Capítulo 27


Capítulo 27

Huma

Desde cedo, notava o Kim muito distraído e preocupado, mas ele não se abria. Eu sabia o que deixou assim, porém precisava que partisse dele compartilhar comigo.

Ele não tinha essa característica de recruzar no silêncio. Mas mesmo nos dias que estive doente, ele não me parecia tão abalado como hoje, ou melhor, desde ontem. Tentei puxar assuntos aleatórios várias vezes e ele respondia, depois caia no silêncio pensativo.

Por que me escondia? Dei várias oportunidades dele se abrir e me dizer o motivo daquela postura. Porque isto era claro, havia alguma coisa ou várias. Eu via em seus olhos a preocupação e algo mais, que foi impossível identificar.

Assim que ele saiu para atender o telefone, eu fiquei inquieta. Os minutos passaram, poucos na verdade, mas para mim parecia uma eternidade. Saí no hall e chamei o elevador. Fui até o apartamento dele, encontrei a porta fechada e ele não me atendeu. Escutei a voz dele vindo da escada. Abri a porta e o vi sentado, cabeça baixa e me pareceu chorar. Ele falava com a mãe. Sentei e esperei.

Eu conhecia bem os coreanos e como eles eram inflexíveis na questão familiar. O presidente da empresa, este era um caso complicado, a filha é supercompetente, mas não consegue um lugar na diretoria, quem a representa é o marido.

Desde modo, eu escutei uma parte da conversa, até que ele desligou e ficou quieto sentado olhando para o nada. Eu quis sair de fininho, mas minhas pernas não me obedeceram. Um barulho chamou sua atenção e ele me viu. Seus olhos vermelhos encontraram os meus preocupados e, não pude evitar a pergunta.

Ele acabou de subir os degraus que nos separavam. Sentou um lance abaixo e deitou em meu colo. Neste instante, parecia uma criança sentindo falta da mãe no primeiro dia de escola.

— Estou com medo de meu pai morrer — falou num sussurro.

— Por quê? O que aconteceu?

Ele ficou em silêncio. Aconchegou mais no meu colo e me envolveu com os seus braços. Ficamos ali alguns minutos naquela posição desconfortável, até que não suportei mais e pedi:

— Vamos voltar para o apartamento. Minhas costas, ela não é mais uma criança, está pedido socorro.

Ele levantou e deu-me um sorriso triste. Estendeu-me a mão e me puxou para levantar. Seguimos pelas escadas até o meu apartamento. Abri a porta da varanda e o fiz sentar. Fui até a cozinha e busquei dois copos e uma garrafa de água. Servi para nós e me sentei na outra cadeira. A tarde caia e os tons de laranjas se misturavam com vermelho, lilás e azul. Tornando a vista uma pintura perfeita.

— Eu omiti várias coisas da minha vida para você — falou depois de um tempo, sem me olhar, seus olhos ainda se perdiam no horizonte. — Agora tenho medo de lhe contar.

— Já sei... você não é coreano, mas sim, japonês!

Ele se voltou para mim e deu um breve sorriso.

— Não. Sou coreano. E canto no grupo, fui expulso de casa por querer ser artista. Tudo isso é verdade.

Ele respondeu como se minha frase fizesse sentido e não, que fosse uma brincadeira.

— O que é mentira? E por que mentiu para mim?

— Vários fatos eu não menti, apenas omiti. Deixei alguns detalhes sem contar.

— E vai me contar tudo agora?

— Tenho medo de você terminar comigo — Ele levantou após beber da água e encostou na sacada de costas para mim. —, quero que saiba em primeiro lugar é que tudo que fiz foi para te conhecer melhor, porque você não me dava nenhuma chance.

— Fale, Kim!

— Veja! Você já está brava! — Voltou-se para mim. Abaixou-se perto de minha cadeira e pediu: — Por favor, você vai me escutar sem me julgar?

— Não faço julgamentos, mas análise de comportamento. Conte-me tudo para que eu possa entender o tamanho de sua culpa.

Ele levantou e sentou novamente na cadeira. Tomou mais água. Olhou para mim e eu vi realmente medo, receio de abrir seu coração e ser verdadeiro, então ajudei com um empurrãozinho.

