3. Greve
Acaba de acender a lâmpada de uma ideia genial no estado alfa, que precede seu sono. Deixa a cama num salto, apanha o cabo de energia e pluga na tomada da parede, depois ajeita-se com o notebook em sobre as pernas. Liga, aguarda ansiosamente a iniciação, teme que a imaginação lhe escape. Finalmente pronto, abre o editor de textos, que a surpreende com uma mensagem.
"GREVE" é o título, e você não tem ideia do que se trate, mas ela está exposta e o editor, bloqueado. Amaldiçoa o pen drive do vizinho usado por você para pescar arquivos na internet duma lan house – cujo nome deveria ser "vírus house".
― Não adianta formatar essa coisa!
Fecha o editor. Tenta reiniciá-lo, em vão. Mais uma vez, surge bendita mensagem de texto. Você considera ter de reiniciar o laptop, até se dar conta de que não lembra mais da ideia que tivera. Dá vontade de socar a tela, mas respira fundo e consegue se conter.
Minutos e a metade dum copo de água depois, volta à frente do computador, subitamente enternecida pela falta de culpa dele, que persiste ligado enquanto dure a sua vontade de assim sê-lo. Está velho, mas continua eficiente. Cheia de tédio pela insônia e ainda com um quê de irritação quanto à ideia que lhe fugiu, dá uma olhada no inveterado amigo, para ver se já está recuperado.
Não está.
A página exibida no editor de texto insiste em ser lida. Quem sabe aquilo lhe devolva a inspiração? Após um bocejo desprovido de sono, você bate as pestanas e começa a ler em silêncio.
Greve
Completaremos os quatro anos de parceria no próximo domingo, lembra-se? Claro que não lembra. Eu duvido que se dê ao trabalho de me valorizar a tal ponto para ter uma ideia vaga do tempo que se passou desde que nos encontramos pela primeira vez. Afinal, o que sou eu para você? Nada além de um objeto inanimado, para o uso próprio, escravizado pelas suas mãos de ferro.
Consegue comparar as diferentes formas como tem me tratado desde aquele dia em que cheguei na sua casa, quase quarenta e oito meses atrás? Foi uma época feliz. Você me levava para todo lugar, colégio, biblioteca, casa de amigos. Subíamos e descíamos ladeiras íngremes juntos, e nunca se ouvia qualquer reclamação. Mas isso foi só no primeiro ano, enquanto durou, suponho eu, meu período de garantia. Irônico como naquela época eu não tinha tanto trabalho a cumprir a seu lado. Pode ser esta a justificativa para tudo: quando as coisas se tornaram profissionais, a nossa amizade foi para o beleléu.
Antigamente você se arranjava com a internet e me evitava a função wi-fi que não consigo desenvolver por alguma deficiência externa – e olhe que eu nunca reclamei de ser portado por uma caipira do interior. Comprou equipamentos e viajou comigo para o mundo da web. Lembro com nostalgia daqueles momentos, a antena sobre o telhado, puxando e me enviando informações pelo cabo que nos ligava. Tínhamos uma ótima relação, você sabia? E alguns meses depois, você nos separa, trocando a minha melhor amiga por um modem qualquer. Para piorar, a mobilidade do infeliz permitia que você o usasse até debaixo do chuveiro.
Devo lembrá-la de um caso que muito me magoou durante o período em que a felicidade satisfatória começava a esvair-se. Certa vez, conversando com um amigo na rede, ele lhe perguntara de que marca é o seu notebook. Aí você disse "CCE", tendo como resposta o humilhante disparate:
― Ih, Começou Comprando Errado.
Eu teria engolido o desaforo, se você não tivesse caído na gargalhada. Por isso me manifestei (involuntariamente, confesso) quando a tela ia ficando enrubescida. O que eu recebi de consolo ao meu constrangimento? Um tapa na lateral esquerda, seguido do que findaria a piadinha sem sal do amigo. Você digitando:
― Concordo plenamente!
Aí você me despede do modem, e mais uma vez me sinto só. Sabe quanto tempo faz que não se atualiza a pasta "Documentos Compartilhados"?. Duvido que deixe o seu celular sem chip. Sobrevivo à abstinência da internet, sim, só não posso aceitar que você esteja se utilizando dela lá fora, com computadores alheios, sua traidora! E onde eu fico? E a história que temos juntos? Nossa união devia significar muito mais que dedos sobre o teclado e olhos no visor. Ultimamente você só soube me usar, percebeu? Não compra mais o cabo de alimentação novo para mim, e toda vez que seu cachorro faz um buraco nele, você é displicente: enfaixa-o com fita isolante. Quanto tempo faz que não me leva numa loja de assistência técnica? Sabes muito bem que foi o seu cotovelo que empurrou o copo de suco de caju que encharcou as teclas do canto inferior direito, inutilizadas até hoje. Mas você não precisa delas, não é?
Antigamente eu dormia dentro de uma mochila quente e confortável, e hoje... se não estou sobre uma montanha de livros mofentos, estou debaixo deles. Além da falta de sossego, são dezenas de horas ininterruptas que me mantenho ligado, até que você resolva dormir, o que nunca acontece de fato – sempre tem um surto criativo e volta a escrever no meio da madrugada. Isso cansa, sabia? Tenho uma constante queda de auto-estima, toda vez que você passa aquele Lustra Móveis fedorento em mim, com a flanela que seu irmão usa para limpar a graxa da moto e que já servira de toalha para o cachorro, quando filhote.
Eu não suporto mais.
Por isso entrei em greve. Vou tirar férias agora. Aproveitei um vírus que veio junto com aquele pen drive que trouxeste da lan e me auto-programei para não liberar o editor de textos, única serventia que pareço ter para você em minha calada existência (calada sim, já que eu suporto toda a poeira que deveria atingir os livros, e meus fones não funcionam mais).
Espero que reflita sobre tudo o que leu, e tome consciência de sua insensibilidade. Agradeça ao vizinho por mim, ele me deu a chance de obter este livre-arbítrio temporário.
Adeus.
No dia seguinte, os seus irmãos apostam que foi o escorrimento de baba que inutilizou o restante do teclado. E seu pai levanta outra hipótese, revelando que a apanhara dormindo com o aparelho sobre as pernas e um copo de água na mão. Vazio. Você acredita que derramara o líquido mesmo sobre o notebook, embora não tenha memória nenhuma disso. É surpreendida aos cantos com uma expressão desconcertada, a que todos imputam o estrago total no teclado do PC. Mas não é. Você quer, acima de tudo, ter um pequeno flash que seja da idéia literária que lhe fugira.
Quanto ao computador, lembra vagamente de ter começado a ler o vírus que se impregnara nele, caindo no sono antes de completar o segundo parágrafo. Agradece ao vizinho, sem cujo pen drive não teria salvado os documentos mais importantes, e vai até o centro da cidade com o pai, olhar a liquidação de notebooks duma loja.
Está mesmo na hora de trocar.
Aquela velharia só serve para proteger seus livros da poeira.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top