Cap. 1
E esta é a casa onde eu
Me sinto sozinho
Eu me sozinho agora
E esta é a casa onde eu,
Poderia ser um desconhecido
Beirut - The Rip Tide
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Alice se sentava de joelhos sobre o tapete felpudo de sua sala de estar, as pernas cobertas pela saia longa e espalhafatosa de seu vestido cinza. As pontas de seus dedos estavam firmes sobre a beirada do tabuleiro de xadrez que agora era responsável por entreter tanto a garota quanto Elinor, uma das várias criadas da mansão que por vezes se ocupava em passar o tempo com a jovem.
A menina parecia concentrada, com os olhos escuros atentos e semicerrados pousados sobre a torre de Elinor que esperava pacientemente pelo seu próximo movimento, mas, por baixo da infinidade de tecidos que compunham suas roupas e de seus sapatinhos de boneca apertados, os dedos de seus pés se remexiam inquietos numa tentativa de colocar para fora toda a ansiedade que a corroía internamente.
Pouco depois de acordar estava passando ocasionalmente por apenas mais um dos vários extensos corredores da residência quando, quase sem querer, ouviu seus pais conversando de dentro do escritório com as portas trancadas quase como se contassem um segredo – e sim, ela sabia que era uma enorme falta de educação e teria tomado uma bronca daquelas caso tivessem a pegado no flagra, mas não podia evitar visto que o assunto instantaneamente lhe chamara a atenção.
E tal assunto – que para qualquer outra pessoa seria algo bobo e perfeitamente normal – era o que vinha há horas a deixando completamente inquieta. Havia escutado sua mãe comentar que outra família acabara de se mudar para outra mansão próxima que tinha sido construída e posta à venda há somente algumas semanas, e o que mais a animava era que, segundo mamãe, o casal recém-chegado tinha um filho de idade próxima a de Alice.
Alice não era como as outras crianças, inclusive nunca havia conhecido nenhuma outra – ou pelo menos não que se lembrasse. Vivia enfurnada dentro de casa e o mais longe que seus pais lhe permitiam ir era até o jardim, e obviamente já havia protestado contra isso, implorara insistentemente para que seu pai lhe deixasse ir para a escola como as crianças normais, que lhe deixasse fazer amigos e ter uma vida comum como as outras, mas a resposta era sempre a mesma.
Alice não era como as outras. Nunca recebeu qualquer explicação além disso, seus pais não pareciam ter a menor preocupação em conversar com ela mais afundo, Alice por várias vezes chegava a duvidar se não era tudo papo furado de pais superprotetores, mas não tinha como ter certeza, afinal, como ela poderia afirmar que era sim como as outras se mal sabia como as outras eram?
Então, depois de um tempo, desistiu de tentar argumentar e desde então continuou com apenas livros de fantasia, bonecas sem qualquer emoção ou vida e criadas e mordomos que faziam o possível para parecer que se importavam com ela como companhia.
Nem mesmo mamãe e papai se preocupavam em ter diálogos que durassem mais que cinco minutos com Alice apesar de serem os responsáveis pelo seu confinamento e solidão, apenas passavam o dia trancados em seus respectivos escritórios, tratando sobre dinheiro e negócios, o que – segundo eles – era de extrema importância e, futuramente, Alice também precisaria daquilo para viver.
– Senhorita? – Elinor chamou suavemente, os olhos azuis brilhando com certa curiosidade, provavelmente por já ter chamado a menina pelo menos duas vezes e ter recebido apenas silêncio como resposta.
– Sim? – Alice respondeu finalmente desistindo de encarar o tabuleiro de xadrez como se as peças pudessem se mover sozinhas, sua expressão era calma mas também demonstrava claramente o tédio e o cansaço que enfim chegavam depois de treze anos fazendo sempre as mesmas coisas todos os dias.
– Bom... É a sua vez – a moça explicou apontando para uma peça qualquer.
– Oh, claro... – a menina assentiu, soltando um longo suspiro enquanto se ocupava em mover seu cavalo uma casa à frente. – Me desculpe Elinor, ando mais distraída que o normal.
– Não quer mais jogar? – Elinor perguntou, apoiando as bochechas rosadas sobre as mãos.
– Não, não é isso – Alice negou automaticamente, sem dar a si mesma tempo para pensar pois, na verdade era exatamente aquilo, sim. O jogo já não a divertia mais como antes, mas tinha medo de parecer grosseira já que sabia que xadrez era a atividade que Elinor mais gostava para fazerem juntas.
– Ah, senhorita Alice... – Elinor disse com um sorriso gentil no rosto. – Trabalho aqui desde que tinha a sua idade, te vi nascer e ajudei sua mãe a cuidar de você desde então, não é difícil perceber quando está mentindo.