— Comece por falar de seu pai. Por que tem medo dele morrer? O que aconteceu?

— Certeza que quer por essa parte?

— Sim. Pare de enrolar, Kim!

— Calma... — Bebeu mais água. — Kim Kwan-hee te diz alguma coisa?

— Senhor Kim, presidente da WKK.

— Ele mesmo, então... é... ele é o meu pai.

— E você acha que eu não sabia disto? — Seus olhos tornaram-se maiores. Sua fisionomia de total surpresa. Abriu e fechou a boca várias vezes ante que o som saísse de verdade.

— O quê? Você sabia e me fez passar por este apuro aqui para te contar?

— Veja bem, você nunca fala de sua família. Já me contou alguns fatos como, que foi deserdado e expulso de casa, depois veio para o Brasil quando eles vieram para se aproximar da mãe e da irmã.

— E o que te levou a crer que eu era filho do Kwan-hee?

— Seus documentos. Lembra aquele dia que me mostrou para eu certificar sua idade?

— E por que não me disse nada?

— Por que você deixou claro muitas vezes que não tinha pai. Ou ele não te considerava mais como filho. É um problema seu e muito delicado, eu não poderia tocar no assunto sem que você o fizesse primeiro. Mas sempre fiz questão de te falar da empresa e agora em te contar que ele estava doente e depois que havia piorado. — Segurei na mão dele, que envolveu a minha com as duas mãos. — Agora o que mais deixou de me contar?

— Eu não moro aqui.

— Eu sei! Aqui... — Ele me interrompeu e levantou em um salto.

— Como assim? Meu primo abriu o bico, aquele safado...

— Espera! O que você está falando? Que primo? — Levantei também.

— Como você sabe que não moro aqui?

— Por que aqui é meu apartamento. Você mora lá em cima... espera aí... você quer me dizer que este apartamento não é o seu?

Sua expressão foi pior, o susto bem maior que eu já saber que ele era filho do senhor Kim. Tive certeza que ele queria sumir de minha frente. Sentou novamente parecendo derrotado e eu o chamei para entrar:

— Venha, está ficando muito frio aqui.

Caminhei para cozinha para dar tempo dele se recuperar. Coloquei um café para fazer e abri as portas do armário a procura de alguma coisa. Depois que ele acampou aqui, cada dia aparece uma gordice diferente como: salgadinho, bolacha, uns saquinhos com petisco que até então eu desconhecia. Com certeza, estes exageros me fariam ganhar alguns quilos.

Arrumei uma bandeja com torradas, bolachas, pasta de ricota, queijo e alguns petiscos. Coloquei a garrafa de café e duas xícaras. Voltei para sala e o encontrei sentado do mesmo jeito que o deixei.

— Um café vai te ajudar a colocar as ideias no lugar e confessar suas artimanhas, senhor Kim... não! Pensando bem, senhor Joaquim. — Ele voltou o olhar confuso para mim.

— Joaquim?

— Sim. Todo coreano tem um nome brasileiro, certo? Kim de Joaquim. Tenho um tio, Joaquim que o chamamos de Quim com Q. E o seu, pode ser charmoso com K, pode virar Joakim com K se desejar, mas o abrasileirado teria que ser com Q.

— Você está muito engraçadinha hoje, pior, com um assunto muito sério como este.

— Desculpa, queria apenas tornar mais leve para você. Primeiro me conte sobre essa história do apartamento.

Então ele começou a contar uma história conhecida. O dia da viagem. A mudança de minha passagem, o horário, o voo e a chegada no aeroporto de Campinas. Tudo foi estrategicamente pensado e articulado para passar mais tempo comigo. Até que chegamos em Piracicaba e ele veio para o apartamento que dizia ser dele, na verdade do primo, este tal que já sabia que eu morava.

— Mas garanto que foi muita coincidência essa parte dele morar aqui.

— E eu acredito que foi culpa minha. Quando comprei este apartamento, era apenas uma construção no papel e uma maquete, eu nem morava aqui na cidade, nem sabia o que seria de minha vida profissional.

— E por que comprou se não sabia se viria morar aqui?

