Capítulo 31
Victor acordou com um raio de sol irritante, incidindo sobre seus olhos. Ele gemeu e se virou tentando achar uma posição confortável, longe da luz irritante, mas seus ouvidos captaram o som de vozes baixas e isso foi o suficiente para acordar seu cérebro, lembrando-o de que ele não estava em casa. Espreguiçando-se sobre o colchão, o rapaz alcançou o celular que havia deixado no chão ao seu lado. Eram quase 10:30.
Ele se perguntou vagamente como podia não ter acordado com o alarme que Rafael havia definido na madrugada anterior, mas não se debruçou muito sobre isso sabendo que nunca teve o sono mais leve. As vozes que o acordaram ficaram mais altas e Victor teve certeza de que ouviu Rafael rindo.
Se arrastando para fora do colchão, Victor foi até o banheiro lavar o rosto e escovar os dentes. Ele estava em dúvida se deveria sair da sala das máquinas ou não, sem ter certeza de quem estava falando com Rafael ou se a pessoa já sabia de sua presença ali.
Depois de terminar no banheiro, o rapaz se aproximou da porta que dava para a recepção tentando ouvir o que estava sendo dito, mas as vozes estavam baixas de novo. Ele tentou olhar pela fechadura, mas pelo ângulo não era possível ver ninguém.
Ele estava se afastando da porta quando sentiu um espirro chegando, apesar de suas tentativas de se conter, o rapaz acabou espirrando em alto e bom som e, um segundo depois, foi respondido com um "Saúde" vindo da recepção.
Victor ficou um tanto aliviado ao reconhecer a voz de Anelise e se arriscou a responder com um "obrigado" antes de tomar coragem suficiente para abrir a porta. Se era a melhor amiga de Rafael que estava ali, não havia como ela não saber que ele tinha passado a noite.
Sua suposição foi confirmada quando viu a ruiva sentada sobre o balcão. Ela sorriu largamente, com um brilho travesso nos olhos quando ele passou pela porta.
— Olá – Ela cumprimentou – Dormiu bem?
Victor sentiu seu rosto esquentar com a pergunta, mas foi salvo de responder quando Rafael deu um tapa no braço da amiga.
— Não enche ele, Ane – O moreno repreendeu, mas no momento em que seus olhos encontraram os de Victor, seu rosto ficou vermelho e ele desviou o olhar.
— Vocês são fofos – Todos olharam para entrada e viram Bianca entrar seguida de perto por Pedro, cada um segurando duas latas de coca.
— Cala a boca – Rafael resmungou ficando ainda mais vermelho enquanto um tom de rosa começava a ficar visível mesmo na pele escura de Victor. Ele se arrependeu de sair da sala das máquinas, é claro que devia ter imaginado que se Anelise estava lá, os outros dois não podiam estar muito longe.
— Tudo bem, tudo bem, já parei – Bianca se aproximou e entregou uma das latas que segurava para Rafael, enquanto Pedro entregava uma das dele para Ane. – Desculpa não ter pegado uma para você – A garota se dirigiu a Victor – A gente não sabia que você estava aqui.
— Ele dormiu aqui – Informou Ane, sem conseguir se conter. Não era como se fosse um segredo, já que Rafael tinha contado mais cedo no grupo deles, mas os irmãos aparentemente ainda não tinham visto. – E ele também já sabe sobre o carnaval das bruxas.
— Isso é sério? – Bianca bateu palmas animadas olhando de um para outro até que Victor confirmou com a cabeça. – Finalmente.
— Legal – Pedro sorriu, tentando não parecer empolgado demais como as meninas – E agora? Vocês estão, tipo, namorando?
Dessa vez Rafael e Victor se entreolharam. Eles não haviam definido uma palavra para o relacionamento e agora não sabiam como responder a pergunta com medo de que o outro não estivesse na mesma página.
— Acho que já é hora da gente ir – Ane saltou do balcão, percebendo que a pergunta havia causado um desconforto real em seu amigo.
