Seus olhos

Eu fui a primeira pessoa a vê-lo chegar, não prestei muita atenção de início, era bastante comum viajantes pararem na cidade, as estradas ao redor eram perigosas e várias pessoas já haviam vindo em busca de ajuda após sofrerem acidentes, pela maneira como o homem mancava e parecia extremamente cansado supus que era um desses. 

Quando olhei para ele novamente vi que andava na minha direção. Dessa vez o analisei melhor, havia uma mancha de sangue em suas calças Jeans e uma maior em sua camisa branca, seus passos eram vacilantes como os primeiros passos de um bebê, mas estranhamente não foi isso que mais me chamou a atenção, foram os olhos. 

Eu já havia visto muitos forasteiros chegar a cidade naquele mesmo estado, alguns até piores, mas nunca havia visto olhos como aqueles, eram azuis e verdes ao mesmo tempo, como se a cor estivesse em movimento. Pareciam ficar mais claros ou mais escuros conforme ele se movia. Em resumo era a coisa mais fantástica e apaixonante que já tinha visto na vida.

— Eu preciso de ajuda – Ele disse. Voltando a reparar em seu estado eu quase soltei um sarcástico "Jura?", mas ele me fitou com aqueles olhos e a única coisa que fui capaz de fazer foi acenar afirmativamente com a cabeça. Me aproximei um tanto receosa e ele passou um de seus braços ao redor de meu pescoço parecendo aliviado.

Eu o ajudei a caminhar pelo resto do caminho até a cidade propriamente dita, não temos um hospital aqui por se tratar de uma cidade pequena e na maior parte ignorada pelo governo de São Paulo, o único lugar além dos postos de saúde que não abriam no sábado, era a clínica do doutor Roberto Gonçalves, que foi para onde decidi levá-lo

Dr. Roberto nos atendeu de imediato. Ele não pareceu muito feliz em precisar atender o forasteiro, mas ele nunca parecia satisfeito em atender ninguém, então não era uma surpresa.

Queria entrar no consultório junto com ele, mas o médico me lançou um olhar de reprovação e eu recuei mesmo contra a vontade. O rapaz me lançou um olhar e sorriu murmurando o que consegui entender como um obrigado. Sorri de volta e saí da clínica andando com passos lentos, olhando constantemente para trás na esperança de vê-lo de novo, nem que fosse por um instante, pela janela do consultório. Isso não aconteceu.

Voltei para casa, meus pais estavam zangados por ter saído sem permissão, eles sempre estavam zangados comigo por algum motivo. Nem mesmo o fato de eu apenas ter levado um homem ferido ao médico pareceu diminuir a irritação deles. Eu apenas dei de ombros e fui para meu quarto, fiquei lá o resto do dia rabiscando meu caderno de desenhos. A imagem daquele rapaz ainda brincava na minha cabeça. Os olhos principalmente. Eu podia vê-los sempre que fechava os meus.

Não dormi aquela noite, apenas desenhei, pares e mais pares de olhos azuis esverdeados. Pela manhã havia cerca de vinte folhas espalhadas pelo lugar. Levantei minutos depois do sol nascer, fui ao pomar pegar laranjas para meu suco. O mal cheiro do lugar ainda não havia passado, mas isso não me incomodava já há um bom tempo. 

Por volta das 11:00 resolvi sair para caminhar, sabia que quando voltasse meus pais estariam bravos comigo de novo mas não me importei.

Eu apenas precisava sair. No fundo, sabia que não era apenas isso. Eu precisava era vê-lo novamente, ver seus olhos novamente.

Sabia que Dr. Roberto provavelmente o havia feito passar a noite na clínica, por mais arrogante e mal humorado que fosse o velho, ele era também um médico muito competente e mesmo eu fui capaz de ver que o forasteiro ia precisar de mais que pontos e curativos para se curar. Andei na direção do consultório, se ficasse por perto eu poderia ver quando ele saísse.

