Capítulo 29

Sidney orava em pensamento. Para um homem de fé, nada acontecia sem a permissão de Deus. Se fosse sua hora de partir, partiria sem lutar mais. Ele e seus amigos chegaram aonde lhes foi permitido pelo divino, as forças haviam se esgotado. Fizeram o possível e o impossível para alguém da idade deles. As jogadas haviam acabado.

No centro do cômodo, Sidney foi conduzido a uma maca coberta com plástico, na qual se deitou. Suas mãos foram amarradas nas bordas com fitas de couro acolchoadas, não pretendiam marcar os pulsos do velho com feridas. Outra dessas tiras passava por cima de sua barriga, mantinha-o na posição deitado. E uma terceira cruzava as canelas, imobilizando as pernas.

No canto direito da sala, frente à mesa, Geraldo e Olivia reviravam papéis na gaveta do móvel, batiam os pés no chão, falavam em alemão com raiva, pareciam discutir e se xingar.

— Geraldão — disse Sidney —, pra que tudo isso, meu amigo? O que vai fazer?

Os irmãos continuaram de costas, concentrados em seus afazeres como se Sidney não estivesse ali. Conversaram mais um pouco. Então, por fim, Geraldo ergueu no ar um sulfite preenchido: a ficha cadastral que procuravam.

— Tava aqui, falei pra você. — Deu um tapa na testa de Olívia. — Passa o telefone pra mim. Vou falar com o vereador.

Olivia fez uma careta debochada, agarrou o telefone com uma mão e o largou nos braços do sobrinho. Geraldo discou os números. Enrolava o cabo nos dedos enquanto aguardava ser atendido.

— Boa noite, vereador... Isso mesmo, o parasita já está aqui. Te mandei o CPF por mensagem pra você fazer sua parte. Qual valor vamos dividir desse? ... Certo, esse é o total, mas quanto é a minha parte depois de abater os impostos?... Hein, essa é só a minha parte?! Caramba! Na próxima vida vou ser pastor também. Ha! ha! ha! ha! Ou vou ser vereador... Estou brincando... Ok. Combinado. Até a próxima. — Encaixou o telefone de volta ao gancho.

— Geraldão? — Sidney o chamou. — Vamos nos combinar aqui. Você pode ficar com meu cartão da aposentadoria com a senha, pode ficar com tudo. Não precisa fazer isso o que está pra fazer. Eu não conto pra ninguém.

— Sinto muito, pastor. — Geraldo se virou de frente para ele. — Não é só por causa do dinheiro.

— Poxa, me livra dessa, amigo. — Sidney começava a chorar.

— Você não é mais meu amigo. Você me enganou. É igual ao Agenor! Me chamou de cabação e quase tacou fogo em mim. Seu Ciclo do Esquecimento tinha se completado faz tempo. Eu é que estava te segurando, porque gostava de você. Agora que você quis virar amiguinho da Ivone e do Agenor, peguei raiva de você. Foi tudo culpa sua! Você só está aqui por culpa sua.

Por um momento, Sidney tentou imaginar como teria sido se não houvesse planejado tudo aquilo. Como seria se tivesse ficado quietinho no canto dele? Morreria de velhice em paz? Por que Deus não quis assim?

Por outro lado, como seria viver essa vida aparentemente maravilhosa, com a consciência o acusando dia e noite? Como seria assistir a seus amigos partirem? Como seria ver seu amor ser levado para outro lugar, sabendo se tratar da própria morte?

— Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte... — orou — Não temeria mal algum... — Lambeu os lábios, salgados pelo suor frio que escorria de seu buço. Torcendo o pescoço, encostou o queixo no ombro. Assim pôde ver Geraldo rindo e balançando a cabeça.

— Acha graça na Palavra do Senhor? Cuidado, ateu. Não dê risada do que não conhece. Deus pode pesar a mão em você agora mesmo se Ele quiser. Te fazer pagar pelos seus pecados, seu pecador!

— Meus pecados, é? Ha! ha! ha! Se acha mais santo do que eu? Se acha mais conhecedor do que eu?

Sidney franziu o cenho. Do que diabos ele estava falando, afinal?

— E como poderia conhecer, se não age como Cristo? Se deixa o bicho tomar seu corpo?

— Oras, simples. — Ele abriu a segunda gaveta e pinçou de lá um pequeno envelope plástico. Sem desviar o olhar de Sidney, entregou-o para Olivia. — Você é muito preconceituoso, pastor! Tem sua própria hierarquia de pecados e ainda pensa que sua opinião é a opinião de Deus.

— Não tem essa de opinião, é Bíblia! — enquanto falava com Geraldo, observou como o semblante de Olivia expressava uma gratidão doentia ao receber a substância, seus olhos brilhavam como das crianças ganhando doce.

— Bíblia. Isso mesmo. Tá aí um assunto do qual nunca conversamos, hein, pastor... Bom, então vamos falar da Bíblia. Sabe minha passagem favorita, meu amigo?

