Prólogo - Dia 0 (Zero)
NATASHA
19 de julho de 2050, Dia 0
Os adolescentes devem, por isso, dirigir-se aos postos de saúde locais para tomar a vacina. O mesmo se aplica aos adultos e crianças, por motivo de fácil contágio. Toda a informação já foi mandada resultando em tolerância zero para atrasos ou esquecimentos. Acabo o jornal por relembrar a existência de pena de morte para quem desobedeça a estas ordens e deixo-vos com imagens do que acontecerá aos contagiados.
Jordan Valverde, News&Reviews.
Contorci-me no instante em que vi o pobre rapaz no ecrã. Devia ter a minha idade, mas as olheiras roxas por debaixo do seu olhar acrescentavam-lhe vinte. O seu rosto escorria suor e estava tão magro que os ossos quase lhe saíam da pele - esta coberta de relevos amarelos e azuis lembrando escamas. De repente, começou a ter convulsões e saliva em forma de espuma regurgitou-se-lhe na boca. Isso, o seu virar de cabeça para o lado e a perda instantânea de sentidos, bem como o sinal estridente da máquina de suporte, indicaram o fim da sua vida. À volta de tudo isto, montava-se um cenário de hospital: havia médicos e repórteres a correr por cada canto, falando e relatando o que se passava. No entanto, apenas os ouvi da primeira vez que mostraram estas imagens, porque a realidade daquele rapaz era tão horrenda que me prendeu a total atenção nas restantes.
Engoli a última colher de cereais e levantei-me para pousar a tigela no lava-louças atrás de mim. Saí da grande divisão que era a sala de estar e cozinha e corri pelo corredor até ao meu quarto onde me vesti e preparei para sair. Com tudo o que se estava a passar com a pandemia o mais correto seria ficar em casa, mas o meu pai – sentado no sofá a ver a notícia e a embebedar-se, como fazia todos os dias – não me ia impedir de sair e muito menos ia eu mesma. Nunca tive medo de morrer, talvez pela morte se ter tornado em algo relativo depois do assassinato da minha mãe. A morte é só mais uma coisa que acontece na vida e esta última não parece importar-se com quem leva, o que faz ser-se imprudente ou responsável pouco relevante. De facto, é ridículo remoer no assunto e ter medo sequer, quando a nossa ida é julgada sem interesse por quem somos. É tempo perdido e tempo é tudo o que temos.
Corri de novo até à sala depois de receber uma mensagem da Rebecca para que me despachasse – íamos à praia.
-Chego às três. – disse ao meu pai que virou a cabeça lentamente mostrando o seu rosto jovem substituído por um pesado e com sinais de deficiência mental – Não saias de casa sem mim. – mas, o facto de achar a morte relativa, não implicava que não me preocupasse com a dos outros, especialmente a dos mais próximos.
-Não te preocupes, bebé.
Nesse instante, o meu pulso iluminou-se com uma mensagem do Hunter.
Não te atrases hoje.
Não tenho motivos para me atrasar.
Sim sim, bem sabemos que a água do mar é tentadora.
Cala-te, não me lembres disso quando esta pandemia nos pode matar aos dois.
Aí é que te enganas, é agora que tens de valorizar aquilo que tens.
Isso é alguma indireta?
Talvez.
E foi aí que saí de casa com um sorriso nos lábios.
#
Às duas e quarenta da tarde estávamos a regressar da praia. A Rebecca vinha deixar-nos a casa, primeiro a mim, depois à Zoe, que cantava em plenos pulmões, no banco de trás. Enquanto a Rebecca se concentrava em mais uma das estradas desertas dos Hamptons, juntava-se à Zoe e juntas balbuciavam os versos da música, mas a voz da Zoe era mais poderosa e firme, o que fazia com que nos diretos que gravávamos para o Insta, como o de agora, a sua voz se destacasse sempre. Eu, no banco do pendura, era quem filmava o direto com as minhas mãos - tecnologia do início dos anos 40.
Em menos de nada, parámos à frente da minha casa, um bungalow branco com um quintal enorme por detrás e uma piscina que só continuava limpa por ainda termos dinheiro para manutenção. Desliguei o holograma na minha mão e não consegui não suspirar antes de pôr a mão no manípulo da porta.
-Vai tudo correr bem, não vai? – perguntou Zoe. A confiança na voz dela desaparecera e nenhuma de nós respondeu. Rebecca deslizou o dedo no ecrã central do carro e baixou o volume da música. – Amanhã vamos acordar, vir à praia outra vez e esquecer que uma doença assim existe, certo?