Funcionou. Tive que esperar por cerca de duas horas mas finalmente o vi. Robert apertou sua mão, de má vontade, eu não podia ouvir o que eles estavam dizendo, mas vi o médico apontar na direção do único hotel da cidade que ficava no fim da rua.

Meu coração acelerou e eu sorri involuntariamente. O rapaz desceu os degraus que levavam para a rua e eu me virei de costas, não sabia dizer ao certo se queria que ele percebesse minha presença ou não.

 Querendo ou não, ele percebeu. Pude ouvir o barulho de seus passos ao se aproximar mas não ousei me virar até sentir sua mão tocar meu braço. Quando me virei quase perdi o fôlego, limpo e com roupas inteiras ele não parecia a mesma pessoa do dia anterior, exceto pelos olhos.

— Sabia que era você, – Ele sorriu
Não consegui pronunciar uma única palavra e apenas sorri de volta – Não pude agradecer o suficiente ontem.

—Tudo bem, – Respondi, me esforçando o máximo para não gaguejar

— Então, veio me ver? 

— Nã... não... eu...

— Ei, calma, é brincadeira – ele sorriu novamente.

— Ah, OK, eu tenho que ir para casa.

— Posso acompanhar você? Não é seguro uma garota bonita assim andando por aí sozinha.

— Você é o estranho.

— Você está certa – Ele se tornou sério – Qualquer um pode ser um assassino

— Até eu? – Não consegui evitar o sorriso

Ele me encarou por um momento como se estivesse me analisando, um brilho diferente passou por seus olhos, algo como uma sombra, eu quase podia ler isso como um sinal de perigo.

— Você me diz. – Seu tom era tão sério que por um momento achei que fosse uma acusação, mas ele voltou a sorrir e eu soube que era apenas uma brincadeira. – A propósito, sou William, viu? Não sou mais um estranho.

— Aline – Me apresentei de volta.

Eu não sei explicar direito como aconteceu, mas quando percebi já estávamos andando em direção da minha casa.

Descobri que poderia conversar com ele normalmente desde que não olhasse diretamente em seus olhos. Ele não quis me dizer muita coisa além de seu nome, em vez disso me encheu de perguntas.

Não me importei em responder, era uma das poucas vezes em que alguém estava interessado em minha  vida e, sinceramente, estava gostando daquilo.

— Por que sua casa é tão distante das outras? – Ele perguntou quando chegamos.

— Meus pais – Respondi com um revirar de olhos – Eles não queriam que me misturasse com as pessoas de lá.

— Uau, que bom que não sou de lá – Eu ri da piada, mais por nervosismo que por achar engraçada.

— E você? Vai ficar na cidade por bastante tempo? 

— Não sei, algumas semanas pelo menos.

— Boa sorte, as pessoas lá não são muito acolhedoras.

— Eu percebi – Eu soube que ele estava se referindo ao Dr. Roberto.

— Acho melhor eu entrar – Disse quando olhei na direção de casa e vi minha mãe na janela.

— OK, então, adeus – Will me beijou no rosto e eu senti como se meus pés tivessem deixado o chão por alguns segundos. Ele se virou para ir embora mas pareceu mudar de ideia e se voltou para mim novamente - Podemos nos ver amanhã novamente? 

— Sim, – Eu estava ciente de que havia respondido com um tom muito empolgado e corei um pouco. William sorriu e acenou para mim antes de seguir de volta para cidade.

Nos dias seguintes não houve um único em que nós não nos encontramos. Apesar de não termos quase nada em comum gostávamos de ficar juntos. Andávamos pelas ruas sem nos importar com o olhar de descontentamento que alguns dos moradores lhe lançavam por ainda não ter ido embora.

Ele tinha feito algumas amizades também, a dona do pequeno hotel havia se encantado com ele, assim como os donos da barbearia, o leiteiro e algumas das crianças que brincavam na rua.

O que ele disse que seriam semanas se tornaram meses e eu estava feliz, porque sabia que se ele decidisse ir embora nunca mais iria vê-lo e eu não queria isso.

