Secundus
― É com grande prazer que anunciamos a união de nossas famílias, Cortázar e Katsaros, através do futuro matrimônio entre meu filho Lucas e a jovem Srta. Gabrielle. ― Laerte, patriarca dos Cortázar, ergueu sua taça de vinho, o gesto sendo gradualmente imitado pelos outros presentes à mesa. ― Um brinde aos nossos dois jovens e à sua saúde.
Após as últimas palavras de Laerte serem repetidas, os membros de ambas as famílias bruxas e convidados beberam de suas taças, retornando em seguida para o animado jantar, que marcava a oficialização do noivado entre Lucas Cortázar e Gabrielle Katsaros. Boa parte deles pareciam ter se esquecido do por que estavam ali, mais preocupados em suas conversas paralelas e seus pratos de comida.
As velas nos vários castiçais iluminavam os presentes na sala de jantar dos Cortázar, não tendo um bruxo ali que não estivesse em um fino traje escolhido justamente para a ocasião, alguns ostentavam até mesmo jóias. Um ou outro empregado passava por trás das cadeiras em posse de bandejas e, caso alguém pedisse, parava para servi-lo.
Lúcia Cortázar, irmã mais nova de Lucas — além de ser a única —, definitivamente era a pessoa mais calada naquela mesa, observando o diálogo que seu pai travava com Bergoy Katsaros, líder do Clã Bruxo no Conselho, que parecia relatar-lhe animado algo sobre a última reunião. A garota esforçava-se para tentar compreender as palavras, sem muito sucesso.
― Não está com fome, Lúcia? ― A bruxa virou-se para a pessoa ao seu lado, vendo Gabrielle Katsaros falando com ela enquanto levava uma garfada do porco assado à boca. ― A cozinheira de vocês caprichou dessa vez. ― Finalizou com um sorriso.
Lúcia tentou fazer o mesmo e voltar a comer. O arroz parecia sem graça, mesmo que gostoso.
― Eu estava distraída e acabei me esquecendo disso.
Gabrielle riu, tendo que colocar a mão enluvada sobre a boca. Quem a conhecia sabia como podia ser escandalosa com suas gargalhadas e ali não era lugar para aquilo.
― Você parece distrair-se com frequência, creio eu, já que se perdeu nos próprios pensamentos em segundos ao ouvir as conversas burocráticas ao nosso redor.
Lúcia balançou a cabeça, tentando pensar em algo para mudar de assunto, pois não queria insistir em um diálogo onde provavelmente teria que compartilhar o que se passava em sua mente. Preferia que o que se passava ali dentro ficasse ali dentro, salvo raras exceções.
― Eu ainda nem pude te dar os parabéns, Gaby. ― Ela conseguiu mudar de assunto, cortando um pedaço da carne em seu prato e juntando com o arroz. ― Meu irmão é um pouco irritante às vezes, mas espero que sejam felizes juntos.
A bruxa comeu a garfada e sorriu discretamente para a outra. Suas expressões sempre possuíam esse tipo de ares, mesmo que seus olhos castanhos escuros carregassem uma profundidade enorme.
― Obrigada. Mas creio que essa seja uma reclamação comum entre irmãos. ― Gaby soltou um riso frouxo. ― Pelo que conheço de seu irmão, creio que será um bom marido.
Um sorriso se desenhou pelos lábios de Gaby e Lúcia a analisou. Gaby era um tanto ousada para os padrões, como sua escolha de usa vermelho em quase todas as ocasiões, entretanto, não foi aquilo que chamou a atenção de Lúcia naquele instante. O sorriso de Gaby foi fingido e falsidade não era algo comum vindo daquela jovem, podia dizer pelas vezes em que interagiram. Gabrielle era fácil de se ler.
― Você está feliz com esse casamento, Gaby? ― Antes que pudesse ter uma resposta, continuou. ― Pergunto com sinceridade, porque, por mais que eu fique feliz em tê-la como minha cunhada, também quero vê-la feliz.