-Vamos começar por tomar as vacinas, o resto logo vemos. – disse Rebecca focando o olhar azul numa única gota de água que escorria pela pele negra do braço da Zoe.
-Não achas que as vacinas vão resolver o problema? – perguntei.
-Acho, não é nada disso. – olhou para Zoe, de novo – Honestamente, não acredito que a pandemia seja o que nos deve preocupar agora. Há uma cura para ela.
-Então com o que nos devemos preocupar?
-Em tomá-la. Se há coisa que vai mudar as nossas vidas é não tomarmos a vacina, não porque podemos ficar doentes, mas porque morremos se não o fizermos. Se houver alguma mudança, acredito que seja pela perda de pessoas, sim, mas não pela doença.
A Rebecca mascarava as palavras "pena de morte" sempre que podia. Mas ambas assentimos, porque ela tinha razão. Havia, no entanto, algo a dizer-me que esta pandemia nos ia dar mais dores de cabeça do que essa.
-É melhor ir ver se o meu pai está pronto. Não se atrasem. Vejo-vos mais logo.
Estiquei-me para o banco de trás e quase caí em cima da Zoe quando ela me puxou para um abraço apertado. Abracei também a Rebecca e saí do carro branco, ficando parada na estrada até o ver desaparecer no horizonte azul e sereno que pintava aquela manhã de verão.
-Pai? – chamei ao entrar em casa. Ninguém respondeu. – Dorothee, onde está o meu pai?
-Mr. Portman saiu às dez e trinta de casa. – o holograma da parede da entrada ganhou vida e a figura feminina da Dorothee apareceu. Apesar de uma bot, tinha aparência tal e qual humana de pele negra e cabelos em cachos grossos. A única coisa que a distinguia de nós era o seu olhar verde estridente e o facto da sua existência se resumir numa parede.
-Para onde foi? Deixou algum recado?
-Não indicou onde ia. E não deixou nenhum recado, menina.
-Não gravaste nada que ele tenha dito que possa ser relevante?
-A menina proibiu-me de o fazer depois de a ter gravado com o menino Hunter.
Revirei os olhos. Só me faltava esta. De todos os poucos dias do ano que ele podia ter escolhido para sair, escolheu este. Liguei ao meu pai mais de três vezes, mas ele não atendeu – era escusado, tinha de esperar por ele. Fui tomar banho e tirar o sal do meu corpo e vesti um top e calções de ganga até ouvir o alarme da Dorothee gritar que eram duas e cinquenta. Não havia alternativa, tinha de ir sem ele e esperar que tivesse o bom senso de se dirigir a um hospital próximo de onde quer que estivesse. Se fosse à sua procura, morríamos os dois e isso seria só estúpido.
#
Natasha Portman, sala 4
Ao ouvir o meu nome, saí então da sala de espera onde estavam sobretudo os meus amigos e os seus familiares. Tentei não levantar alarido em relação ao meu pai, mas a verdade é que o formigueiro de nervosismo dentro de mim também se devia a não saber do seu paradeiro num dia como aquele. Dele e do Hunter. Não havia sinais do Hunter e esse era o motivo pelo qual não me chatearam tanto com o rasto do meu pai. Honestamente, estava mais preocupada com o Hunter do que com o meu pai, mas, ao contrário daquelas pessoas, eu tinha motivos para isso e não a mera desculpa de que o adoravam por ser um dos melhores influencers de sempre. No entanto, eu era demasiado boa a esconder as minhas preocupações. Por isso, ninguém notou. Mais rapidamente reparavam que não tinha coberto bem as olheiras com a maquilhagem do que nisso. Como sempre.
Percorri o corredor e entrei na sala 4. A partir daí tudo foi mais rápido do que eu esperava, fazendo-me sair dali depressa.
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-Só podes estar a gozar comigo! Onde estiveste? Diz-me que foste tomar a vacina. – foi a minha reação ao ver o meu pai na mesma posição daquela manhã ao voltar a casa.
-Não fui tomá-la.
Inspirei fundo, de nada me servia entrar em pânico. Aprendera isso em criança.
-Tu sabes as consequências disso, és tão egoísta, meu deus.
-Não me vai acontecer nada, Natasha. – bebeu outro gole do que parecia ser whisky na sua mão. – Sou um velho bêbedo, não burro. Onde pensas que 'tive hoje? Tratei do que era preciso pra não me identificarem.
-Voltaste a meter-te com aqueles tipos? Já te esqueceste onde foste parar da última vez? – suspirei – Tiveste muita sorte em sair daquele atentado vivo.
