Capítulo 36
Capítulo 36
Kim
Meu pai, ele se encontrava num quarto todo branco, em uma cama alta com grades nas laterais e me olhava com tristeza. Eu tinha a impressão que ele não conseguia falar. Porém, seus olhos diziam tudo. A raiva que tinha de mim e de como eu levava a vida.
Aproximei da cama. Ele pediu com a mão que eu me aproximasse. Cheguei perto da cama. Fez novamente o movimento, lento e com dificuldade, mais um pouco. Obedeci. E foi neste instante, ele segurou meu pescoço e tentou me estrangular.
Acordei assustado. Que pesadelo estranho. Há muito tempo não sonhava com meu pai e este tipo de sonho, melhor pesadelo. Eles haviam parado desde que me mudara para o Brasil, porque me perseguiram por muito tempo.
Acredito que, me tornar famoso ajudou a tranquilizar minha mente. Não a fama em si, mas a condição financeira se estabilizar. Pude comprar meu apartamento, não este que tenho agora, mas um menor. Mesmo indo contra aos conselhos de nosso empresário que dizia não ser uma boa aplicação o mercado imobiliário. E que pagar aluguel ou morar em hotel, faria mais sentido que comprar, afinal viajávamos muito. Mas eu sempre escutei meu avô dizer que nada era mais seguro que um teto para se morar. Por este motivo, assim que pude, fui melhorando as minhas moradas. Hoje tenho este apartamento duplex, talvez passei da conta no tamanho e todo o luxo que não me proporciona no momento.
Levantei devagar para não acordar a Huma, precisava tomar uma água e arejar a mente. Fui até a cozinha, peguei uma garrafa na geladeira, enchi um copo e tomei, sentei a mesa com outro copo de água à minha frente. O relógio do micro-ondas marcava 6:16 e o sol já despontava entre os prédios que eu avistava pela janela da cozinha. Uma angústia apertava meu peito e a lembrança do sonho ainda vinha muito forte. Coloquei a mão no pescoço, onde eu senti meu pai apertar. Foi muito real.
Fechei os olhos com força com o desejo de esquecer a cena que insistia em permanecer ali me atormentando.
Dei um pulo da cadeira ao sentir uma mão no meu ombro.
— Desculpa. Não quis te assustar — Huma falou com a mão no peito, logo atrás de mim —, você me assustou também.
— Não esperava você aqui... e... estava com pensamentos longe.
— Aconteceu alguma coisa? — Ela sentou à minha frente e segurou minha mão.
— Nada. Quer dizer... Eu tive um pesadelo e vim tomar uma água. — Seu olhar direcionou para o copo cheio, intocável sobre a mesa. — Já tomei um, se esta foi o que se perguntou.
— O sonho, quer dizer, o pesadelo te incomodou ao ponto de te tirar da cama, deve ter sido ruim mesmo. Quer um café?
— Sonhei com meu pai.
— E?
— Ele queria me matar.
— Sei que às vezes um sonho nos deixa pensativo o dia inteiro, mas isso aconteceu por você ter pensado muito nele ultimamente.
— Mas ele querer me matar? — Coloquei a mão de novo no lugar. — Foi tão realista que sinto até dor no local.
— Está vermelho mesmo — Ela chegou perto para olhar. — é de tanto você passar a mão.
Puxei-a para meu colo e a abracei. Era reconfortante tê-la por perto. Neste instante, eu me senti uma criança que precisava de alguém para passar a mão na minha cabeça e dizer que não era nada. Ia passar e que daqui a pouco eu nem me lembraria do sonho.
— Veja bem, o melhor neste momento é você analisar o sonho. Por que seu pai iria querer te matar?
— Pensar nos motivos não vai ajudar muito, posso encontrar vários.
— Então não pense! — Levantou e colocou dois paninhos na mesa e as xícaras. — Quer uma tapioca?
Balancei a cabeça que sim, voltei no sonho e, enquanto ela mexia no fogão e com as panelas, contei com detalhes. Reviver a cena me trouxe novas reflexões. Percebi que eu não era o homem que sou hoje e sim, um moleque de vinte anos atrás.
— Você precisa se acertar com seu pai para seguir em frente.
— Como? E se o pior acontecer?
— Deve ser justo por você pensar nessas coisas que teve o sonho. Seu medo de não ter essa oportunidade. Pense positivo. E não perca mais tempo. Assim que puder conversar com ele. Faça.
— Isto se ele me receber.
— Sempre escutei falar que, quem passa por uma experiência dessa, não é mais a mesma pessoa. Sempre uma lição positiva tira dessa nova chance.
Fiquei pensando nisso. Talvez Huma esteja certa, ele ver a morte de frente pode lhe fazer repensar na rigidez que sempre viveu. Porque é o que passava em minha cabeça. Poderia o ter procurado antes para conversar.
— Coma enquanto está quente — Ela me pediu, após se servir e eu nao ter tocado no meu prato. — Kim, você está impressionado, é normal. Escutei outro dia uma reportagem que as pessoas têm sonhado mais na pandemia e muitas vezes com coisas repetitivas, tipo, sem máscara, ela é campeã dos pesadelos. Outro exemplo é estar numa aglomeração e perceber que não usava máscara.