Nós não éramos namorados ao contrário do que diziam as fofocas que se espalhavam pelo lugar. Eu sabia que ele gostava de mim e eu certamente gostava dele, mas nunca chegamos a nada mais íntimo que um abraço ou um beijo no rosto.

Até que isso mudou.

Ele havia me acompanhado até em casa como de costume. Quando fui beijar seu rosto ele se virou e eu beijei seus lábios, me assustei e tentei me afastar mas ele me segurou, o beijo se tornou tão intenso que até esqueci da dor que suas unhas cravadas na parte de trás de meu pescoço. De repente ele se jogou sobre mim me derrubando de costas no chão, gemi de dor, mas ele não parou de me beijar e nem soltou meu pescoço.

Ele me encarou e eu vi a mesma sombra em seus olhos que havia visto quando nos falamos pela primeira vez. Eu sabia o que ele ia fazer antes mesmo que começasse a arrancar minhas roupas.

Ele não estava pedindo permissão, e por alguma razão, eu sabia que se negasse o que ele queria, seria estuprada ali mesmo, em frente de casa, mesmo sem a escuridão da noite para encobrir nossos corpos.

Mas eu queria, eu queria muito. Eu o deixei fazer o que quisesse comigo e em troca ele me fez sentir um prazer que nunca havia sentido na minha vida.

Olhando na direção de minha casa enquanto Will se movimentava sobre mim, vi meu pai parado na janela, ele não fez nada, apenas ficou olhando para mim com a expressão descontente de sempre. Isso me causou um certo desconforto mas não impediu o prazer de tomar conta do meu corpo a cada novo movimento de Will.

Depois do ato consumado, Will me abraçou com cuidado para não causar mais dor nos vários hematomas e arranhões que havia deixado em meu corpo. A sombra pareceu deixar seus olhos assim como toda a selvageria que o havia dominado durante o sexo.

Ele me beijou delicadamente e pediu desculpas por ter me machucado. Sorri e o beijei de volta. Não me importava com os ferimentos, não gostaria que aquilo tivesse acontecido de nenhuma outra forma.

Nos tornamos oficialmente namorados depois de mais alguns encontros assim. Ele sempre se tornava violento enquanto transávamos e depois ele sempre voltava a ser o mesmo rapaz que havia me acompanhado até em casa no primeiro dia, meu melhor amigo.

Eu sabia que isso não seria eterno, mas tudo o que eu queria era que durasse um pouco mais, só um pouco mais...

Porém, um mês depois Will me disse que teria que ir embora no dia seguinte e ficar fora por um tempo, algo sobre uma ligação de um amigo que precisava de ajuda.

Ele me disse que estaria de volta em algumas semanas, mas eu sabia que era mentira, sabia que nunca mais o veria depois daquela noite. Assim, me entreguei a ele mais uma vez. Pela última vez.

Naquela madrugada, enquanto cavava meu pomar, meus pais estavam parados olhando para mim com seus rostos eternamente zangados. Eles sempre me olham assim. Desde que os matei e enterrei seus corpos lá, junto com os outros forasteiros que tentaram sair da cidade. 

As pessoas da cidade estranharam o sumiço repentino de Will, mas maioria deles não se importou. Na verdade, os moradores parecem felizes com isso, eles nunca gostaram de forasteiros. 

Já faz três dias agora. O corpo de Will já está fedendo e contaminando o pomar com o mal cheiro.

Eu estou começando a gostar disso, não é tão ruim na verdade, é apenas diferente e estranho, como eu. 

De volta ao meu quarto vejo os desenhos que fiz e agora cobrem as paredes: os olhos de Will. Assim como antes deles foram as mãos de Raphael, e antes os lábios de Arthur, e antes ainda, os cabelos de Aria. 

Eu não sei qual será meu próximo desenho. Eu não sei quem será minha próxima vítima. Eu não sei quem será o próximo desafortunado a sofrer um acidente na rodovia. Eu não sei qual será o próximo forasteiro a entrar nessa cidade. Mas seja quem for essa pessoa, ela nunca mais sairá... Disso eu tenho certeza.

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