Gaby mais uma vez tentou dar um de seus sorrisos que diziam “está tudo bem”, contudo, ficando nítido para qualquer um como Lúcia era alguém realmente observadora, a expressão logo se desfez e ela se muniu da sinceridade. Finalmente podia deixar sua persona cair com alguém ali.
― Podia ser pior, Lúcia. Seu irmão não é má pessoa e é isso que me consola. ― Ela respirou fundo, observando os grãos de arroz restantes no prato. Tentou empurrá-los para o garfo com auxílio da faca, enquanto formulava seu raciocínio. ― Sempre tivemos uma relação amigável e... Já é um início para um bom casamento.
Gaby sorriu novamente, dessa vez mais como uma reafirmação para si mesma. Dessa vez, Lúcia deixou passar, preferindo não insistir para que ela se abrisse. Ainda mais ali, com conversas e ruídos de talheres ao redor.
― É deprimente que tenhamos que nos casar por conveniência e não por amor. E nos contentarmos com a amizade, não com um amor recíproco entre as duas partes ― Lúcia declarou sem passar as palavras por filtro nenhum.
A bruxa de pele negra parou de levar a garfada até a boca, observando como sua futura cunhada parecia estar falando mais para si mesma do que para ela.
― Diz isso como se tivesse passado pela experiência antes. ― Gaby comeu os últimos grãos de arroz, focando sua atenção na outra ao seu lado e ignorando a conversa de seu tio com Laerte sobre qualquer coisa no Conselho.
― É apenas um raciocínio que tenho.
Lúcia corou e abaixou a cabeça, voltando os olhos castanhos para sua comida. Gaby observou-a com certa curiosidade, preferindo manter isso para si, percebendo que a outra parecia ser extremamente reservada sobre si mesma.
― Talvez seu pai lhe dê a opção de escolha? ― Ela colocou sua mão sobre a da futura cunhada numa tentativa de deixá-la mais confortável, ambas cobertas por luvas que terminavam abaixo do cotovelo. ― Lucas é o primogênito e as maiores responsabilidades sempre acabam caindo sobre os ombros dele. Talvez com você seja diferente.
Os lábios de Lúcia se moldaram num sorriso fraco e, apesar de não ter a mesma percepção que ela, Gaby percebeu que a garota não estava sendo verdadeira ali.
☆
Os vagalumes faziam festa sobre sua cabeça e Lúcia os observava iluminarem o céu estrelado. A lua cheia fazia-se a rainha dos céus ao longe, no entanto, ali as copas das árvores quase se abraçavam, fazendo a luz prateada mal entrar.
Passava da meia-noite e nada se ouvia além dos sons dos insetos ao seu redor no fundo da floresta. Cedo ou tarde ouviria um uivo de lobisomem, naquela que era a última noite daquele ciclo lunar, mas não chegava a se preocupar com isso.
Sentiu mãos frias tocarem-lhe a pele do topo dos ombros, que ficavam expostas antes do início do tecido de seu vestido. Ela segurou os dedos magros e pálidos entre os seus, vendo a figura esguia de Draven caminhar até sua frente e abaixar-se para ficar na altura de sua linha de visão. Estava sentada sobre um tronco velho caído no chão, em sua espera que finalmente terminou.
― Ainda serei capaz de adivinhar quando está se aproximando ― ela riu.
― Um dia talvez eu a deixe saber quando estiver por perto. ― O vampiro beijou os nós dos dedos da bruxa, sem soltar sua mão por um único instante. ― Quando eu deixar de gostar do fator mistério.
Lúcia riu outra vez, aquecendo o peito de Draven por dentro, fato que seria impossível para um vampiro. Eram frios, sem corrente sanguínea circulando. Porém, para ele, havia uma pessoa que parecia fazer partes de seu corpo, como o coração, voltarem a funcionar, mesmo que de forma metafórica.
A bruxa abraçou o pescoço dele e o vampiro acabou deixando os joelhos cederem ao chão, sabendo que não conseguiria manter aquela posição de equilíbrio por muito tempo. Lúcia encostou o nariz na pele fria do pescoço de Draven, sentindo o cheiro ferroso do que poderia ser sangue e algo que parecia terra e uma planta que nunca conseguia identificar. O forte dos Cortázar não eram feitiços que envolvessem ervas e poções e ela não fugia da regra.
