Primus
― Que tenha início essa reunião. ― Matias Salazarte ergueu a voz para sobrepô-la ao burburinho no salão do Conselho. Meneando a cabeça, passou a palavra para o líder do Clã Bruxo, que ocupava o assento à sua direita.
Os líderes dos demais clãs estavam em suas respectivas cadeiras ao centro do salão, duas de cada lado de Matias, o líder do Conselho, e alguns curiosos assistiam de fora da tribuna, cochichando para seu vizinho os seus palpites e sentenças. Nenhum vampiro além dos Altos Membros e do líder do Clã se fez presente, a maioria preferindo esperar por notícias e dar as caras após o descer do sol.
― Nesta última noite ― Bergoy Katsaros, líder do Clã Bruxo deu início à sua narrativa ―, Gilberto Benozan, querido amigo, acrescento, foi encontrado morto nos limites a oeste da cidade. Retiramos o corpo antes das autoridades mundanas intervirem, mas a agressividade dos ferimentos aponta para um ataque de lobisomem...
― Protesto! ― O líder do clã citado interveio, sendo assistido por olhos expectantes dos lobisomens presentes. ― Os senhores bem sabem da nossa rigidez para a contenção daqueles de nosso clã que ainda não aprenderam a manter o controle sobre si durante a transformação. Conhecendo muito bem os membros do Clã Lobisomem, eu garanto aos senhores que o crime não foi cometido por nenhum de nós.
― As evidências apontam para o contrário, Sr. Marques. ― Bergoy Katsaros retomou a palavra. ― E quem reitera essa informação não sou eu ou outro de meu clã, mas um do seu.
Após a fala do líder do Clã Bruxo, um senhor foi liberado a caminhar para uma cadeira de frente aos líderes, saindo da proteção dos Altos Membros de seu clã, que o separavam dos curiosos que o atacariam com perguntas. O médico, já tendo uma grande quota de cabelos grisalhos e marcas de expressão, ocupou o assento reservado.
― Suas conclusões, por favor, Dr. Lima ― o líder do Conselho pediu, oferecendo um sorriso acolhedor no rosto de barba rala.
― A causa mortis foi uma hemorragia, causada pelos severos ferimentos. Pude encontrar lacerações no peito, mais profundos nos braços e um tomando toda a região da jugular, sem dúvida o ferimento fatal.
― Vão acusar os vampiros também!
Alguém debochou de fora da tribuna e Matias pediu silêncio, restabelecido graças à ajuda dos Altos Membros.
― O horário da morte aponta para, provavelmente, o início da madrugada ― o médico retomou o raciocínio.
― Algo mais a acrescentar? ― Recebendo um balançar de cabeça do doutor, Salazarte o liberou para deixar de ser o centro das atenções. O médico rumou para a saída, agradecendo a companhia de um dos Altos Membros do Clã Lobisomem. Temia ser rechaçado se permanecesse. ― Uma investigação minuciosa será feita pelos membros que possuem habilidades para uma perícia.
― Com um representante de cada clã, suponho. ― Jeremias Alamarte, líder do Clã Vampiro, se manifestou, largado em sua cadeira.
Seu mau-humor era quase palpável, afinal, teve que dormir no prédio do Conselho para participar da reunião durante o dia, já que, por ainda ser período de lua cheia, nenhum representante do Clã Lobisomem estaria apto para participar de evento algum nas noites daquela semana. Ele aceitou a proposta a muito contragosto, tudo pelo seu clã e pelos Acordos.
― Conforme os procedimentos ― Matias retorquiu à acidez do vampiro. A atenção tornou-se novamente as cadeiras ao centro. ― Caso não haja objeções de nenhum dos lados, as investigações terão início imediatamente.
― Algo deverá ser feito a respeito dos lobisomens, se me permite dizer. ― Katsaros aproveitou a deixa. ― Apesar da ausência de um suspeito, sabemos qual o clã do culpado.
A provocação escancarada fez Alberto Marques sobressaltar-se e erguer-se de seu assento.
― Nosso clã não pode e não deve ser punido pelo erro de um único indivíduo!
― É obrigação dos líderes e dos Altos Membros conterem os membros de seus clãs dentro dos limites dos Acordos ― Katsaros rebateu.
― E nós o fazemos muito bem, todo o Conselho está de prova. Alguém se lembra de quando ocorreu a última reclamação de um lobisomem quebrando alguma linha dos Acordos? ― Ninguém ergueu a voz para contradizê-lo. ― Isso foi a tanto tempo que mal nos recordamos. Quanto ao Clã Bruxo...
― Prot...
― Ordem! Ordem! ― Salazarte teve que voltar a intervir, Marques e Katsaros se fuzilando em uma fúria seca enquanto ele estava entre os dois. ― Para mantermos a paz e evitarmos discussões tolas como esta, está proibida a acusação sem provas contra qualquer clã.
Os líderes voltaram a se sentar em seus respectivos assentos, engolindo suas reclamações e argumentos junto da saliva que foram obrigados a poupar.
― Mais algum líder gostaria de se manifestar?