A resposta de Alice foi mais uma longa onda de silêncio enquanto encarava a moça com seus grandes olhos escuros. Elinor realmente a conhecia bem o suficiente a ponto de saber reconhecer quando Alice contava uma mentira? Difícil dizer, a menina acreditava que nem mesmo seus pais a conheciam bem assim.
– Me desculpe – disse por fim num sussurro sem graça.
– Tudo bem – Elinor respondeu com um sorriso doce. – Sei que não faz por mal, muito pelo contrário, é até bem gentil de sua parte se importar com alguém como eu.
– E por que não me importaria? Afinal, somos pessoas iguais, e você sempre faz tantas coisas por mim – Alice também sorrindo pela primeira vez em algumas horas e Elinor não pôde evitar uma risadinha diante de tamanha inocência.
Não quis dizer nada a Alice para evitar que a menina se sentisse mal – e também porque duvidava que ela fosse de fato entender a situação, afinal ela era só uma criança que mal conhecia os problemas e estigmas da vida real, – mas a verdade era que Elinor já estava acostumada a ser tratada como alguém inferior, pois não muito diferente da menina, havia crescido por entre aquela imensidão de corredores e cômodos vazios e silenciosos, com a única mas não pequena diferença de que havia sido ensinada, desde criança, a servir e obedecer.
Porém, mesmo sendo rodeada de mimos e riquezas, Alice demonstrara desde sempre ter enorme bondade e simplicidade em seu coração, fazia Elinor se lembrar muito de Elizabeth quando jovem – a mãe da menina costumava ser igualmente doce e alegre antes de se afastar do restante da família e começar a se envolver nos negócios do marido.
– O que acha de tomar um chá e comer alguma coisa? Já se passou um tempo desde o almoço – Elinor propôs já que a partida de xadrez agora se via esquecida por ambas, sem chamar qualquer atenção, e Alice sorriu ainda mais, imediatamente concordando e se levantando do chão.
Ela bateu as mãos cobertas por suas luvas brancas na saia longa e cheia de seu vestido, alisando o tecido recém amassado, e entrelaçou seu braço com o de Elinor que, apesar de mais velha, não era muito mais alta e muito menos aparentava ter a idade que tinha com sua pele lisa e feições delicadas como as de uma boneca.
Quando chegaram a sala de jantar, a moça continuou seu caminho rumo à cozinha enquanto Alice se ocupou em se acomodar em uma das várias cadeiras almofadadas postas em volta da longa e elegante mesa de madeira maciça. Apoiou o rosto sobre as mãos e se permitiu observar o ambiente por alguns segundos por mais que já o conhecesse como a palma de sua mão.
Na parede à frente havia uma enorme pintura em uma moldura dourada – a tela mostrava uma Alice ligeiramente mais baixa ao lado de seus pais, ela se lembrava de ter sido um presente de aniversário que ganhou quando completou dez anos – presente para o qual não deu muita importância, afinal, que criança de dez anos ficaria eufórica por ganhar um quadro sem graça? Mas agora a peça possuía um valor sentimental um pouco mais alto para Alice, lembrando-a de dias distantes onde sua mãe lhe dava um pouco mais de atenção.
Na imagem Alice tinha os longos cabelos escuros divididos em duas tranças que caíam perfeitamente pelos seus ombros, o sorriso largo e animado em seu rosto deixava visível as covinhas profundas em suas bochechas, bem como uma "janelinha" no lugar onde um de seus dentes costumava ficar. Ela mal podia se lembrar da última vez em que sorrira daquela mesma maneira.
Do seu lado direito Elizabeth também sorria, mas Alice já não tinha tanta certeza se também era um sorriso sincero, sabia que havia sido por volta dessa época que os sorrisos de sua mãe haviam começado a desaparecer aos pouquinhos, gradativamente se transformando em expressões preocupadas que agora tomavam conta da mulher por completo.
Do lado esquerdo seu pai estava sério como sempre, somente com o lábio inferior levemente inclinado para cima como se ele quisesse sorrir mas já houvesse se esquecido há muito como fazê-lo ou até mesmo como fingir.
Sem dúvidas Alice era mais parecida com a mãe. Os olhos escuros poderiam ser facilmente assemelhados ao céu noturno cheio de estrelas, além das mesmas covinhas nas bochechas, os lábios finos e rosados e o rosto pontilhado de sardas. A única coisa que herdara do pai haviam sido os cabelos pretos e extremamente lisos – os de sua mãe eram louros, beirando o prata, e cheios de cachos grandes e elegantes que combinavam perfeitamente com ela.