— Meu pai achou que seria um bom investimento na época.

— Ao terminar a obra, eu já havia voltado do exterior e começado a trabalhar em uma empresa da cidade. Em pouco tempo veio a multinacional e a oportunidade de trabalhar na WKK. Foi quando comentei que havia alguns apartamentos ainda disponíveis a venda aqui.

— Então a empresa comprou estes apartamentos... — concluiu ele por mim.

— Basicamente isso, mas acho que não foi a empresa, mas os funcionários que resolveram fixar residência no pais. Alguns nem trabalham mais na WKK.

— Mas eu duvido que o meu primo tenha colocado a mão no bolso para pagar o seu.

— Que você diz ser o seu lar, senhor Joaquim?

Ele coçou a cabeça e inclinou a cabeça, sorriu e confirmou:

— É. Fiz isso por você senhorita Humália difícil de conquistar.

— E você acha que foi o caminho mais fácil? — Balancei a cabeça ao lembrar de todas as estratégias que fiz para entrar no meu apartamento as escondidas. — Você não imagina o trabalho que me deu por isso! Vamos aos fatos!

Conversamos sobre tudo. Escutei, falei e no final rimos dos dois tontos. Ele querendo me encontrar e eu fugindo dele por meses. No final, ele me pega no flagra, no dia que havia desistido de ficar no prédio.

— Já andou na sua bicicleta?

— Nenhuma vez. Penso em passear na rua do porto, ou na ESALQ, mas depois desisto quando vejo este trânsito. A opção é comprar um suporte para colocar no carro...

— Entendi... e como comprar não lhe causa certo fascínio, a bicicleta ocupa a sua vaga na garagem.

— Sim. Achei uma alternativa para os folgados que gostavam de pegar emprestada sem pedir autorização.

— Eu nunca peguei! — Levantou a mão.

— Acredita que, muitas vezes, precisei pedir o porteiro para chamar o dono do carro para que eu pudesse estacionar? Além de usar sempre uma das vagas, estacionava torto e ocupava as duas. Depois que coloquei a bicicleta, ele ainda teve a petulância de tirá-la do lugar e colocar o seu carro.

— Mas por que ele faz isso? Seu apartamento não tem as vagas?

— Tem, mas ele deve ser um mal motorista, porque sua vaga é no segundo subsolo e de ruim acesso, me informou uma vez. E acha mais fácil usar de outras pessoas.

— Já fiz uma reclamação por escrito e entreguei a síndica. Diz ela, que fez a notificação e foi lhe entregue, se acontecer novamente ele vai ser multado.

— Faça ele pagar aluguel pela vaga.

— Até não me importaria dele usar, mas abusar é demais. Colocava na melhor vaga e ainda mal estacionado, o que dificultava eu entrar na outra e acertar o carro na marca. Foi o que me cansou, — Olhei de relance para ele e sorri. — ainda mais quando queria entrar e sair sem ser vista.

— Voltando a este assunto... que coisa feia, hein senhorita.

— Também acho, senhor Joaquim, você tem ainda muito que se explicar. — Ele limpou a garganta, serviu de mais café e pegou um petisco e morde. Tudo para ganhar tempo.

— Como eu ia dizendo... quer dizer, vamos voltar ao senhor Kim. O que posso fazer? Ele já disse que não tem filho.

— Tudo bem, mas sua mãe precisa do seu apoio. Vamos até lá?

— Agora? — perguntou assustado.

— Sim, por que não? Tem mais alguma coisa que não me contou?


Área de lazer da cidade de Piracicaba, perto do rio. Ponto turístico muito conhecido.

Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz" (Esalq), unidade da Universidade de São Paulo (USP), localizada em Piracicaba.


*****

Olá lindezas! 

Tudo bem com vocês? 

Gostaram da conversa e revelações do senhor Joaquim? Este mentiroso e escondedor de informações? Sei que faltam algumas, mas ele começou devagar. E o medo que ele tem dela é o que mais me diverte.

Comentem, votem e pode até partilhar com quem gosta de ler. 

Beijos e até a próxima semana. Se cuidem. Este vírus continua a solta e fazendo muitas vítimas. 

Abraço

Lena Rossi


Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top