Sistema Corrompido
O desespero era palpável. Shawn se levantou de repente, sua respiração se alterando. Ele se debateu quando foi contido, mas as únicas mãos que o acalmaram eram as que ele já conhecia.
— Shawn..? – Aquela voz.. As lágrimas escorreram pelo rosto do Mendes, e o acidente passou pela sua cabeça. Seu peito doía, e ele teve medo de olhar pra baixo, mas olhou.
Filamentos azuis. Shawn tinha filamentos azuis desenhando toda a sua pele, desde as pontas dos dedos até onde estava visível, mas sabia que aquilo se estendia por todo seu corpo. E não fazia sentido algum. Diante dos seus olhos, as veias sintéticas sumiram sob a sua pele.
— Eu não entendo.. – Sussurrou, perdido. Uma mão cobriu a sua, e ele voltou sua atenção para aquele quem o havia tocado.
Nicholas.
— Do que você se lembra?
Das pessoas o abordando. Dos socos, chutes. Da adrenalina correndo suas veias, da sua necessidade de entrar no carro. Do sangue tampando sua visão turva. Do mundo rodando, da voz de Nicholas. "Shawn!"
Antes disso, ele se lembrava do seu coração batendo forte no peito, das palmas das suas mãos suando frio, dos sorrisos involuntários. Shawn Mendes suspirou.
— Eu me lembro de tudo. – Disse, baixinho, fazendo soar como um segredo. – Eu estava morto, Nick..
O mais velho dos dois assentiu. De alguma maneira, o Mendes esperava que ele negasse, embora soubesse da verdade, lá no fundo. Ele se tornara imperfeito. Ele sentia seu coração batendo no peito, e a enxurrada de informações na sua cabeça devido a ansiedade era a mesma de sempre. Shawn era exatamente o mesmo de antes, mas sabia que nada nunca voltaria a ser como era.
— Eu fiz errado em trazer você aqui? – A pergunta cuidadosa de Nick finalmente fez com que o mais novo olhasse em volta.
A revolução está começando.
Estava numa espécie de laboratório. Shawn sabia que era onde "a coisa" acontecia, desde que Nicholas havia o descrito. Paredes brancas demais, no entanto, agora tinham a cor do seu quarto, e a organização dos móveis era como a do seu dormitório. Era assim que eles evitavam que os "pacientes" surtassem; os deixavam num ambiente familiar demais. Mesmo sabendo que era tudo de mentira, Shawn relaxou.
[ Relatório. Dia 1. ]
As células se dividem em polos enquanto uma única se parte em duas, separando as cores pintadas por tinta de segunda mão para uma versão quase morta, aparte.
•asafworld•
— Talvez. Eu não sei se deveria estar vivo agora, eu estou.. Confuso. – Confessou, abrindo os braços. Nicholas se sentou na beira da cama e o abraçou apertado. – Quem sabe que eu estou aqui..?
— Ninguém. Só eu e você sabemos do que aconteceu naquela noite. – O tom do Jonas era cansado. "Naquela noite"? Shawn se perguntou quanto tempo havia se passado. – Me desculpe por ter trazido você de volta assim..
— Está tudo bem. Eu estou feliz que posso passar mais tempo com você agora. – O Mendes se aninhou nos braços do mais velho e eles se deitaram juntos. Ele ouvia as batidas fortes do coração de verdade de Nicholas.
Mais tarde, ele descobriu que passara três dias apagado. Esse tinha sido o tempo para que juntassem as peças do seu corpo e programassem seu novo sistema. O download de dados demorou demais; algo parecia ter se corrompido no final da primeira vez e tiveram que recomeçar do 0. Como se algum vírus tivesse invadido o sistema, mas isso era impossível. Impossível.
