C : 35
Não há ideia nem fato que não possam ser vulgarizados e apresentados a uma luz ridícula.
— Fiodor Dostoievski.
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JÉSSIKA VELARK
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Passamos a tarde com meus pais, me mantive um pouco apreensiva e a cada pergunta feita por meu pai, sentia um leve arrepio na espinha. Ele por outro lado. respondia tais perguntas sem pestanejar, antes de irmos, avisei sobre o que ele não poderia dizer, com isso, outros questionamento, tive calma em sanar tais dúvidas, com cautela para que não ocasione alguma dor — suas feições se alternam num misto de curiosidade e lamento.
A manhã havia sido estranha, desperto antes do sol nascer, deixei-o dormindo e segui para meu antigo quarto, onde tomei um banho longo e me vesti, perdida em meus devaneios, volto a realidade com a voz suave e amável de minha mãe.
— Filha? — tocou meu ombro esquerdo suavemente.
— Sim? — olho para minhas mãos e percebo o pano de prato ali, respiro fundo e sorrio.
— Você está bem? — seu olhar denunciava a preocupação que sentia.
— Sim, está tudo ótimo — pego um prato já lavado e começo a secar, torcendo para que ela não fizesse perguntas que me levariam ao desconforto e possivelmente a uma resposta que não deveria dizer.
— Sebastian parece bem melhor — comenta. — Ainda está conversando com seu pai. Nem parece o homem fechado e inexpressivo que esteve aqui pela primeira vez.
— Os momentos foram difíceis, mas ele está lidando bem, irá se recuperar totalmente em breve — não a encaro, sei que mesmo que eu tente omitir, ela sabe que tem algo errado, e mesmo assim permite que eu me mantenha nessa onda de omissões.
Termino de guardar a louça e me sento na cadeira, olhando cada centímetro da cozinha, absorvendo o conforto que me acompanhou por tantos anos, e agora, parece mais um lugar que eu não era mais digna.
Consigo ouvir atentamente as vozes distintas vindo da sala, a casa era pequena, portanto, era fácil ouvir, ao menos um pouco. O cheiro do café preencheu o ambiente, fico girando o anel em meu anelar direito, que havia sido substituído pela aliança de casamento que joguei fora.
— Você e Sebastian são apenas amigos? — minha mãe pergunta após longos minutos quieta.
— Sim — minto, mais uma vez.
Marta serviu uma xícara e me entregou, afagando meus cabelos como sempre fazia para me confortar, inalo o aroma gostoso do líquido escuro e fumegante, tomo um gole pequeno e tento relaxar, estava tensa desde que chegamos aqui.
— Vejo o jeito que ele te olha — diz, com um sorriso pequeno e olhos atentos. — Sei que tem algo que não vai me contar — segura minha mão, olhando para o anel antes de olhar fixamente para mim. — Você é uma mulher determinada, corajosa e incrível. Tenho muito orgulho da mulher que se tornou, querida — meus olhos marejam de imediato, seguro a vontade irrefreável de chorar. — O que passou e está passando, vai conseguir superar — apertou sutilmente minha mão. — Que Deus esteja sempre com você, cuidando para que mal algum lhe afete, mas que te ensine o que com certeza já deve estar aprendendo.
Engulo em seco e assinto, a vejo pegar a bandeja já posta, me levanto para acompanhá-la de volta a sala. Sebastian sorri ao me ver, faço o mesmo e me sento ao seu lado, o café foi servido e ao que parece, o conforto finalmente havia sido estabelecido, o que não demorou muito já que meu pai me olhava de uma forma severa, de pronto ajeito a postura e tremo ao segurar a xícara.
Isso não era bom.
— Jéssika! — a voz estrondosa e rouca do meu pai soa, me levando a quase suar frio. — Seu aniversário está chegando, irá almoçar conosco? — graças a Deus era só isso.
— Sim, virei.
— Ótimo. Os pais de Hector querem vê-la também, posso convidá-los? — por pouco não me engasgo com o café, procuro manter a expressão serena, pois se minha mãe desconfia, meu pai certamente ficará caso note alguma coisa que passe despercebido aos meus olhos.
— Acho ótimo, pai. Pode chamá-los.
Deixo a xícara na bandeja, aguardo impacientemente Sebastian terminar, e de praxe elogiar o café, nos despedimos sem muita cerimônia, meus pais protestaram um pouco, todavia, Velark informou que tinhamos planos mais tarde e que tinha que descansar, portanto seguimos até o carro, aceno para ambos que olhavam para nós, assumo o lado do motorista, por ordens médicas, ele não podia dirigir. Buzino duas vezes em despedida e deixo o acostamento.
Não falamos nada durante todo o percurso, minhas mãos suavam no volante enquanto meu coração batia rápido. Ao chegarmos, desço primeiro, entregando a chave ao motorista, dou a volta e entro, sendo recebida pelo cheiro gostoso de produtos de limpeza.