— Sim, sim – Concordou Pedro entendendo a dica. – A gente só veio te chamar pra almoçar lá em casa, mas acho que vocês têm outros planos para o dia – Ele balançou as sobrancelhas.
— Mas se vocês não tiverem, são bem vindos pro almoço. – Bianca acrescentou – Os dois.
Os rapazes olharam um para o outro novamente, mas dessa vez Rafael conseguiu decifrar melhor a expressão no rosto do outro que parecia dizer claramente: "Me salve, por favor".
— Nós... Hmm... Ainda temos algumas coisas do trabalho para resolver – O moreno disse sem ser muito convincente.
— Trabalho? É assim que vocês, jovens, chamam isso hoje em dia? – Brincou Pedro e foi compensado com um peteleco na têmpora vindo de Rafael – Ai.
— Talvez você devesse fazer o seu "trabalho" e deixar o meu em paz – Ele respondeu em tom de brincadeira.
— Infelizmente o único "trabalho" para qual eu tenho parceira é o de sociologia – O loiro respondeu com um suspiro cansado – E desde que a gente terminou, a Flávia tá mais interessada em comer meu fígado do que com os filmes e séries que eu gosto de assistir.
— Os dramas com a sua ex são fascinantes – Anelise deu um tapinha nas costas de Pedro – Mas acho que esses dois não querem ouvir você reclamar da Regina George de Taubaté.
— O que, agora eu não tenho nem direito de reclamar da minha ex insuportável?
— Você não estava reclamando quando tava se pegando com ela em todo canto – Anelise fez uma careta de desgosto, como se a lembrança fosse repulsiva
— Sim, porque na época ela não era minha ex – O loiro respondeu defensivo.
— Mas já era bastante insuportável – Opinou Rafael, aliviado por seu status de relacionamento com Victor não ser mais o centro das atenções.
— Com certeza – Bianca entrou na conversa enquanto Ane concordava com a cabeça.
— Até você? – Pedro lançou um olhar traído para Rafael que deu de ombros e então se voltou para Ane – E por que você não está reclamando? A cria do Mathias não pode ser um parceiro de trabalho muito melhor – Apesar do tom leve, era fácil de identificar certa preocupação na voz do rapaz.
— Ele está bem na verdade – A ruiva deu de ombros – Desde a coisa das fotos ele tem se comportado melhor. Até pediu desculpas e me trouxe flores. – Ela não pôde deixar de se sentir um pouco deslumbrada com a última parte. Bruno não era de forma nenhuma sua pessoa favorita, mas receber flores sempre foi algo que ela sempre relacionou a romances de de TV, ou pelo menos ao tipo de namoro que acontecia na vida de mulheres bonitas, como Flávia. – Ele está sendo bem simpático agora, acredita?
Victor não sabia quem era a dupla de Ane, mas pelos olhares surpresos no rosto dos outros três amigos podia dizer que não era alguém que esperassem que pedisse desculpas.
— Na verdade não acredito – Pedro franziu a testa – Ele deve estar armando alguma coisa.
— Armando o que? – Ane bufou – Isso é vida real, não uma fanfic ruim do Wattpad e, sincero ou não, ele está sendo legal.
— Eu não gosto dele – O loiro fechou ainda mais a cara
— Claro, porque eu amo a Flávia – A ruiva atirou de volta, percebendo tarde demais que a resposta não tinha nenhum contexto com o rumo que a conversa tinha tomado.
— Não estamos falando da Flávia – Apesar de apontar o óbvio, ainda havia algo de defensivo no tom do rapaz – Estamos falando do Bruno...
O som de risadas abafadas atraiu a atenção de Pedro e tanto ele, quanto Ane e Bianca olharam na direção de Victor que por algum motivo tentava abafar o riso cobrindo a boca com as mãos. Rafael, ao seu lado, apenas trocou um olhar com o rapaz antes de começar a rir também, entendendo imediatamente qual era a piada.
