, até que enfim uma notícia boa. Isso tudo vai acabar assim que Caíque conversar comigo", pensou Ivone, suspirando de alegria quando seu celular foi pescado do amontoado de bugigangas.

— Aqui está. Ainda tem bateria — Geraldo tocou na tela, que se acendeu, revelando a imagem de plano de fundo do aparelho de Ivone: era Caíque já no aeroporto da Inglaterra, exibindo a camiseta da seleção brasileira vestida por baixo de uma blusa de moletom, em um lindo tom verde-primavera.

Verde representava esperança.

Representava Caíque.

Geraldo digitou a senha de letras e números no celular:

— Vou conectar aqui, só um minutinho. — Ele clicou em conectar e deu umas cutucadas nas antenas do roteador, preso à parede junto do armário. — Prontinho. Você já sabe o que quer dizer pra ele?

— Quero só conversar com ele um pouco, matar a saudade, deixar o assunto fluir. Só isso — respondeu Ivone com um sorriso simpático.

De alguma forma, aquele comportamento exageradamente solícito de Geraldo estava começando a assustar. Ela viu como ele havia deixado o olho de Agenor, todo machucado. E quanto ao tio dele, então? Ele fazia vista grossa para as porquices de Ludwig. Ele não devia ser tão bonzinho assim. Não cheirava bem.

— Hum, então vamos lá. — Geraldo a encarava com olhos que piscavam numa frequência estranha, descompassada. — Funciona assim: eu aperto o botão do áudio e você fala. Depois que terminar, eu envio... ou não. Depende do que disser. Depois, eu fico monitorando seu aparelho. Quando tivermos a resposta por parte dele, eu te chamo pra você ouvir e mandar mais alguma coisa pra ele, se quiser, entendeu?

— Como assim? Eu gostaria de falar a sós com meu filho, você não poderia me dar uma licencinha?

— Hum, sinto muito. Schwartz's tem regras, regras bem calculadas. Essa, no caso, é para não acontecer de algum idoso acabar passando inverdades aos familiares. Sabe, muitos falam bobagens por estar com a mente confusa ou sob efeito de algum remédio e podem acabar tirando nossa credibilidade frente aos clientes, dizendo que sofrem maus-tratos ou coisas imaginárias.

— Eu... eu entendo. Juro que entendo. A dona Adelaide, por exemplo, se conversasse sozinha com a família dela, iria falar para virem ajudar ela a se livrar dos macacos e...

— Exatamente! Você deve ser a velha mais esperta deste lugar. Imagina só como explicaríamos isso pra família dela. De onde ela tirou essa fixação por macacos? — Ele encolheu os ombros.

— Sim, claro, mas comigo é diferente. Eu estou muito bem da cabeça e...

— Olha, Ivone — Geraldo irritou-se —, o que tem de tão importante pra você dizer que eu não possa ouvir, hein?! — Os seus óculos pularam para fora do rosto, ficando pendurados no pulso direito, onde tinha uma inscrição tatuada: Familie Über Alles. Ivone não sabia o significado, mas, se não estava ficando doida, viu a mesma inscrição no pulso de Ludwig e também no de Olivia. No mesmo pulso direito, mesma letra, mesma frase.

— Na... nada... Desculpe, Geraldo — Ivone balbuciou, espalmando as mãos para o rapaz.

— Melhor assim. Vou apertar o botão do áudio, então fale!

Ivone engoliu em seco:

— Tudo bem, tudo bem... É... Caíque... éééé... sou eu, Ivone, sua mãe... éééé... liga pra mim, estou com saudades. Você disse que ligaria quando tivesse novidades. Seu filho já deve ter nascido pelas minhas contas, você não me mandou nada. Ele ficou com preguiça de sair, foi? Dá trabalho mesmo, mas ele consegue... Brincadeiras à parte, fora isso, preciso muito falar com você, tá bom? Mamãe te ama, filho. — Ela acenou com a cabeça para Geraldo finalizar a mensagem.

— Pronto. Enviando agorinha — Geraldo sorriu. — Algo mais em que possa te ajudar? — Segurou as mãos em frente à barriga.

— Só uma dúvida: ele me mandou alguma coisa esses dias?

— Nadinha. A última... deixa eu ver... já faz exatos...

— Noventa e um dias — Ivone completou.

— Precisamente! Completaram noventa e um dias ontem mesmo. — Ele sorriu para ela.

— Obrigada...

— Disponha.

Ivone tomou seu rumo de volta ao quarto. Se demorasse mais um milésimo de segundo para se virar, não conseguiria esconder de Geraldo sua cara retorcida de amargura. Os músculos do rosto endureceram, e, cada vez que seu coração batia, sentia-o arder, como se bombeasse sangue dentro de uma caixa de pregos.

Apertou o centro do peito, enquanto a outra mão se agarrava à aspereza das paredes para manter o equilíbrio pelo caminho.

A vida toda Ivone pregou que as palavras machucavam, mas agora, aos setenta e poucos anos, aprendeu que o silêncio tinha muito mais poder de destruição. Assim ela se sentia por dentro: destruída.

— Aonde vai, vovozinha? — A piranha da Olivia a interceptou.

— O banheiro já desocupou? Vou tomar um banho. — Enxugou o rosto com as costas da mão.

— Sozinha? Agora quem te dá banho é o Ludwig, não se lembra?

— Vou sozinha. Não preciso de ajuda... saia da minha frente!

— Bom, muito bom. — As bochechas profundas de Olíviase riscaram, formando um parênteses em volta do sorriso forçado. — Se é suadecisão, vou comunicar meu sobrinho... depois só não diga que não avisei. — Piscou.

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