— Q... Qual? — balbuciou Sidney.

— Adoro a história do rei Davi. Não aquela baboseira sobre o menininho que mata o gigante nem nada disso. Gosto do reinado dele. Sabe — massageou o queixo —, ele tinha uma esposa, o nome dela era Bate alguma coisa...

— Bate-Seba. — Sidney tossiu.

— Exato! Mas, quando Davi conheceu essa mulher, ela estava casada, não era isso?

— Aonde quer chegar?

— Bom, e o pior: era casada com um amigo dele, um amigo que, como diz lá no livro de Samuel, daria a vida pelo rei. Mesmo assim, o rei Davi quis a mulher do amigo. Safadão ele, não acha?

— Não sei, Geraldo, não sei. — Sidney ofegava, o cômodo não tinha janelas, e essa conversa começava a fazer sua cabeça doer.

Geraldo deu um passo em direção à maca:

— Mas Davi não era só safado, ele também era um gênio! Não iria sujar suas mãos com o sangue do próprio amigo. Então o que ele fez?

— Pode me dar minha bombinha, por favor?

— O que ele fez?! — Geraldo gritou, chegando ainda mais perto de Sidney.

— Socorro... — O respirar do idoso produzia um assobio, puxava o ar pela boca com força, no entanto não conseguia tragar o suficiente.

— Ele teve a ideia mais cruel de todas! — Agarrou a cabeça de Sidney pelas orelhas, colando-a testa a testa com a dele. — Em primeira Samuel, lemos que Davi fez um plano, ele alocou o fiel amigo na primeira fila de uma batalha, para que morresse. E assim... O gran finalle... Ele pôde ficar com a mulher do amigo para si! Meu Deus, como alguém assim pode se dizer conhecedor da Palavra de Deus, consegue imaginar, pastor Sidney? — gritou, expelindo cuspe no rosto do velho. — Você, pastor, tinha o melhor tratamento desse asilo. Tinha o melhor quarto, os melhores colchões, tinha quantas sobremesas quisesse, tinha isenção do Ciclo do Esquecimento. Resumindo: tinha uma vida de rei... De rei Davi.

O rosto de Sidney se contorceu, numa mistura indissolúvel de ódio com amargura. Engoliu em seco:

— Não! Por favor, meu Deus, me perdoe. Eu sou um lixo, não sou digno de ser seu servo... — As lágrimas escorriam abundantes, de modo a encharcar as mangas do jaleco de Geraldo, o qual mantinha os dedos lhe espremendo as bochechas.

— Sabe o mais interessante, pastor? — Geraldo baixou o tom de voz. — Olha como a Bíblia traz todas as respostas: Davi matava seus inimigos na espadada, assassinava aqueles que atrapalhavam seu povo. Matou centenas, talvez milhares com seu exército. Porém, nunca foi castigado por isso. Muito pelo contrário, esse era o plano de Deus para a vida dele, era a missão dele de limpar os impuros da terra. Agora, quando ele traiu o amigo para abocanhar a mulher do cara... Huummm... Aí complicou pra ele... Aí sim ele foi castigado. Se não fosse o sacerdote Samuel para clamar a Deus, Davi teria morrido. — Soltou a cabeça de Sidney de volta ao encosto da maca, recuando um passo em seguida. — Então me diz, qual de nós dois é o tão terrível pecador aos olhos de Deus no final das contas? — Deu de ombros.

Atrás deles, Olivia, alheia à conversa, sentava-se de costas. Cheia de apetite, distribuía uma pequena porção da substância do envelope plástico sobre a mesa de escritório. Dispôs, em uma fileira de não mais que dois dedos, uma pequena dose do pó branco, a tal caspa do diabo.

Olivia se debruçou sobre a carreira de droga e aspirou com vontade narinas adentro.

— Uhuuu! — gritou ela, sacudindo a cabeleira para trás. — A outra fileira é sua, Gê.

— Não posso, tia. — Ele deu um sorriso para ela. — Quebraram meu nariz. Vou precisar fazer essa Transferência sóbrio mesmo. — Retornou a Sidney. — E vou fazer agora. Ninguém vai te livrar, pastor. Seus pecados foram terríveis. Não há perdão para você!

— Por favor...

— Quer sortear seu último versículo, como gosta de fazer todos os dias? — disse Olivia, ao girar a cadeira, com uma gargalhada escandalosa e soluçante intercalando suas palavras.

— Não... — respondeu o velho, carregado de amargura. — Eu já sei qual iria sair.

— Olha só. — Ela coçou o nariz avermelhado. — Conta pra gente então, podemos colocar ele na sua lápide se quiser.

— Mateus, capítulo vinte e sete, versículo quarenta e seis. Agora acabem logo com isso! — Fechou vagarosamente os olhos, com Geraldo prestes a vestir a sacola amarela novamente em sua cabeça.

Oterror estremecia-lhe o corpo, enrijecia todos os músculos, e a urina quente seespalhava pelas calças.

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