— O que deu em vocês dois? – Bianca foi a primeira a perguntar. Ela estava distraída demais com o novo capítulo da novela de Pedro e Anelise para prestar atenção no outro casal.
— Nada – Victor que parecia ter se acalmado o suficiente para parecer sério.
— É só... Nós... – Rafael riu mais um pouco antes de se recompor – Nós não falamos do Bruno – Ele olhou para Victor e os dois voltaram a rir, embora o riso dessa vez fosse mais contido.
— Meu Deus, eu tô cercada de gente doida – Bianca balançou a cabeça olhando de um para outro dos garotos sem entender. Ela então bebeu o resto da sua coca em um único gole, jogou a lata na lixeira perto do balcão.
— Eu não entendi? – Pedro olhou incerto para Ane, tentando descobrir o que havia para rir. Claro que ele achava que Bruno era uma piada (Principalmente depois que foi colocado em uma dupla com Ane), mas não era o tipo de piada engraçada e sim o tipo de piada triste que são todos os idiotas do ensino médio.
— Eu também não – Ane deu de ombros – E para ser franca não sei se quero. De piadas ruins já bastam as suas.
— Ei – Pedro e Rafael protestaram ao mesmo tempo e o loiro continuou – Minhas piadas são ótimas. Aliás, você sabe qual a banda de metal sinfônico mais foda que existe?
Ane realmente levantou a sobrancelha com o tema incomum de qualquer que fosse a piada. Dos quatro amigos, ela era a única que curtia gêneros de música mais extravagantes como ópera italiana e metal sinfônico. A ruiva não conseguia ver de onde Pedro tinha tirado uma piada sobre isso.
— Qual ? – Ela perguntou desconfiada, sendo uma das poucas vezes que estava interessada na resposta.
— É pica – O loiro respondeu com um sorriso pequeno e um ar de expectativa quase infantil. Ane o encarou por um momento tentando parecer séria, mas desistiu e começou a rir fazendo o sorriso do rapaz se alargar.
— Ele passou horas pesquisando as músicas que a Ane ouve pra fazer essa piada idiota – Bianca murmurou com o canto da boca, baixo o suficiente para que apenas Rafael e Victor ouvissem.
— Por que esses dois não estão juntos? – Victor perguntou no mesmo tom baixo, um tanto quanto frustrado pelo casal. Ele não podia imaginar como aqueles dois podiam não estar juntos quando estavam obviamente apaixonados desde sei lá... Sempre.
— Porque são idiotas – Bianca declarou sem se importar com a natureza retórica da pergunta.
— Eles só são ruins em interpretar sinais – Rafael tentou defender.
— Não. – Bianca balançou a cabeça – Vocês são ruins em interpretar sinais – Ela ignorou a expressão ofendida em seus rostos e acrescentou – Aqueles dois estão ignorando um semáforo decorado com LED e placas de aviso.
— Onde? – Pedro olhou ao redor parecendo procurar algo.
— O que? – Bianca perguntou fingindo que não sabia do que ele estava falando.
— A placa com LED – Ele olhou ansiosamente para fora da lavanderia se esforçando para ver a dita placa – Eu não estou vendo.
— É – Bianca lançou um olhar para Rafael e Victor que era claramente um "eu não disse?" e então se voltou para o irmão e acrescentou – Eu sei que você não está vendo.
Os três amigos ficaram apenas mais alguns minutos antes de saírem. Bianca quase arrastando os outros dois e reclamando que iam acabar perdendo o ônibus. Finalmente sozinhos, Victor e Rafael começaram a se entreolhar, ambos se sentindo um pouco tímidos sem saber como voltar ao grau de intimidade que estavam na noite anterior.
— Seus amigos são meio loucos – Comentou Victor depois de um tempo. O comentário recebeu uma carranca de Rafael, mas esta se desfez e se transformou em um sorriso quando percebeu que não havia julgamento no rosto de Victor, apenas um pouco de diversão.
— Você andou com a gente nas últimas semanas – Retrucou Rafael ainda sorrindo – Como só percebeu isso agora?