[ Relatório. Dia 2. ]
As mentiras se espalham como doce nas mãos de um grupo de crianças esfomeadas. Enquanto isso, o resto das células percebe o despir da falsa realidade conforme o piano é dedilhado com emoção. Ainda assim, tudo está confuso no meio desta guerra. A única coisa que não se pode mentir, é sobre sua existência!
•asafworld•
Ele se olhava, nu, diante do espelho, em seu dormitório de verdade. Shawn Mendes. Sua cabeça era um turbilhão de perguntas. Como eles faziam isso? Sentiria dor como antes? Sentiria prazer quando fizesse amor com Nicholas? Ainda teria as mesmas emoções? Ódio, felicidade, tristeza? Ele imaginava que agora, dentro de si, ligavam-se fios azuis ao invés de veias. Que seu coração era um emaranhado de cabos que pulsava ritmicamente. E enquanto ele se olhava, seu corpo brilhou. Os filamentos enfeitavam seu corpo simetricamente, subiam pelas suas pernas, deslizavam pelo seu tronco, desciam pelos braços e enrolavam-se em seu pescoço. Enfim, emolduravam seu rosto, acendia seus olhos e terminava na raíz dos seus cabelos. Shawn envolveu seu corpo com os próprios braços, e se sentiu lindo. Lindo como nunca. E regozijou-se na sensação.
Era diferente de quando se sentiu amado por Nicholas pela primeira vez. Era mais forte, mais estável. Não se lembrava de quando havia se sentido bonito daquela maneira sem ser ao lado do Jonas, e aquilo o trouxe uma onda de confiança. "E daí que não sou perfeito pros outros? Não é assim que me sinto", pensou. "Talvez agora eu entenda como Nick me vê."
Ele demorou a se vestir, a desprender os olhos de sua bela imagem refletida. Queria sair, e não teve medo dessa vez quando se deparou com um convite que havia sido enviado para todo o campus. Mais uma daquelas festas de calouros. Shawn sorriu, animado, e correu para encontrar Nick.
[ Relatório. Dia 3. ]
Fora de controle, alguns sonhos lutam contra pesadelos e fica difícil respirar. Alguns usam amarelo. Outros usam vermelho, mas pelas razões erradas. As cores parecem se desfazer quanto mais as pessoas tentam usá-las. Mas usam para parecer, e não para ser. Mal sabem elas que cores forjadas não duram para sempre!
•asafworld•
Ele foi acordado com o seu nome sendo chamado diversas vezes. Enfim, percebeu que se debatia, e agora estava sentado, o corpo suado, as mãos tremendo, os olhos lacrimejando.
— Peter. – Foi a primeira coisa que disse, a voz rouca rasgando a garganta. Nicholas arqueou as sobrancelhas; não conheciam ninguém com aquele nome. Seus dedos deslizavam numa carícia pelas costas de Shawn.
— O que disse? – Um confuso Nick Jonas sussurrou, sonolento e preocupado. Os olhos brilhantes de Shawn encontraram os do namorado, e ele viu o quanto estava cansado. O Mendes se sentiu culpado por um momento.
— Os dois tons de vermelho. Peter. Eu não.. Eu não sei. Tem alguma coisa muito errada com a minha cabeça.. – Murmurou, se encostando no peito do mais velho e fechando os olhos. Seus cabelos eram acariciados agora.
Silêncio.
— Deve estar se acostumando ainda.. Foi uma transferência e tanto. Talvez.. Os três dias mais cansativos da vida de todos que estavam lá.. – "Incluindo eu", quis completar, mas não completou. Não queria que Shawn fosse sobrecarregado de informações logo agora que tinha acabado de voltar. Entretanto, aqueles três dias foram insanos.
Lembrava-se dos paramédicos grotescamente arrancando o galho do corpo inerte e deixando que ele passasse alguns segundos consigo no colo. Para saborear seu luto. Um tanto masoquista, mas Nicholas não se importou. Chorou até o corpo ficar frio e as lágrimas o deixarem com dor de cabeça. Então, tomou uma decisão.
