Capítulo 1
Eu sou uma boa menina. Nunca duvidei disso. Ganho o prêmio de aluna destaque todos os bimestres durante quatro anos seguidos na escola mais renomada da minha cidade. Me esforço ao máximo para ser uma filha excelente. Ajudo aos necessitados pelo simples fato de gostar de fazer isso. Mas não é o suficiente, nunca foi.
Sempre houve essa sensação, ela sempre me acompanhou e não importa o que eu faça nunca consegui me livrar dela. Essa sensação de estar dormente, de não conseguir sentir meus sentimentos, de nunca ter conseguido viver intensamente apesar de me esforçar tanto. Essa maldita sensação de uma casca oca.
É sempre um aperto no peito. E não passa disso. Não é como se eu não amasse, não é como se eu não me sentisse feliz. Mas sempre me parece robótico, mecânico demais, sem a emoção que deveria ter. É como se eu estivesse anestesiada.
É nesse momento que meus olhos começam a arder e o aperto no peito começa a aumentar. O desespero bate, a angústia me consome. Culpo a adolescência por isso. Não quero pensar que tem algo de errado comigo. Com certeza toda essa confusão é culpa da adolescência.
- Ei! Eu estou falando com você!- Beatriz reclama estalando os dedos na frente do meu rosto.
Certo. Certo.
Pisco os olhos várias vezes, olho ao redor. Estou na escola, sentada na minha cadeira. Observo rapidamente o movimento dos meus colegas de aula conversando alto.
Na escola, penso ironicamente. Quem ainda está na escola quando faltam apenas 2 dias para o Natal? Eu e mais 7 pessoas. Dia 25 aconteceria uma competição interescolar que os pais dos alunos patrocinavam, o lucro vai para o orfanato da cidade. Gosto de estudar, mas pensar nas crianças é minha única motivação para estar aqui.
E como minha diretora não quer de nenhuma forma que sua escola perca o status de ganhar a cinco anos seguidos os alunos que irão participar possuem aulas marcadas com os professores dois dias antes da competição, já que são perguntas de conhecimento geral. Tudo é divido por nível de acordo com as séries de cada estudante, então tem uma boa chance de topar em alguns outros alunos pelos corredores.
Quando direciono meu olhar para frente novamente encontro uma Beatriz que me analisa com os olhos estreitos.
-O que deu em você? Estava pensando em que?- ela indaga desconfiada.
-Nada.
-Tudo bem então.- ela coloca a mochila marrom na cadeira a minha frente.- Não percebeu nada de diferente?- pergunta sentando e jogando o cabelo para o lado. Ela tinha cortado o cabelo na altura dos ombros.- O que achou?
-Incrível.- respondi. Ela havia ficado bonita assim, deu a ela uma aparência ainda mais descontraída, deixou seus traços mais leves. Ela estava parecendo a Branca de Neve. A pele clara, cabelos escuros, a alegria. A bondade também, ela havia doado o cabelo para fazer perucas para as crianças com câncer.
- Qual É! É véspera de Natal, Sara!- ela resmungou franzindo as sobrancelhas. Ela agarrou o encosto da cadeira e impulsionou o corpo para frente arregalando seus olhos escuros, como se tivesse algo extraordinário para me contar:
-Você podia cortar seu cabelo também. Sabe que ficaria bonita de cabelo curto, não é? Poderia até doar, seus cabelos dariam uma linda peruca.- conclui pegando um dos anéis que formavam meu cabelo. O Natal costumava deixar- la eufórica.
- Você sabe que eu não teria coragem de cortar.- falei.
- Nossa, você conseguiu formular uma frase com mais de uma palavra. É a primeira vez que faz isso hoje. Sei que tem algo errado.- era uma pena Beatriz me conhecer tão bem. Ela focou seus olhos nos meus, estavam calmos e compreensivos, ousava dizer até sábios.
Sorri sem mostrar os dentes. Sabia que não conseguiria enganar ela, mas poderia ganhar tempo. Logo o sinal tocaria marcando o inicio da aula e pronto. Eu não precisaria responder perguntas que não sei a reposta.
- Eu estou perfeitamente bem, Beatriz.- tentei até sorrir com todos os dentes.
- Sara, eu acho incrível a sua capacidade de achar que eu sou idiota.- ela revirou os olhos. Estava impaciente e incomodada.- Não gosto de te ver assim, tão... tão distante.
Droga. Por que quando eu preciso esse sino não toca?
