Capítulo 5


       O vento balançava meus curtos cabelos platinados como se estivessem em uma dança sem fim, era difícil enxergar com a névoa cinza que se formava a minha frente. Sequer sabia que lugar era aquele, muito menos o que eu estava fazendo lá. Meus sentidos estavam adormecidos, era como se eu não sentisse nada, algo que a muito tempo não acontecia comigo.

       A primeira coisa que me veio à mente foi levar minhas mãos as minhas costas. Foi o que fiz. Ao desliza-las por minha pele nua, a única coisa que meus dedos tocaram foi em enormes cicatrizes que eu não conseguia determinar seu início e fim.

       Pânico tomou conta de todo meu ser. O ar começou a sair de meus pulmões e não quereria entrar mais, minhas pernas fraquejaram a ponto de eu ter de me jogar no chão. Algo de muito errado havia acontecido. Algo irreparável.

       Acordei com mãos balançando meu corpo para frente e para trás.

       Abri meus olhos e me deparei com um homem conhecido por mim gritando o que devia ser meu nome.

       — Aalis?!

       Demorei alguns segundos para entender o que havia acontecido.

       Eu estava sonhando. Porém, naquele momento eu já não me lembrava mais com o que havia sonhado.

       Olhei ao meu redor, era meu quarto pequeno e careta de sempre. O homem que a pouco estava tentando me acordar era o guarda que me havia sido designado logo nos meus primeiros dias naquele lugar. Eu estava no Reformatório San Rafael por um crime que cometi.

       Meu nome era Aalis De Freyn.

       Foi depois de todas as peças do quebra-cabeças se juntarem em minha mente que eu comecei a prestar atenção no que Kalamari estava falando.

       — Você estava tendo um pesadelo — ele me explicou — Lembra o que aconteceu?

       Pisquei algumas vezes e levei a mão a minha testa tentando lembrar de algo, mas nada me veio a mente. Quando voltei a encarar o guarda, percebi que o mesmo se encontrava sentado em minha cama praticamente debruçado sobre mim.

       Me ajeitei na cama ficando sentada e neguei com a cabeça.

       — Pensei que você estava ocupado esta semana — falei com a voz falha e rouca por ter recém despertado.

       Fazia pelo menos cinco dias que eu não o via no reformatório desde que fora me dito que o mesmo tinha outro assunto a resolver.

       — Voltei faz duas horas — respondeu em tom calmo, como nunca havia falado comigo antes.

       Realmente, ele estava vestindo um sobretudo preto que em nada se assemelhava ao uniforme dos guardas do reformatório e seus cabelos, sempre alinhados para trás, estavam bagunçados de uma forma que eu não pude deixar de achar sexy.

       — Hunt disse que você começou a gritar como se estivesse sentindo dor ou algo do tipo — falou voltando a discutir sobre meu suposto pesadelo.

       — E onde ele está? — perguntei olhando ao meu redor para a penumbra que se encontrava meu quarto, certamente era madrugada ainda.

       — Eu o mandei descansar depois que veio me avisar sobre você.

       Voltei a encará-lo.

       — Não consigo me lembrar de nada — admiti.

       Kalamari estava prestes a falar algo quando uma dor aguda em minhas costas me fez grunhir de dor, parecia que algo rasgava minha pele com brutalidade.

       — O que ouve? — perguntou confuso.

       Outra pontada de dor atravessou minha coluna e dessa vez eu não consegui evitar gritar. Levei as mãos às costas e mordi com força meu lábio inferior. Eu nunca havia sentido algo como aquilo antes.

       Kalamari logo percebeu o problema e me fez virar de costas para ele. Minha camisola cobria boa parte de minha pele e foi preciso tirá-la para poder se ter visão de minha coluna.

       Acabei tendo que abraçar minhas pernas com força para não gritar de novo.

       O guarda colocou sua mão em meu ombro, chamando minha atenção. Virei a cabeça em sua direção e foquei meus olhos em sua expressão confusa. Um feixe de luz vindo da Lua iluminava seu rosto e eu pude ver claramente que algo estava errado.

       — Aalis...

       — Sim? — respondi quase que inaudível.

       — O que são essas duas cicatrizes nas suas costas?

       Arregalei os olhos ao ouvir sua pergunta e me afastei dele levantando rapidamente da cama. Caminhei em direção ao espelho pendurado na parede e virei de lado para poder ver minhas costas. Agora apenas com minhas roupas íntimas era possível perceber dois enormes rasgos paralelos que cortavam boa parte de minha pele quase translúcida.

       Uma sensação de sufocamento logo me acometeu.

       Não, aquilo não poderia ter acontecido.

       Tentei ao máximo disfarçar as emoções que me afrontavam naquele momento, mas não estava sendo nada fácil.

       Corri em direção a janela e gritei o mais alto que pude para o céu escuro e sem estrelas:

       — Vocês não podiam ter feito isso!

       Um tilintar de sinos ecoou fracamente pelo quarto como uma risada de criança travessa.

       — Aalis?

       Kalamari parecia ainda tentar entender o que estava acontecendo, mas ele nunca conseguiria, a menos que soubesse de meu maldito segredo.