— Estava distraído – Ele fez um gesto exagerado na direção do moreno indicando que ele era a distração.
— Eu achei que você estava interessado no Alec – Rafael fingiu estar ofendido.
— Eu estava. Estou. Mas tenho olhos e outras partes do corpo que se interessaram muito por você, mesmo quando eu achava que você era um babaca.
A confissão saiu fácil, como um comentário sobre o tempo, mas o rosto de Rafael enrubesceu quase imediatamente ao ouvi-lo. Não que ele tivesse muitos problemas com seu corpo, mas não esperava que alguém como Victor pudesse "se distrair" com alguém tão pálido e magrelo quanto ele.
— Acho fofo o jeito que você fica vermelho por qualquer coisa – Victor provocou sem se conter.
— Não é por qualquer coisa – O moreno murmurou ainda envergonhado – Você é quem diz essas coisas com duplo sentido e...
— Eu? – Victor ergueu as sobrancelhas – Foi você que veio com a coisa de usar melhor a boca, não que eu me arrependa a propósito.
— Isso foi... Foi... – Rafael sentiu seu rosto esquentar outra vez – Eu não queria...
Victor colocou um dedo em seus lábios para cala-lo e se aproximou, invadindo seu espaço pessoal. Rafael parou de falar imediatamente, hipnotizado pela proximidade e pelos olhos escuros do outro rapaz. O dedo se afastou de sua boca e deu lugar a outra boca. Seus lábios se tocaram primeiro um pouco tímidos, mas rapidamente recuperaram a familiaridade da noite anterior.
— Eu disse que não me arrependia – Victor sorriu quando suas bocas se afastaram. Rafael ficou em silêncio ainda envolvido pelo beijo e por todas as perguntas que ele trazia, o sorriso de Victor se apagou ao perceber a expressão incomodada em seu rosto – Eu fiz alguma coisa errada?
— O que? Não! – O moreno foi rápido em dizer, se afastando dos próprios pensamentos – Só estou pensando – Victor olhou para ele esperando que continuasse, Rafael não sabia como verbalizar - Tipo, o que a gente é?
Victor sentiu sua boca ficar seca com a pergunta, Rafael estava questionando a própria sexualidade agora? Isso simplesmente não fazia sentido.
— Isso pareceu errado – Rafael franziu a testa para as próprias palavras – Eu sei o que a gente é. Mas o que a gente é? Sabe, um para o outro?
Victor sorriu se sentindo aliviado em saber que essa era a preocupação do moreno. Ele se aproximou, invadindo o espaço pessoal de Rafael outra vez, mas em vez de roubar um beijo, optou por segurar suas mãos.
— Alec – Ele fez questão de olhar no fundo dos olhos do moreno enquanto falava. – Rafael, ou qualquer outro nome que você tenha em qualquer outro lugar, você quer namorar comigo?
Rafael olhou para Victor um pouco desconfiado, como se esperasse uma piada ou algo do tipo. Quando percebeu a sinceridade em seus olhos ofegou, todas as palavras sumiram de sua mente ao mesmo tempo que queria desesperadamente dizer sim.
Sem a ajuda das palavras, tudo o que pôde fazer foi se aproximar, se erguer nas pontas dos pés e bater seus lábios contra os de Victor com um pouco mais de força do que pretendia. O beijo foi curto, mas Rafael estava ofegante ao final enquanto Victor sorria com uma pequena mancha de sangue no lábio partido.
— Acho que isso foi um sim, então? – Brincou o negro enquanto limpava o sangue dos lábios.
— Sim – Rafael ofegou – Sim.
— Ótimo, então por que você não fecha a lavanderia um pouco mais cedo hoje?
Rafael olhou para o relógio na parede que marcava 11:25. Não era uma diferença muito grande de horário para fechar.
— Por quê? – Rafael perguntou parecendo tão nervoso quanto se sentia. Ele não queria perder o namorado que tinha acabado de conseguir, mas o medo de que Victor quisesse avançar muito rápido ainda o incomodava no fundo.