Fugiu.
Fugiu para o único lugar que sabia que ia fazer com que seu luto acabasse de uma vez por todas: traria Shawn Mendes de volta, nem que aquilo fosse a última coisa que fosse fazer em toda a sua vida.
Quase foi.
A energia vital de Nicholas foi utilizada até quase o esgotamento para que pudessem reanimar Shawn o suficiente. Sem aquilo, o download de dados não teria sido possível. Os tubos em seu braço pareciam queimar, ardiam como o fogo do inferno, e ele sentiu o grito quase estourar suas cordas vocais quando a vida passou a ser retirada do seu corpo. Ele se sustentou, firme, por Shawn, durante três dias quase inteiros.
Quem é Peter, na verdade?
A luta interna misturava os dois tons de vermelho que nunca se tornavam homogêneos. Como água e óleo, eram muito diferentes para que suas células entrassem em harmonia. Como um rio se encontrando com o mar.
Vermelho como sangue. Coração ou agressão?
[ Relatório. Dia 4. ]
A história está sendo contada e repassada. Olhando para as nuvens negras no céu de hoje, algumas células do sistema refletiram sobre como ciclos funcionam... Pesquisam sobre como o quebrar conforme se aprende com o que já passou. Esses são a Resistência.
•asafworld•
Shawn estava ajoelhado no meio do campus. Sua cabeça estava baixa, os olhos apertados e as mãos pressionadas com força nos ouvidos. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, enquanto seu corpo parecia travar uma batalha consigo mesmo. Ele tentou e tentou reprimir, mas aquilo estava exaurindo suas forças. Os sons eram altos demais, estava claro demais, o sol queimava sua pele. Não devia ter saído do dormitório.. A sensação de que tudo estava errado o atingia com força como se fossem socos no rosto. Não devia estar vivo. Não devia estar na faculdade. Não devia estar agindo como se nada tivesse acontecido. A única coisa que lhe parecia certa era a aliança em seu anelar e o violino em seus braços, quando tocava.
Foi puxado pra se levantar e uma jaqueta cobriu parcialmente a luz solar não muito tempo depois. Ergueu o rosto com dificuldade, e a briga dentro de si acalmou.
Nicholas. Sempre Nicholas.
Suas pernas fracas foram guiadas até a sombra, onde se sentou, e seus olhos ainda estavam com um brilho fraco azulado. Trouxe-lhe água e um pouco de paz.
— O que aconteceu? – Perguntou o mais velho, o tom suave e bem baixo. Shawn agradeceu por isso. Um suspiro.
— Peter aconteceu.
[ Relatório. Dia 5. ]
Rachaduras diferentes estão se mostrando a luz. E se define como um "colapso em pesadelo" o momento que o embate é inevitável. Enquanto algumas células se movimentam de um lado, outras se armam.
•asafworld•
Peter não era uma pessoa boa. Peter, na verdade, não era uma pessoa. Era um vírus. O vírus-Shawn, que havia se transformado e corrompido. Que havia evoluído sozinho em dias o que a ciência não tinha descoberto como fazer em anos. Peter era corajoso. Corajoso até demais. Longe da sala de música e dos braços do Jonas, o vírus lutava até se mostrar. Quebrava coisas, ameaçava pessoas que aos olhos de Shawn representavam perigo, Peter não tinha medo.
Ele fez uma tatuagem. Shawn odiava agulhas, mas Peter fez uma tatuagem. Um pássaro agora estava desenhado em sua mão direita. Embora Peter e Shawn fossem pessoas diferentes, tinham dois amores em comum; um deles, era Nick, e o outro, a música. A ideia da tatuagem era simples: onde quer que estivesse, sempre voltaria para os braços do seu amor, que era como seu lar. Após se acostumar com isso, aceitar a tatuagem fora fácil. Mas Peter ainda não era uma pessoa boa.