- Enfim, não vou te pressionar.- falou suspirando dramaticamente.- Depois da aula você vai lá para casa? Tem muita coisa para arrumar ainda, esse jantar beneficente vai dar trabalho, mas vai valer a pena.
- Eu acho que sim.- respondi dando de ombros. Pelo menos manteria minha cabeça ocupada.
Beatriz abriu a boca para dizer alguma coisa, mas o sinal tocou. A professora de matemática passou pela porta, a turma toda se sentou, eu comemorei internamente. Já a minha amiga estalou a língua contrariada e se virou para frente.
Perguntas sem respostas adiadas com sucesso.
&&&&
Meu estômago ronca novamente. Horário de almoço é sempre um sacrifício, mas finalmente as aulas de hoje acabaram. Coloco meus materiais de qualquer maneira dentro da bolsa. Suspiro.
Meu celular vibra dentro do bolso da minha calça, na tela está escrito: mamãe. Já posso até adivinhar o drama que se seguirá.
-Oi, mãe.- atendo a ligação.
-Velha rabugenta.- ela resmunga baixinho, provavelmente algum cliente está lhe tirando do sério.- Ah! Oi, querida!
-Problemas?- pergunto contendo um sorriso. Seguro uma das alças da mochila e a jogo nas costas.
- Você nem faz ideia. Os idosos não deveriam ser todos fofinhos e bondosos? Porque essa velha que saiu daqui com certeza não faz parte desse clube. Você acredita que ela tratou mal um dos meus funcionários!?
- Os tempos estão mudando.- falei ironicamente engrossando a voz para imitar meu pai. Ele gosta dessa frase.
Beatriz acena pra mim e mexe os lábios sem deixar sair a voz: "Estou indo, te espero na minha casa." Eu apenas aceno com a cabeça. Leitura labial é uma especialidade nossa.
- Enfim, eu e o seu pai estamos enrolados. O restaurante hoje está uma loucura! Pega uma carona com sua prima, não vai dar para a gente te pegar hoje.
-Tá bom.- respondo passando pela porta da sala de aula.
- Eu mando entregarem seu almoço. Pelo amor de tudo que é mais sagrado, não tente cozinhar, Sara.
-Prometo que não vou colocar fogo de novo na casa. Tchau mãe.
-Tenho minhas dúvidas, tchau.
Encontro minha prima na recepção da escola, não demora muita a mãe dela chega e nós vamos embora. Chego em casa exausta, pensando em tudo o que vem acontecendo comigo.
Eu tinha que dar um jeito em seja lá o que está acontecendo comigo. É uma bosta não conseguir entender a si mesmo.
Não gosto de me sentir confusa e acho pior ainda não saber o motivo dessa confusão. Porque simplesmente não tem motivo para me sentir assim.
Vou acabar ficando louca desse jeito.
Sento no sofá com meu prato, estico as pernas e fecho os olhos. Inclino a cabeça para trás e respiro fundo, tento esvaziar a mente e relaxar.
Está tudo bem, Sara. Está tudo bem. Mas que coisa! A quem eu quero enganar? Não está nada bem. O aperto no peito volta, meus olhos ardem denunciando o choro que está por vim. Um nó se forma na minha garganta, a angústia me abraça desconfortavelmente, me sufocando aos poucos.
Alguém bate na porta. Que merda, será que eu não posso almoçar em paz? Olho para o feijão tropeiro desejosa. Será que se eu ficar quietinha a pessoa vai embora?
A batida na porta se torna mais forte e mais persistente. Quem seja que for não vai desistir. Bufo irritada sentindo meu humor ficar ácido. Falo sério quando digo que ninguém quer topar com uma Sara com fome, eu costumo ficar insuportável nesse estado.
Coloco meu prato na mesinha central da sala que fica em cima de um tapete felpudo de tom bege que minha mãe morre de amores.
Caminho até a porta incorporando uma criança mimada que não ganhou doce, uma mania feia, eu sei. Mas estou no direito de andar batendo os pés.
Abro a porta enchendo os pulmões de ar para reclamar, mas paro quando encontro uma Beatriz catarrenta de olhos vermelhos.
Droga.
-Ele voltou?- pergunto mesmo já sabendo a resposta. Só tinha uma pessoa que conseguiria fazer a Bia chorar de tristeza em plena véspera de Natal. Eu sabia que deveria ter matado aquele desgraçado quando tive a chance.
Puxo minha amiga para um abraço apertado. Agora somos duas na merda.
O dia não tem como ficar melhor, penso ironicamente. Bom, Eu ainda não sabia o que me aguardava.
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