       Respirei fundo tentando ao máximo não cair no choro e peguei um casaco que havia deixado jogado no chão ontem para logo então vesti-lo. Minhas costas já não doíam mais, mas a sensação do tecido raspando nas cicatrizes era agoniante.

       — Onde está indo? — perguntou confuso ao me ver saindo do quarto e tratou de me seguir.

       Caminhei em passos largos pelo corredor da ala feminina sem sequer me importar com o vento frio que batia em minha pele não coberta pelo casaco fazendo-a arrepiar.

       — Vou te mostrar a verdade — falei apressando o passo, eu não estava agindo por mim.

       Meus punhos estavam cerrados com tanta força que eu não me impressionaria de estar cortando as palmas de minhas mãos com as unhas. Eu estava com raiva e nada naquele momento poderia me impedir.

       Parei abruptamente em frente a um par de portas de madeira enormes. Um pouco mais acima do batente havia uma placa de mesmo material com a escrita "Biblioteca" gravada a tinta. Bingo, era onde eu pretendia chegar.

       Por sorte, a porta estava destrancada como praticamente todas daquele lugar, então não tive dificuldade alguma em adentrar o cômodo. Não precisei ligar as lâmpadas, a luz da lua atravessava as altas janelas de vidro de forma tão intensa que não precisava nem fazer esforço para enxergar no escuro.

       A bibliotecária não estava lá, o que afirmou minhas suspeitas de que o horário que eu havia escolhido para retirar um livro não era muito adequado.

       Meu guarda ainda me seguia em silêncio, mas eu tinha certeza que em sua cabeça passavam milhares de perguntas sobre o que estava acontecendo. Ele logo entenderia.

       Precisei caminhar algumas vezes pelos setores da biblioteca para finalmente encontrar a estante que eu estava procurando. Parei em frente a ela e retirei um livro de capa de couro já gasta levando-o até uma das pequenas mesas circulares que se encontravam próximas a porta de entrada.

       Kalamari se aproximou para ver o que eu estava fazendo e esperou que eu começasse a falar.

       Não havia título na capa do livro, mas eu sabia exatamente sobre o que ele tratava.

       — Você é católico? — perguntei folheando as páginas do livro com um pouco de pressa.

       — Ortodoxo — completou.

       Aquilo fez com que eu soltasse um fraco riso, mas que logo cessou quando encontrei o que eu procurava no livro.

       Apontei para uma imagem que tomava toda a página do livro. Era uma pintura muito comum de se encontrar entre os fiéis da Igreja Ortodoxa, vários anjos dispostos ao redor de um ser central.

       Eu tinha certeza de que Kalamari reconheceria aquela imagem se fosse mesmo religioso. A sua expressão era a de quem não estava entendendo nada.

       — São três hierarquias — expliquei — A primeira, que contempla os Serafins, Querubins e Tronos. A segunda, com Dominações, Potestades e Virtude. E a terceira, os Principados...

       — Arcanjos e anjos. Sim, eu sei — disse cortando minha fala — Por que motivo está me mostrando isso?

       — Os anjos são constantemente enviados à Terra para realizar alguns trabalhos em nome de seus superiores, mas as vezes acabam caindo na tentação — falei virando a página e mostrei outra imagem onde havia um anjo sendo expulso por outros de mesma semelhança que ele.

       — E são acolhidos por Lúcifer — Kalamari disse indicando o desenho de baixo em que era possível distinguir apenas várias sombras negras.

       Foi então que neguei com a cabeça e deixei o livro de lado.

       — É aí que sua religião se engana, Esdras — acabei deixando escapar que sabia seu nome.

       Ele apenas me olhou de forma intrigada, mas não discutiu sobre o assunto.

       — Os anjos são expulsos para a Terra e obrigados a viver como os mortais. Alguns acabam não aguentando o fardo e, aí sim, vão se abrigar junto de Lúcifer.

       — Por que estamos falando sobre anjos caídos? — perguntou não entendendo onde eu queria chegar com aquela história.

       — Esse é o problema! — falei me voltando para ele fazendo-o dar um curto passo para trás — Vocês acreditam que os anjos são mensageiros divinos que propagam a bondade de Deus entre os mortais, mas na verdade são usados apena para fazer o trabalho sujo e expulsos quando algo que não agrada seus superiores acontece — acabo me exaltando.

       Minha reação levou Kalamari a se afastar ainda mais, ele devia estar achando que eu era doente mental ou algo do tipo.

       — Eu sou um deles.

       Murmurei tão baixo que praticamente nem eu havia escutado.

       — Você o que? — ele perguntou voltando a se aproximar.

       — Eu sou um anjo caído — respondi em tom firme e voltei a encará-lo.

       Kalamari me encarou por alguns segundos e então, quando eu menos esperava, ele começou a rir incessantemente.





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Vocês teriam acreditado na Aalis quando ela disse ser um anjo caído? Eu certamente não hahahaha

Então galerinha, espero que estejam gostando dessa história que escrevo com tanto carinho para vocês. Não esqueçam de deixar o feedback de vocês nos comentários e ajudar a autora aqui dando seu voto lindo no capítulo.

Amo muito vocês <3

Beijinhooos




Vi Mello

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