Elizabeth era linda e Daniel era, sem dúvidas, um homem de sorte – porém um homem de sorte que não sabia apreciar os tesouros que a vida lhe dava, até mesmo a pequena Alice já notara o quanto ele era frio com sua mãe, sempre agindo como se mal fizesse diferença a esposa estar ali ou não.
Na verdade, era como se nada para ele faria diferença se estivesse ali ou não, nem mesmo a própria filha. A não ser o dinheiro, isso Alice sabia que importava aos montes para ele, inclusive a única vez que a menina o vira chorar fora quando as coisas deixaram de ir tão bem quanto de costume nos negócios e precisaram chegar ao ponto de cortar gastos e demitir alguns dos funcionários da mansão.
Alice suspirou profundamente e fechou os olhos por um breve instante. Tudo era tão silencioso naquele lugar tão enorme, as únicas coisas que ousavam fazer barulho vez ou outra eram as antigas e pesadas portas de madeira, que rangiam com suas dobradiças velhas em uma curta reclamação toda vez que alguém as fechava ou abria – era até como se pudessem conversar entre si, usando diferentes tons e volumes de rangidos.
Foi um pensamento ligeiramente interessante para a mente entediada de Alice que questionou se, se dispusesse a entender mais um pouco a tal linguagem das portas, poderia entendê-las e, quem sabe, participar do diálogo um dia?
– Pronto – Elinor disse de repente e Alice abriu os olhos, vendo a mesma surgir na sala equilibrando duas bandejas sobre as mãos. – Chá verde com mel e biscoitos de chocolate. Sei que são os seus favoritos.
Com um sorriso gentil, a moça as colocou sobre a mesa e despejou a bebida quente do bule em uma pequena xícara de porcelana, empurrando-a em direção à menina.
– Muito obrigada – Alice agradeceu e se aprontou em pegar um dos biscoitos que realmente eram seus favoritos, Elinor nunca errava e era uma das pequenas coisas cotidianas que sempre lhe aqueciam o coração.
– Não precisa agradecer – Elinor disse bagunçando os cabelos da garota num gesto brincalhão e se sentou na cadeira à frente em seguida.
Um longo período de silêncio se seguiu enquanto Alice comia. Vez ou outra, Elinor tamborilava as unhas em cima da mesa ou soltava longos suspiros, também perdida nos próprios pensamentos até que Alice resolveu perguntar:
– Elinor, por acaso você sabe sobre a família que vai vir morar aqui? Eu ouvi a mamãe e o papai conversando hoje de manhã e fiquei curiosa...
A moça deu uma risadinha leve ao perceber que Alice mal podia conter a ansiedade em sua voz.
– Então é por isso que está tão distante hoje, hm? – Perguntou e notou o rosto de Alice enrubescer. – Bom, acredito que sei apenas o mesmo que seus pais, nada muito interessante. São uma família pequena, somente o marido, a esposa e o filho que deve ter mais ou menos a sua idade.
– Outra criança então – Alice disse num murmúrio e Elinor assentiu.
– Mal posso imaginar o quanto deve estar animada com a ideia de conhecê-lo, sei o quanto é solitário ter que passar o tempo inteiro aqui sozinha, rodeada apenas de adultos ocupados, mas... – Elinor respirou fundo e franziu as sobrancelhas, pensando por um momento. – Apesar da ansiedade e euforia, seja cautelosa.
– O quê? – Alice perguntou confusa e a moça apenas meneou a cabeça.
– A senhorita tem um bom coração Alice, e existem muitas pessoas ruins hoje em dia que podem tentar tirar proveito disso e te machucar, seja cautelosa e não confie tanto de maneira precipitada em estranhos, vai por mim, conselho de amiga – Elinor disse deixando a seriedade de lado e piscando para a menina com um sorriso.
– Por que diz isso?
– Não sei ao certo, só um pressentimento.
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Oi gente, aqui é a Chessie! Como estão?
Eu ia demorar um pouco mais pra repostar o livro porque ainda não reescrevi inteiro e queria postar todos os capítulos de uma vez mas decidi ir postando aos pouquinhos mesmo conforme vou escrevendo, o que acham? Preferem assim ou tudo de uma vez? Tô pensando ainda kkk
E para quem leu a versão antiga: sei que ainda é só o primeiro capítulo mas já conseguem ver alguma diferença? Pra mim tá bem diferente tanto que foi e ainda tá sendo bem trabalhoso reescrever tudo mas é por uma boa causa kkk
Enfim, acho que é só. Muito obrigada pela atenção e pela leitura - tanto para os que já leram antes e vieram revisitar Alice e o Outro Lado quanto para os que estão chegando agora, espero que gostem e fiquem conosco até o final!
Ah, e um feliz Halloween! Cuidado com os espelhos, hehe...
Beijos da Chess ♥
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