― Não consigo me sentir totalmente à vontade ― Draven disse de repente. ― Tenho a impressão de que esses vagalumes estão sempre a nos observar.
― Eles apenas respondem aos comandos de Pinnie, de resto, são como quaisquer outros vagalumes ou grilos dessa floresta ― a bruxa respondeu e olhou para cima, vendo como os insetos dançavam em contraste com a penumbra. Caso se dispersassem mais, eles deveriam partir. ― Posso te apresentá-la, se quiser.
Lúcia sabia que a fada tomou residência na floresta próxima à mansão dos Cortázar havia anos, e somente descobrira o fato por mero acaso no ano anterior. Tão sozinha, sua única companhia acabava sendo insetos e animais, seres que não a entendiam completamente, mas que ela sentia que sim. Ao menos mais do que a própria família e os demais bruxos com quem convivia de vez em quando.
Sua solidão foi quebrada com a companhia de Pinnie e, se não fosse pela sua desculpa para aprender mais sobre ervas, seu pai e irmão logo desconfiaram de sua amizade com a fada. Não que pudessem fazer algo para expulsá-la dali, já que a área estava fora da propriedade dos Cortázar e não poderiam entrar em conflito com o ser de outro clã se não houvesse razões para isso. Era grata pelos Acordos.
― Temos tão pouco tempo juntos que não desejo perder um segundo que seja com outra pessoa ― Draven declarou.
Os lábios de Lúcia se curvaram em um verdadeiro sorriso dessa vez, fazendo-a soltar o pescoço do vampiro e olhar para seu rosto de traços finos. Ele correu os dedos pelos cabelos castanhos de Lúcia, bagunçando seu coque e fazendo alguns grampos saírem um pouco do lugar.
― Acabamos tendo ainda menos tempo na lua cheia — ele começou.
― Por excesso de zelo seu.
― Nunca confie plenamente em lobisomens transformados.
― Não sou tão indefesa como parece pensar.
Draven desceu seus dedos pela lateral do rosto da bruxa, brincando com eles pela pele dela, finalizando com um beijo na bochecha, gesto que, para os padrões de qualquer um fora dali, seria ousado demais.
― Sei que não, meu bem.
Perderam-se em alguns segundos de contemplação silenciosa dos olhos castanhos um do outro, entretanto, mostrando que seu lado minimamente racional ainda era capaz de funcionar, o vampiro recordou-se de que os minutos não paravam de correr no relógio.
― Sei que não é dada a costumes como esse...
― Mas você é um romântico que não consegue deixar certos costumes ― Lúcia riu.
Àquela altura do relacionamento, o tratamento por “você” já era usado entre eles há mais tempo do que conseguiam se lembrar.
Draven retirou do bolso da calça preta um pequeno saquinho, mostrando para ela que o conteúdo era nada além de uma mecha de seus cabelos escuros e escorridos. O vampiro pegou, com todo cuidado e delicadeza, o medalhão que sempre estava sobre o vestido de Lúcia. Abriu-o, sabendo que se tratava de um camafeu com a foto da mãe da bruxa e dizeres em latim que não conseguiria repetir nem se quisesse. Apenas sabia que se tratava de algo relacionado aos Cortázar.
― Poderá estar sempre comigo, mesmo à luz do dia. ― Ele fechou o medalhão e deixou cair para o lugar que pertencia. Lúcia segurou sua mão fria. ― Ou usá-lo para um feitiço de rastreamento.
A bruxa riu mais uma vez naquele curto intervalo de minutos e o vampiro, mais uma vez, beijou os nós dos dedos de sua mão quente.
― Tenho certeza de que sempre irei te achar. Mesmo sem feitiço nenhum ― ela declarou.
Sobre suas cabeças, os vagalumes começavam a se espalhar debaixo do céu estrelado e das árvores que mexiam seus galhos ao gosto do vento, enquanto um lobisomem uivava a alguns quilômetros dali, indicando que, para eles, aquela noite acabava ali.
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