-Natasha, sei perfeitamente com quem me 'tou a meter. – riu ao lembrar-se. Ele estava mesmo doente - Podem não ser de confiança, mas isso é também só mais um merda que se compra. Além disso, têm a única coisa que importa em jogo, poder.
-Mas porquê? Era só uma vacina. Se houver adolescentes que não a tomem e escapem como tu, corres perigo à toa.
-Pensei que fosses mais inteligente que isto, filha. Não me digas que vais acreditar numa nova pandemia mortal vinda do nada.
-Nunca há razões para as pandemias aparecerem e elas aparecem.
-Não num mundo que produz órgãos artificiais pra vender em supermercados e 'tá perto de atingir a imortalidade. – outro gole dado – Algo não bate bem e já que tem que se morrer, então quero ir pra' debaixo da cova por 'algo natural.
Nem remoí no facto dele nem ter pensado na minha existência sem a sua presença. O que dissera atingiu-me com demasiada força para o meu gosto e, por isso, corri até ao meu quarto e tranquei-me lá. Foi, no entanto, à meia noite, enquanto via mais um episódio da minha série favorita, SCRYAM, e planeava fazer direta para o dia seguinte, que um formigueiro ardente se espalhou por todo o meu corpo e, mal me tentei levantar, não consegui, nem falar...apenas respirar. Aí percebi que algo estava errado e que o meu pai tinha razão, mas foi também aí que vi tudo preto e desmaiei, por fim.
#
As minhas pálpebras estavam cansadas e pareciam não se descolar umas das outras havia dias. No entanto, com a consciência de volta levantei-me sem pensar duas vezes e, mal olhei onde estava, engoli algo que pareceu ser um vazio. Aquele era um quarto, mas não o meu. Havia duas camas naquela divisão retangular branca metálica, uma de cada ponta, sem janelas ou indicação de onde se localizava. Procurei uma porta e encontrei-a na parede à minha direita. Nesse momento, uma voz robótica acordou-me de vez e o meu coração disparou.
Natasha Portman. Sujeito 3247. Acordou.
A voz vinha de um holograma verde na parede da porta e o meu rosto e todos os meus dados básicos encontravam-se nele. De repente, ao ver a cama do outro lado, desfeita, percebi que tinha de encontrar alguém.
Saí do quarto, rapidamente, e ao olhar lado a lado, deduzi que aquele devia ser uma espécie de edifício destinado a habitação, porque o corredor branco de plástico continuava com várias portas iguais à minha. Não havia quase ninguém ali, no entanto, e as pessoas que iam aparecendo pareciam tão confusas que achei inútil apresentar-me sequer. Ao olhar para a direita, pareceu-me ver luz numa curva que calculei que fosse dar a escadas. Corri até lá. Estava certa. O pânico instalava-se na divisão de baixo e todos os que via tinham um traço em comum - todos eram adolescentes.
Desci as escadas numa corrida rápida e saí do edifício pela porta de vidro automática. Lá fora, no entanto, o meu pânico não diminuiu. Pelos edifícios altos, ruas e céu azul parecíamos estar numa cidade, apenas não a nossa. Olhei em volta procurando o Hunter ou alguém que conhecesse.
-Hunter! – comecei a andar pelas ruas. Chamei em plenos pulmões vezes sem conta.
Às tantas, sentei-me num banco metálico de fronte de uma fonte de água enorme que adornava uma espécie de rotunda em que as ruas paralelas e direitas daquele lugar se pareciam abrir. Suspirei ao pensar que o mais provável era ele nem estar ali sendo que não aparecera no dia anterior para a vacina. E se ele estivesse...não, algo me dizia que não podia estar morto. Era impossível, ele era filho do grande Graham Rockefeller, no fim de contas - só o maior cientista com influência nas forças militares americanas da nossa época.
-Onde é que ela está? – ouvi gritar e segundos depois reconheci a voz fazendo-me suspirar de alívio. – Natasha! – virei-me para trás no instante e ele vinha a correr até mim.
-Hunter!
Abracei-o com tanta força que tive vontade de chorar, mas não o fiz.
-Onde estamos, o que se está a passar?
-Eu devia ter-te contado, desculpa. – procurei o olhar azul dele que se queria esconder em culpa encarando o chão de calçada. Não disse nada, por momentos, tentando, provavelmente, encontrar as palavras certas. – Nós não estamos nos Hamptons, nem na América. – tentou rir, mas fracassou e os seus olhos brilharam – Isto não é a superfície sequer. Estamos debaixo da terra.
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