— Eu quero levar meu namorado para tomar sorvete – Victor sorriu para expressão genuinamente surpresa do outro rapaz.
— Isso é tão brega – Rafael balançou a cabeça, mas o sorriso largo em seu rosto desmentia a exasperação.
— Não finja que não gostou da ideia – Victor provocou.
— Eu não disse isso.
— E então? – Victor ergueu as sobrancelhas esperando uma resposta.
Rafael se colocou nas pontas dos pés e deu outro beijo nos lábios do negro antes de pescar um molho de chaves em seu bolso.
— Acho que está na hora de fechar.
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Rafael chegou em casa pouco depois das 16:00 se sentindo extremamente leve e bem humorado. Tomar sorvete e sentar nos bancos da pracinha no bairro das Camélias tinha sido ótimo e, mesmo com muitas pessoas olhando para os dois que estavam de mãos dadas – uma senhorinha até fez o sinal da Cruz – ninguém disse nada e eles puderam manter a naturalidade. Não houve nenhum outro beijo até o momento em que estavam dentro do carro dos Martins – Victor insistiu em trazê-lo para casa – e seu Tino não pareceu se incomodar com dois rapazes se beijando no banco de trás, o que só aumentou o respeito de Rafael por ele.
Ao abrir a porta Rafael se deparou com sua madrasta sentada no sofá com uma caixa do lado e um álbum de fotos no colo. Seus olhos estavam vermelhos e ela frequentemente levava a mão aos olhos para limpar as lágrimas.
O moreno parou com a porta meio aberta sem ter certeza como reagir à situação. Por um lado ele nunca tinha visto Luciana chorar, ele nem achava que isso era possível, por outro a foto que ele podia ver no álbum (Seu pai carregando Lili no colo) era uma das fotos que Luciana disse que tinha queimado, o que obviamente era mentira.
— Feche logo essa porta e pare de me encarar, moleque – A mulher tentou ao máximo manter seu tom duro de sempre, mas sua voz soava congestionada por causa do choro. – Quando Rafael ainda não se mexeu ela perguntou – Perdeu alguma coisa na minha cara?
— Essas são as fotos do meu pai – Ele afirmou, ignorando os insultos e se aproximou-se para ver melhor – Você disse que tinha queimado.
— Eu menti, e dai? – Ela colocou o álbum dentro da caixa, escondendo da vista do rapaz.
— E daí? – O moreno teve que se controlar para não gritar – Ele era meu pai e essas eram a únicas lembranças que eu tinha dele. Você escondeu isso, mentiu e agora está aí chorando como se desse a mínima para ele estar morto – sua voz quebrou na última palavra e ele sentiu lágrimas arderem em seus olhos.
— Não se atreva a dizer que eu não me importava com ele. – A mulher se levantou parecendo furiosa – Eu amava o Miguel, ele foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, o único problema foi que você veio com ele, um viadinho deprimente que vive pelos cantos da casa como um fantasma.
— Eu não viveria como um fantasma se você não me tratasse como um – Rafael retrucou em um quase grito, ele se conteve e baixou o tom antes de continuar – Você só fala comigo para me mandar fazer alguma coisa ou quando está de mau humor e precisa de um saco de pancadas.
— Eu nunca encostei um dedo em você – A mulher exclamou ofendida.
— E você acha que isso não dói? Ser tratado como lixo pela única família que eu tenho? – Ele optou não mencionar os puxões de orelha de quando era mais novo sabendo que não era esse o ponto da conversa.
— Nós não somos...
— Sim, nós somos uma família e fora a Lili não estou muito feliz com isso também – Rafael bufou para o próprio eufemismo – Mas o meu pai fez de vocês minha família, você está longe de ser minha mãe e a Letícia e Laura não são minhas irmãs, mas nós ainda somos... alguma coisa.