— Jéssika? — a voz firme quase autoritária soa atrás de mim, sem vontade alguma me viro e analiso seu rosto e por fim a imensidão dos lumes azuis. — Está acuada, o que aconteceu?
— Nada, está tudo bem.
— Certeza? — questiona, puxando-me pela cintura, sua destra acariciando meu rosto. — Se não estiver se sentindo bem, posso remarcar nosso compromisso.
— Sim, tenho certeza.
— Perfeito — o sorriso largo enfeitou seu rosto bonito, e isso me trouxe certa culpa, mas se estava feliz, então estava tudo bem — Vou resolver algumas coisas.
— Se sente bem para isso?
— Sim, estou ótimo — depositou um selar em meus lábios e se afastou.
Antes de subir as escadas, Grace aparece, impecável em seu terno, o rosto sereno e um olhar acolhedor.
— Senhora, Velark.
— Pode me chamar de Jéssika — corrijo.
— Não é adequado. A senhora tem visita.
— Quem?
— Kenji Nakamura está na biblioteca, chegou meia hora atrás — informa.
— Obrigada, irei falar com ele.
— Quer que eu prepare algo?
— Não será necessário — sorrio.
Me afasto e sigo rapidamente, precisava vê-lo, saber como ele estava e o que havia acontecido para Sebastian tê-lo mandado para tão longe, isso se fosse realmente verdade. Respiro fundo diante as portas duplas de madeira pesada, abro ansiosa e o vejo de costas para mim, com um livro em mãos.
— Kenji? — o chamo receosa, o mesmo se vira e respiro aliviada por estar bem e intacto.
— Senhora — faz uma reverência que imagino ser devido a sua cultura.
— Como você está?
— Acho que essa não é a pergunta que quer fazer — alargou o sorriso, vejo as covinhas marcarem suas bochechas.
— Certo, então me diga — me sento na poltrona.
— Antes, fui informado sobre o estado atual dele — comenta. — Parece exausta, mas consigo perceber que não sente mais medo e parece confortável aqui.
Sinto-me desconfortável pela verdade soar através de quem não imaginaria que estaria aqui, entrelacei as mãos no colo e assinto.
— É. Muita coisa aconteceu.
— Pensou que eu estivesse morto?
— Sim, pensei. Estava mesmo em uma filial no Japão?
— Sim. Na verdade, eu pedi a ele para ir — isso me pegou de surpresa.
— Por que?
Kenji ponderou responder, no entanto, os lumes negros me observam com cautela, os lábios levemente fartos estavam ressecados e pressionados em uma linha fina, espero pacientemente.
— Porque algo aconteceu e eu não pude ficar.
— Me fala o que houve?
— Não é relevante — crispa os lábios. — O que importa é que estou de volta, certo?
— Acho que sim, obrigada por voltar — agradeço, ignorando totalmente algum sinal em sua resposta que não soou convincente.
— De nada, tenha uma boa tarde, senhora.
Não contesto quando me deixa sozinha, reflito sobre a conversa rápida e retorno para o quarto, onde a banheira já preparada me espera, o cheiro de rosas toma todo o anexo, me apresso em tirar as roupas e entrar, soltando um gemido de satisfação pelo calor agradável acolhendo meu corpo, dissipando a tensão quase instantaneamente.
Ouço a porta do quarto ser aberta, passos se aproximam e logo pude vê-lo, encostado no batente da porta, cruzou os braços e ficou me observando por alguns segundos.
— Gostou? Pedi que preparassem para você.
— Amei, obrigada — sorri. — Onde esteve?
— No escritório, parei um pouco devido a dor de cabeça — me preocupo e ele percebe. — Não precisa sair daí, estou bem. Posso te acompanhar?
— C-claro — gaguejo, nervosa.
Não desvio meu olhar, era sempre incrível vê-lo se despindo, o corpo retornava aos poucos ao que era antes de ficar doente, por vezes o via correndo pela propriedade, fazendo exercícios na academia — usando apenas a cueca boxer azul escuro, dei-lhe espaço para entrar, o mesmo optou por ficar atrás de mim, se ajeitou o máximo que a banheira permitia e me puxou, minhas costas se acomodam ao seu peitoral, seus braços me envolvem e assim ficamos quietos, aproveitando o silêncio confortável.
— Quer me contar o que tanto te incomodou para termos de voltar para casa? — perguntou, acariciando meu braço esquerdo.
— Não, quer dizer, não era nada, apenas quis voltar — reformulo.
— Certo, então posso perguntar quem é Hector?
Me afasto um pouco, virando para fitar seus olhos, ainda me confundia com o fato dele ainda continuar desmemoriado, por vezes era assustador, era totalmente diferente do homem que fui forçada a conhecer e conviver.
— São os pais do meu ex namorado.
— Por que eles precisam ir ao almoço do seu aniversário?
— Porque Hector morreu — não consigo manter o tom de voz agradável ao responder.
— Perdoe-me, não sabia. Sinto muito por sua perda — diz sincero, as íris azuis ficando um pouco mais escuras devido ao arrependimento.