Jeremias negou e Iluna, do Clã Fada e que permaneceu em silêncio durante todos aqueles minutos, finalmente se manifestou em negativa. Ela mantinha o hábito das fadas de quase não intervirem, tendo como exceção assuntos relacionados à elas ou que realmente precisavam de sua opinião.
― Portanto, declaro encerrada esta reunião. ― Salazarte fez sua voz ecoar no meio dos sussurros do salão. ― A próxima reunião será marcada quando tivermos evidências suficientes para chegarmos a um culpado. Ou caso a necessidade demande.
Com o anúncio do líder do Conselho, os curiosos foram se dispersando aos poucos em um crescente falatório. Iluna voltou para sua forma diminuta e brilhante e voou para fora dali, enquanto Jeremias procurou uma das sombras do primeiro andar do prédio para esconder-se até a noite. Katsaros trocou um cumprimento educado com Matias Salazarte e também se retirou, tentando evitar o amontoado que saía pelas escadas. Alberto Marques foi o último dos líderes a deixar sua cadeira, sabendo que teria uma conversa séria com algumas pessoas de seu clã.
☆
― Direita. Guarda alta.
O lobisomem orientava o oponente, enquanto ele mesmo mantinha os punhos fechados em posição de combate na frente do rosto, o suor caindo do cabelo crespo para salpicar a testa. Em uma brecha, seu oponente acertou de raspão a lateral de seu queixo. Apesar da situação, abriu um sorriso.
― Boa, garoto! ― Ele riu, abaixando os braços. ― Irá s...
No meio da frase, tomou um soco na mesma lateral, fazendo seus dentes baterem contra a língua.
― O que é isso, César? Não viu que eu ia te elogiar? ― reclamou, sentindo gosto de sangue na boca e sabendo que mordeu a língua sem querer.
― Guarda alta, Mauro, não era o que estava acabando de dizer? ― César provocou, levando o outro a responder com uma enxurrada de palavrões. ― Lave essa boca antes de praguejar perto da minha irmã ― rosnou incomodado para o amigo, que pulava as fitas que delimitavam o ringue enquanto massageava o ponto dolorido.
― Como se eu nunca tivesse ouvido você mesmo falando coisas piores várias vezes, Césinha. ― A garota riu, jogando um frasco com água para o irmão.
― Não revelamos nossos segredos em público, Cassie ― César devolveu no tom jocoso, aproveitando para beber com gosto o líquido após o pesado exercício físico.
A menina revirou os olhos castanho-mel, fazendo Mauro rir da interação entre os irmãos.
― Mas o que você veio fazer aqui? ― César questionou para ela, fechando o frasco. ― Quantas vezes tenho que dizer que aqui não é lugar para você?
Cassandra suspirou, sabendo o que viria a seguir, porém, foi mais rápida e cortou o sermão do irmão antes que de fato começasse.
― Eu vim porque a mãe pediu. Alberto reuniu todo mundo para uma reunião séria não tem muito tempo.
Os dois lobisomens mais velhos se encararam em mútuo entendimento. Cassie começou seu relato sobre o acontecido enquanto eles fechavam o galpão e recolhiam toalhas e água com gestos distraídos, focados demais nas palavras da garota.
― Tudo isso porque encontraram um bruxo morto e suspeitam que o culpado seja um de nós ― ela finalizou.
― Quem... ― Mauro ia começar, puxando a porta de ferro para fechar o local do qual os três acabaram de sair.
― Onde? — César interrompeu o outro.
― Perto de um bairro cheio de bruxos, na saída da cidade ― Cassie respondeu para o irmão.
― E perto demais dos mundanos. ― E os mesmos mundanos de quem os membros do Submundo eram obrigados a esconderem suas verdadeiras origens. César balançou a cabeça, finalmente sentindo o peso bater junto do cansaço.
Mauro desceu a porta do galpão com um baque, fechando-o de curiosos. Voltou-se para os irmãos, a toalha nos ombros e, tanto ele quanto César, com as mangas da camisa dobradas até os cotovelos. Cassandra não se importava nem um pouco, já acostumada, convivendo há tanto tempo entre os amigos do irmão mais velho.
― A pior parte não é ser perto dos mundanos, mas terem matado um bruxo... Sabem que eles não vão deixar isso barato ― Mauro expressou a preocupação em voz alta.
César fitou a irmã brevemente, vendo que ela ainda não percebia a gravidade da situação do alto de seus 16 anos. Melhor para ela. Mesmo que aquilo provavelmente não durasse por mais muito tempo.
― Se o culpado for mesmo um de nós, Alberto não vai deixar isso barato ― César concluiu sombrio, carregado de uma convicção que não era tão correspondida pelos outros.
Do lado de fora do galpão, algumas das casas do subúrbio começavam a acender suas velas, sabendo que dali a alguns minutos escureceria. O céu coloria-se em uma mistura de laranja e vermelho junto da despedida do sol.
― É melhor irmos embora logo, a lua não irá demorar a subir.
Com o lembrete do óbvio vindo de César, os três apressaram o passo para suas residências, sabendo que teriam uma longa noite de transformação em seus porões.
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