4. A Genealogia da Terra


É fato que não só o destino é cheio de graça, como também os discípulos de seu antagonista, o passado (historiadores, paleontólogos, etc) e os de seu alicerce, o presente (sociólogos, jornalistas, etc). E tendo absoluto domínio sobre os próprios talentos, o destino não se importa com as revelações desta crônica, pois muito antes de o tataravô de sua autora nascer, ele já sabia que ninguém iria levá-la a sério.

Privilegiado por uma juventude gloriosa e repleta de ouro, continente africano é como um avô para os demais. Constituiu-se de um poderoso império por três mil anos, que se degradou em menos de dois mil. Junto com a Europa e a Ásia, forma o "Velho Mundo", embora os mais recentes desfrutes da companhia dos colegas de cajado sejam ocasionados por interesses financeiros. É compreensível que a luta pela independência dos países africanos seja definida pelo termo descolonização, como se sugerisse o grito de guerra "Descola!" – aliás, um custoso e sangrento processo em vão, já que o continente segue dependendo do estrangeiro por meio da dominação econômica.

Isto explica seu atual isolamento, exausto depois de ter criado os filhos que o abandonaram naquele asilo desértico. O solitário ancião está doente, imobilizado, e como se não bastasse, todo cortado pelas linhas de cerol do Equador, Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, além do meridiano de Greenwich, que quase o cegou. Os planaltos acentuam seu decrépito estado, formando superfícies aplainadas nas quais se destacam picos rochosos e enrugados de velhice, também responsáveis pelas depressões (físicas e psíquicas), que cortam rios incapazes de chegar ao mar, pois suas águas evaporam – desde o início da menopausa. O que representava a singularidade do continente era o Nilo, imprestável desde que se casou com o Mediterrâneo. E nas savanas só "dá zebra!".

O continente europeu já foi aquele filho que orgulha os pais com as notas altas da escola sujeitas à evolução, como se provava a cada província conquistada, a cada filósofo nascido, a cada novo dialeto falado. E depois de todas as suas façanhas heroicas – na realidade ou nas epopeias – não se entregava ao descanso. Teve suas fases complicadas, como todo o Mundo. Uma infância típica, cheia de imaginação para lendas (mais propícia pelo leite da loba que o amamentou) e para elaboração de religiões politeístas com deuses antropomórficos. Revezava entre brincar de rei, presidente e imperador, e precisaria de um pedagogo na fase paranoica dos poderes de Xerxes, Nero e Alexandre. A puberdade marcada pelas Cruzadas, a Inquisição e a Peste Negra. Entrou na adolescência, sua fase "Ismo Isso, Ismo Aquilo": Mercantilismo, Renascentismo, Luteranismo, Anglicanismo, enfim... Mas retardou a velhice com o Renascimento.

Atualmente, na terceira idade, é cheio de doenças fisiológicas, tais como: Tectonismo, Efeito Estufa, Camada de Ozônio, e etc... que faz questão de passar aos outros. O menor continente, em termos geográficos, prova de que tamanho não é documento.

O continente asiático se destaca pelo fato notável de ser o mais corpulento do mundo. A ele devemos a escrita, o alfabeto, algarismos arábicos, entre outros conteúdos que aprendemos no jardim da infância. Sofrera grandes crises de identidade, tanto que necessitou de muita meditação para sobreviver a dúvidas, como "Buda, Maomé ou Cristo?"; "Ele é chinês, japonês ou coreano?"; "Na Índia devia ter índio?". Orgulha-se do Ganges, da Toshiba, da Suzuki... Em compensação, envergonha-se do Talibã, do Gengis Khan, exemplo de mongolismo e da Luci Liu (desde a filmagem da cena em que uma motoqueira americana parte ao meio, com uma espada de samurai, o órgão do maior orgulho japonês – cérebro – em Kill Bill).

A Antártida é aquele primo multimilionário que ainda não foi explorado pelo resto da família porque, de tão frio e rodeado de água, está sempre com uma gripe altamente contagiosa. Inclusive foi assinado um acordo entre 39 países que garantiram desconsiderar o continente em suas ambições durante 50 anos – mais ou menos o que durará seu tratamento contra a tuberculose. Por isso chega a ser mais solitário que o africano. Com o medo constante de contaminação (tanto é que o seu branco total no mapa já lembra ambientes hospitalares), não se fazem muitas pesquisas lá e nada mais de interessante se sabe a respeito dele.

A América teve um nascimento complicado: Colombo o descobriu sem querer, Américo Vespúcio o registrou e uma cambada de europeus o arrancou dos braços indígenas para tomar-lhe no colo. Por conseguinte tomaram um baita coice com a sucessão de declarações de independência. É o filho ingrato, desconsiderou todos os esforços do seu pai europeu, que lhe forneceu a melhor educação possível, e de seu avô africano, obrigado a lhe ceder uma grande demanda de escravos.

Seu organismo pode ser estudado em três áreas: cérebro, coração e pernas.

A América do Norte é o cérebro. O primeiro a se tornar independente do europeu, e o único a ainda sê-lo, como o filho que arranja um ótimo emprego e acaba tendo que ajudar em casa, com os irmãos ainda em fase de crescimento. Ajudou a Europa na Primeira Guerra Mundial, arrasou a mesma na Segunda, devastou cidades do Japão, desafiou a antiga URSS indo à Lua, invejou todo o Mundo com Hollywood, atraiu milhares de turistas até as ilhas do Havaí e atualmente tem lidado com terroristas. Uma biografia cheia para um novato!

A América Central é o coração. Temente à Virgem de Guadalupe, a mais piegas teledramaturgia, vive da renda dos coiotes que levam clandestinos para os países mais elevados, e é constantemente humilhada pelo próprio seriado "Chaves", no episódio em que o Nhonho diz ter raspado as Antilhas. Grande indústria de açúcar e fumo, haja coração saudável para sobreviver às diabetes e pneumonias que a atacam. Pode ter sido mesmo uma crise de asma no subterrâneo da terra que provocou a tragédia do Haiti ou o aceleramento cardíaco do continente.

A América do Sul são as pernas. Além de estarem freqüentemente descalços – índios, lutadores de capoeira e mendigos –, são peculiares na arte do futebol, e do autêntico samba no pé. É aquele adolescente que não se importa com nada, prefere a diversão que a obrigação e não pensa em consequências. E que culpa temos nós se, quando viemos ao mundo, todo tipo de evolução já estava com mais de meio caminho andado? Restou-nos apenas dedicar-nos a fazer o melhor uso delas, como por exemplo: encher nossas prateleiras dos clássicos estrangeiros, que não lemos para conservá-los; e pedir dinheiro emprestado para movimentar a economia global. É lógico que consumimos mais que o necessário, e o que seria da cadeia alimentar universal sem nós?

O continente oceânico é um caçula paparicado, localiza-se ao sul com os menos favorecidos, embora já tenha ótima consciência da superioridade. De tão jovem, ainda não contribuiu em quase nada, e até onde sei nós usamos de referência oceânica o Demônio da Tasmânia, e os ornitorrincos. O resto não tem a menor importância.

E o destino não se importa com as revelações desta crônica, pois muito antes da Pangeia se desintegrar, ele já sabia que ninguém iria levá-la a sério.


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Esse texto é recheado ironias e críticas sociais. Peço perdão se ofendi alguém com ele, mas garanto que não foi meu intuito, é apenas um humor mais "negro". 

Agradeço a todos que leram!  

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