— Tudo bem — dou o assunto por encerrado.
— Tive meus propósitos para acompanhá-la nessa banheira, porém não há clima para isso — levantou, a água quente escorrendo por seu corpo digno de um deus. — Deixarei que termine, mais uma vez peço desculpas pelas perguntas feitas.
— Sebastian? — ele tampouco responde, simplesmente deixa o anexo.
Me lavo lentamente, buscando dissipar o medo, a ansiedade me forçando a pensar que o verdadeiro eu dele retornara, que ele apenas me sondava, penso que se realmente fosse ele, não haveria pedidos de desculpas ou perguntas como aquelas, sei bem que ele sabia de tudo, e essa sua versão não tinha conhecimento sobre nada. Termino o banho, envolvo a toalha ao redor do corpo e vou para o quarto, havia duas sacolas com a logo da Bottega Veneta, e outra com a logo da Louboutin.
Pego a caixa da primeira sacola, removo a tampa e me deparo com um lindo vestido longo, de um ombro só, o tecido era grosso, porém belíssimo, com uma fenda enorme do lado direito, para expor totalmente minha perna — a outra era uma sandália linda, preta de verniz, destacando no vermelho sangue no solado.
Deixei tudo organizado para me arrumar mais tarde, visto roupas confortáveis, estava faminta, opto por ir a cozinha, ver o que seria de almoço, no corredor paro devido a um barulho alto vindo do escritório, corro até lá, empurro a porta entreaberta e me deparo com Velark ofegante, as mãos apoiadas na mesa de vidro e o olhar um pouco perdido.
— Você está bem?
— Sim, foi só uma tontura, cuidado para não se cortar — me afasto e analiso a jarra de água estilhaçada.
— Vou pedir para limparem isso, venha, precisa comer e tomar remédio — informo.
Deixamos o local e seguimos para a área inferior, a mesa já estava posta, faço um sinal para que se sente enquanto peço para limparem o escritório, ao retornar me sento, estava sem fome alguma, mas me forcei a comer ao menos um pouco. Ele não estava bem, e mesmo que eu tente pedir para cancelar o nosso encontro, sei que não permitiria, estava ansioso e era bem perceptível.
— Obrigada pelos presentes, eu amei — agradeço.
— Ficará linda, mal posso esperar para vê-la naquele vestido — sorri.
[...]
Às seis e meia estava diante ao espelho de corpo inteiro, admirando o quão bem o vestido tinha ficado, marcando as curvas, mesmo magra, meu corpo continuava bonito. A sandália combinou perfeitamente bem, o salto quinze centímetros me deixou elegante — a maquiagem fiz leve nos olhos e finalizei com um batom vermelho matte, deixei meus cabelos presos em um coque perfeito.
Antes de sair, passei um dos perfumes franceses que ele havia comprado para mim, tomei a liberdade de não usar brincos ou colar, apenas o anel de casamento estava ótimo, combinava com a cor rubra das unhas bem feitas. Desci as escadas com cuidado, a voz inconfundível de Michael Bublé vinha da sala, então segui até lá, capturando a silhueta de Sebastian, de costas, trajado em um lindo terno escuro, ao me ouvir se virou, portando na destra um copo de uísque.
— Você está maravilhosa — elogiou orgulhoso, vindo até mim. — Amo esse perfume.
— Obrigada, também está lindo — e era verdade. — Não deveria estar bebendo — digo, tomando o copo de sua mão.
— Hoje é um dia especial, vou levar a mulher mais linda para um encontro — sorri, puxando-me pela cintura. — Dance comigo?
— Claro.
O mesmo me guia em uma dança lenta, sinto o cheiro delicioso que emana de si, era inebriante e quente, a música nos envolvia totalmente, me olhando do jeito que minha mãe tinha dito mais cedo, era um olhar que combinava com ele, porém me deixava preocupada.
Velark me gira e me traz de volta para si, e nisso me permito desfrutar do momento em que estamos.
Put your head on my shoulder
Whisper in my ear, baby
Words I want to hear, tell me
Tell me that you love me too
Coloque sua cabeça em meu ombro
Sussurre em meu ouvido, amor
Palavras que eu quero ouvir, me diga.
Me diga que me ama também.
Me atento a letra da música e o modo apaixonado com que ele dança comigo, respiro fundo para evitar chorar, pois nada daquilo era real, aquilo não era ele, poderia ter sido, mas não era. Ao termino da música, Velark me inclina um pouco antes de me dar um beijo rápido.
— Vamos? Temos uma programação a cumprir — diz sorridente e animado.
— Vamos.
Sebastian segurou minha mão e me conduziu para fora da mansão, onde o carro já nos aguardava, fui a primeira a entrar e pude ver Kenji ao volante, logo o vejo se acomodar ao meu lado, prontos para ir.
Nossa noite estava começando bem, mas vale ressaltar que a sensação que estou sentindo não é nada convidativo.
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