— Esse falatório todo vai chegar em algum lugar ou você só está gastando meu tempo? – Luciana desviou o olhar de Rafael e olhou para a TV desligada, seus olhos agora completamente secos.
— Eu não quero que você me trate como um filho do jeito que meu pai fez com as meninas, mas por que você não pode fazer um esforço para me aceitar aqui? Sei que dizer que ser gay não é uma opção não vai adiantar, mas porque isso importa tanto para você?
— É imoral e sujo e...
— E não interfere porra nenhuma na sua vida – O rapaz explodiu outra vez, sentindo a felicidade das horas anteriores ficar cada vez mais distante com essa conversa.
— Veja como fala na minha casa, moleque. – Luciana sibilou em um tom perigoso – E sim, isso interfere na minha vida. Eu tenho três filhas nessa casa. Você já estava se esfregando em público com outro homem hoje, não quero essa anormalidade...
— Essa anormalidade – Rafael fez aspas com os dedos – é quem eu sou e isso nunca impediu que meu pai me amasse ou a Lili.
— Seu pai era muito mole com você e a Liliane é uma criança, ela é muito nova para entender.
— Na verdade ela entende melhor que você – O rapaz cortou outra vez – E se fosse uma das suas filhas? Se a Letícia descobrisse que gosta de mulheres você a odiaria também?
A mão de Luciana atingiu seu rosto com força.
— Não se atreva a sugerir isso.
Rafael tocou o rosto dolorido e suspirou mais cansado que irritado e se virou para sair.
— Você fica aí chorando pelo meu pai como uma viúva enlutada como se isso fosse mudar alguma coisa, – Ele disse de costas para ela – mas a família era a coisa que ele mais valorizava e dane-se que você não gosta de mim, você deveria pelo menos respeitar isso.
Ele não esperou uma resposta enquanto caminhava para a escada, mas não pôde deixar de se sentir surpreso quando nenhum outro insulto foi atirado por Luciana. A mulher ficou parada no meio da sala com as mãos apertadas em punhos, mas havia uma expressão em seu rosto que dizia que estava pelo menos pensando nas palavras do enteado pela primeira vez.
Rafael subiu as escadas com passos duros e o rosto fechado em uma carranca. Aquela conversa breve tinha conseguido arruinar um dos melhores dias de sua vida. Como se as coisas não pudessem piorar, ao passar pelo quarto de Lili, ele viu a porta fechada e ouviu soluços abafados lá dentro. Ele suspirou e esfregou o rosto cansado, é claro que sua irmã tinha ouvido a discussão.
O moreno se esforçou para relaxar o rosto, não querendo que Liliane pensasse que estava bravo, principalmente não querendo que pensasse que estava bravo com ela. Foi um trabalho difícil quando as palavras de Luciana ainda ecoavam em sua cabeça. Quando pensou que sua expressão estava neutra o suficiente, girou a maçaneta e entrou no quarto da garota.
Liliane estava sentada na cama, mas ela não estava sozinha, seu rosto estava escondida no peito de Laura enquanto esta acariciava seus cabelos em um gesto muito mais gentil do que Rafael estava acostumado a ver. Os olhos da loira encontraram os seus quando a porta se abriu, mas ela não parou o que estava fazendo.
— Ela está bem? – O rapaz perguntou baixinho, pensando que os soluços mais suaves significavam que Lili havia adormecido.
Laura não teve tempo de responder. Ao ouvir a voz do irmão, Liliane se moveu e ao vê-lo, praticamente saltou da cama para abraçá-lo.
— Rafafa – Ela soluçou, enterrando o rosto em sua barriga. O rapaz não conseguiu pensar em nada que pudesse fazer além de deslizar os dedos pelos cabelos da garota em uma tentativa de acalma-la.
— Ela ouviu você e a mãe discutindo – Explicou Laura, dirigindo a palavra ao rapaz pelo que deveria ser a primeira vez em quase três semanas. Ela desviou o olhar quando Rafael olhou para ela – Acha que ela vai te mandar embora de casa.