— Já escutei alguma coisa sobre isso também. — Cortei minha tapioca e coloquei na boca. — O café vai ser só isso?
— Tem arroz, quer? — Ela me perguntou rindo.
— Não. O seu arroz é muito soltinho. Precisa aprender a cozinhar direito mulher! Como vou casar com você assim?
— E eu lá quero casar com você?
— Não precisa me magoar — Fiz cara de vítima. —, estou tão carente e precisando do seu carinho.
— Ô coitadinho... — Ela riu mais ainda. — Sabe o porquê estudei muito?
— Sei. Para mandar em muitas pessoas.
— Hum... também, mas o principal motivo era eu não ir para a cozinha e aprender a cozinhar.
— Estratégia que funcionou. Mas essa tapioca está muito gostosa. Como aprendeu a fazer tão bem? — perguntei para pegar neste seu ponto fraco, porque sabia que sua experiência gastronômica era limitada.
— Vou te explicar desde o plantio da mandioca, quer?
— Você me deu outra ideia e muito mais interessante.
***
Três dias passaram e nenhuma notícia do meu pai. Minha irmã chegou a me contar que minha mãe foi para São Paulo e voltou desanimada. O procedimento feito continuava e que ele havia respondido bem, mas os medicamentos não fizeram o efeito necessário. Com isso eu lembrava do sonho cada vez mais. Imaginava que podia significar o contrário. Ele morreria e não eu.
— Kim, falei agora a pouco com o Julian, ele disse que seu pai teve uma mudança no quadro clínico.
— Como assim? — Assustei com a informação. — Ele piorou?
— Não. Pelo contrário, pode ser que ele saia do aparelho nos próximos dias se o novo medicamento continuar fazendo efeito.
— Por que sou sempre o último a saber? Cadê mamãe ou Min-a para me contar essas coisas! Sempre é você a saber primeiro!
— Ok, me desculpe! Devia ter deixado para elas. — Huma virou de costas para mim e saiu do quarto, que eu havia transformado em estúdio.
— Huma, me perdoe, não quis ser rude com você.
Ela não me respondeu.
Passei as mãos no rosto e nos cabelos. Sabia que minha irritação não tinha a ver exatamente com ela me contar, mas ficar totalmente alheio às notícias. Abri a porta e fui até sua mesa de trabalho e falei:
— Por favor, me desculpe, não quis ser grosso e mal-educado.
— Tudo bem.
— Sei que ficou chateada, mas...
— Kim, já disse, tudo bem. Estou trabalhando agora e vou entrar em uma reunião daqui a pouco.
— Estou cansado de tudo isso. Este vírus. Essa pandemia. Pessoas morrendo. Trabalhar de dentro do quarto. Ficar preso dentro de um apartamento. Tudo! — falei, andando em círculo.
— Não é só você.
— Sabe, a gente cansa de ter tantas restrições. No princípio, temos dificuldades, depois acostumamos, mas chega uma hora que não dá mais!
— Se dê por privilegiado.
— De poder ficar aqui?
— Não quis dizer isso.
— Estou te atrapalhando? É isso?
— Não falei neste sentido. Mas você pode juntar suas coisas e ir para o seu apartamento a hora que desejar.
— Quer que eu vá embora, porque falei daquele jeito?
Ela virou a cadeira e levantou. Dei dois passos para trás, porque conhecia aquela expressão de seu olhar.
— Eu quis dizer que você é um privilegiado de ter onde morar. Um apartamento amplo e estar aqui comigo. E tem o seu que deve ser muito melhor que este. Têm famílias que estão morando em um quarto, sala e cozinha com cinco ou seis pessoas. Muitos perderam o emprego. Milhares já morreram. Tantos outros estão em hospitais. É isso que eu quis dizer — ela terminou de falar com a voz alterada.
— Você falar assim parece que não sei o que é morar em um quarto. Dou valor sim!
— Então pare de reclamar! Estou farta de escutar sua lamúria. Sei o quanto é difícil ter uma família complicada. Você mesmo presenciou as loucuras da minha. Mas a gente tem que aprender a viver com isso. Se reclamar desse resultado e mudasse alguma coisa, tudo bem, mas não resolve. Atitude sim. Você fala de sua irmã, mas também pouco a procura. O que fez para ajudá-la? Ela tem os problemas dela para resolver.
Ela voltou a sentar. Colocou os fones de ouvido e começou a digitar. Eu fiquei ali parado assimilando as suas palavras. Quando resolvi falar ela me interrompeu.
— Ligue para alguém da sua família. Eles têm mais notícias.
— O que aconteceu? — Claro, ela não me respondeu.
*****
E aí, leitoras maravilhosas, tudo bem com vocês?
Huma ficou chateada, concordam?
Essa pandemia não está fácil e eles nem imaginam o que vem pela frente.
É melhor deixar para descobrirem com o tempo, correto?
Abraço, se cuidem. Eu já tomei a primeira dose e mês que vem a segunda. Louvado seja Deus!
Lena Rossi
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