Shawn queria contar a todos sobre o vírus instalado em sua cabeça. Sua sina. Seu incômodo. Entretanto, Peter o alertou: ele seria resetado e deixaria de existir. No mundo de 3078, não havia espaço para falhas no sistema. Não havia espaço para nenhum tipo de vírus. Então, Shawn segredou Peter à Nicholas, e deixou que este os acalmasse em conjunto. Tudo ficaria bem. Shawn continuaria vivo.
[ Relatório. Dia 6. ]
A este ponto da estrada, além de curvas e vagalumes, há um ar diferente. Alguns momentos embaçados, outros nítidos. Perspectivas. Elas continuam mudando, tanto por dentro quanto por fora. De todas as formas, a este ponto da estrada, a verdade está saindo do acostamento.
•asafworld•
Era noite. A lua iluminava a maior parte do prédio e Nicholas não estava lá. Peter estava. Ele queria mostrar a Shawn como era quebrar as regras. Como era bom se sentir livre.
3:07 AM.
Os tênis foram colocados, os cadarços amarrados, e o corpo se ergueu da cama. No reflexo do espelho, a aparência era de Shawn, mas era Peter por dentro. Ambos tinham consciência disso, e Shawn já havia desistido de lutar por espaço. Talvez devesse ceder de vez em quando. Ele o levou para além; para um lugar, que, inclusive, conhecia bastante.
Tinham ido caminhando, mas Shawn percebeu mesmo assim.
Ele fez de tudo para que não fosse, mas, no final, era Peter quem mandava. Eles estavam na floresta agora, caminhando tranquilamente, sem medo algum dos sons não exatamente acolhedores.
"O que pensa que está fazendo, Peter?"
— Não acha esse lugar interessante? – A voz era sarcástica, mas era a voz de Shawn!
"Não exatamente.."
A floresta, afinal, era onde Shawn tinha morrido.
Caminharam até onde havia sido o acidente, e os dedos tocaram a madeira quebrada. Embora o galho tivesse sido cortado, ainda haviam resquícios ao redor. Como se ninguém se importasse o suficiente para deixar o local limpo. E não se importavam mesmo.
— Olha só pra você agora, Shawn. Está vivo. Sabe que algumas centenas de anos atrás, isso teria sido impossível?
"Eu sei.."
— Pois então aproveite a sua vida. Seja livre. Reaja!
A voz agora tinha quase um tom de raiva. Ele tinha razão; Peter era um vírus, jamais existiria sem um sistema. Ele, pelo contrário, era uma pessoa. Uma pessoa viva. Ambos correram. Os pulmões artificiais trabalhavam como nunca, o coração mecânico batendo forte no peito a medida que os pés passavam quase voando pelas folhas secas. As pontas dos dedos roçavam nos troncos, e quem passasse por ali aquela hora da noite, poderia jurar ouvir duas risadas em conjunto, ainda que só uma pessoa corresse.
Eles escalaram uma árvore. A árvore mais alta de todas. Shawn tinha medo de altura, mas escalou mesmo assim. E, no topo, se sentiu o rei do mundo; podia ver a cidade ao longe, as casas menores no campo, o resto da floresta. Peter gritou. Shawn gritou. As cordas vocais mecânicas vibraram com o som da liberdade.
Era isso.
Shawn Mendes estava vivo.
Então o Sistema se tornou sua própria arte constante. Da ideia de morte, nasceu um mundo imerso em resistência. Da raiva, veio a força. Da fraqueza, veio a liberdade.
"Peter,
Eu neguei você com as minhas forças e do nosso desejo obsessivo por fins e controle, você permaneceu em harmonia para evitar que eu lhe fizesse desaparecer. Fomos nossos próprios inimigos. Nossas palavras, escritas e faladas, e nosso amor em comum, nos uniram. Força. Liberdade. Vida. Eu acredito!"
— Shawn M. | •asafworld•
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