— Ei, Lilith. Olha pra mim, Ok? – A garota apenas balançou a cabeça levemente e continuou a chorar, abraçando ele com força. Com cuidado, Rafael se desvencilhou de seus braços e se ajoelhou para ficar da mesma altura da irmã – Eu não vou embora, OK? Não ainda. – Acrescentou, não querendo mentir para ela.
— Mas você vai? – Ela encarou Rafael com os os olhos úmidos.
— Depois que eu me formar, sim – Ele assentiu e imediatamente sentiu os braços da garota o envolverem mais uma vez.
— Eu não quero que você vá – Ela gritou, mas o grito foi abafado pelo tecido de sua camiseta. Laura olhou para ele com reprovação, mas ele não deu atenção.
— Quando a escola terminar eu preciso ir para a faculdade, lembra que a gente conversou sobre isso? – Ele voltou a acariciar a cabeça que agora estava sobre seu ombro. Houve um pequeno e quase imperceptível aceno.
— É aquela escola de gente grande que vai ensinar você ser professor. – Ela fez uma pausa e se afastou um pouco para olhar o irmão nos olhos – Mas a minha pro pode te ensinar e daí você não precisa ir embora.
Por um momento, Rafael sentiu que poderia desistir de todos os seus planos para o futuro só para apagar as lágrimas que brilhavam nos olhos de sua irmã, mas o momento passou, ele sabia que por maior que fosse seu amor por ela, ele não iria aguentar muito mais tempo naquela casa.
— Olha, Lilith eu realmente ficaria se pudesse, mas não posso prometer isso, não quero mentir pra você.
— É por causa da mamãe, não é? Porque ela não quer que você goste de meninos e você gosta do Victor...
O moreno suspirou, ele não devia estar surpreso que a garota soubesse exatamente qual era o problema, afinal ela estava ouvindo as discussões sobre o assunto desde que se entendia por gente.
— Um pouco por causa disso sim – Ele respondeu, tentando ignorar a sensação de que Laura estava o encarando enquanto falava – É ruim ficar em um lugar em que as pessoas não te querem por perto.
— Mas eu quero você perto – A garota colocou as mãos na cintura e o encarou com uma expressão que o desafiava a dizer o contrário.
— Eu sei, Lilith, mas não somos só nós dois que moramos nesta casa – Ele fechou os olhos tentando afastar a sensação ardente nos cantos deles – Estar perto de pessoas que não gostam de mim machuca aqui – Ele segurou a mão de Lili e a guiou para a própria cabeça – E aqui – Ele a guiou para seu coração.
— Eu não quero que você se machuque – Ela disse quase imediatamente, e então em um tom mais baixo – mas também não quero que você me esqueça.
— Eu não vou te esquecer, Lilith. Eu nunca poderia esquecer a melhor irmã do mundo– Ele fez questão de olhar em seus olhos quando disse isso – Vou ligar para seu tablet antes da hora de dormir sempre que puder e te visitar também.
— Você jura de dedinho? – Ela ergueu o mindinho com uma expressão solene em seu rosto.
— Eu juro de dedinho – Rafael entrelaçou seu dedo com o dela – Isso faz você se sentir melhor?
— Um pouco – O tom da garota era incerto e não era preciso ser um gênio para perceber que algo mais estava consumindo sua mente.
— O que mais está te preocupando?
Rafael esperava algum tipo de resistência da garota antes de admitir o problema, mas ela foi direto ao ponto:
— Se eu gostar de meninas, a mamãe vai parar de me amar também? – O moreno congelou ao ouvir isso, ele não estava preparado para responder essa pergunta, principalmente porque não sabia a resposta – Porque eu não gosto dos meninos. Eu também não gosto de meninas, mas pelo menos elas não comem meleca do nariz...
— Você é muito nova pra gostar de alguém desse jeito, Lili – Laura interrompeu em um tom calmo – Não significa que você não vai gostar de meninos daqui alguns anos.
— Mas e se eu não gostar? A mamãe não vai mais gostar de mim? – Os olhos chorosos de Liliane encontraram os da sua irmã – Você não vai gostar mais de mim?
— O que? – Laura saltou da cama para se aproximar dela – Nunca, Lili, eu nunca vou deixar de te amar. Gostando de meninos ou não.
— Você também promete de dedinho? – Ela perguntou ainda soluçando um pouco. Laura sentiu algo se instalar em sua garganta impedindo de verbalizar sua promessa, mas se abaixou ao lado de Liliane oferecendo se mindinho que foi imediatamente envolvido pelo da garota – Mas e a mamãe? – Embora estivesse mais calma com a garantia de Laura, Lili ainda parecia preocupada – Ela não vai gostar de mim se eu não gostar de meninos?
Rafael e Laura se entreolharam, ambos sem saber o que responder à pergunta. Laura particularmente se sentia dívida entre ter que mentir para tranquilizar a irmã ou falar contra a própria mãe. Rafael percebeu o dilema no rosto da loira e decidiu poupa-la da escolha.
— Sua mãe não entende bem algumas coisas, mas ela ama você – Ele afirmou, enrolando um dos cachos da irmã – Talvez ela não te apóie se você não gostar de garotos, mas não acho que ela vai deixar de te amar, e mesmo se isso acontecer, eu vou estar sempre aqui para cuidar de você, morando juntos ou não.
— Você vai cuidar da Lê e da Lau também? – A garota perguntou com os olhos inocentes arregalados.
— Eu não preciso que ninguém cuide de mim – Laura protestou
— Mas e se você não gostar de meninos e a mamãe não gostar de você? – Lili se virou para Laura parecendo genuinamente preocupada.
— Eu gosto de meninos – A loira respondeu ao mesmo tempo em que Rafael garantiu:
— Se precisar, vou cuidar delas também.
Laura ficou surpresa com a resposta, ela nunca havia dado motivo nenhum para Rafael se importar minimamente com ela, sendo apenas um pouquinho mais tolerante com a presença do rapaz do que sua mãe e Letícia. Ainda assim, o olhar breve que o moreno lhe lançou dizia que ele era sincero.
Depois disso Liliane pareceu se acalmar. Ela ainda se recusava a ficar sozinha, se agarrando a Rafael ou Laura, a cada pequeno movimento que pudesse indicar que estivessem deixando o quarto, mas estava calma o bastante para se entreter com quaisquer desenhos bobos que tivesse em seu tablet.
Cerca de quarenta minutos se passaram antes que Luciana gritasse ainda lá de baixo que Lili deveria tomar banho antes do jantar. A menina saiu do quarto com as roupas enroladas no braço e arrastando os pés descontente.
— Obrigada
Rafael moveu a cabeça tão rápido que seu pescoço doeu. Laura estava olhando para ele com a expressão de alguém que poderia ter chupado limão, mas ele percebeu que de alguma forma era uma tentativa de um sorriso simpático.
— O que? – O moreno perguntou estupidamente sem ter certeza de que tinha ouvido certo.
— Obrigada – A loira repetiu, e sem nenhuma outra explicação seguiu a irmã mais nova para o banheiro para ligar o registro de água para ela.
Rafael ficou parado com a boca um pouco aberta, se perguntando se em algum momento entre aquele dia e o anterior, o inferno tinha começado a congelar.
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NOTAS DA AUTORA
"— Armando o que? – Ane bufou – Isso é vida real, não uma fanfic ruim do Wattpad ..."
Sinto muito informar, Ane, mas você não só é a personagem de uma fanfic ruim, como nem é a principal.
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Para aqueles de vocês que não sabem (e provavelmente não estão interessados em saber existe uma banda de metal sinfônico chamada "Epica" (minha preferida) e é daí que veio a piada do Pedro.
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Espero que tenham gostado do capítulo apesar do tempo ridiculamente longo que demorou pra atualizar.
Bye e até a próxima 🏳️🌈🤟
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