3 ▹ CONFUSÃO COM OS POPULARES


O mundo não vai cair se você não estiver aguentando, apenas espere um minuto e se acalme. — Maisie Peters (Take Care Of Yourself).

      —  O que... — Eu ainda estava surpresa em vê-lo. Tão diferente. Tão adulto. — o que faz aqui...

      Seus olhos eram os mesmos. Seus músculos haviam aumentado, sua voz estava mais firme, menos infantil e mais grave, a barba havia surgido no seu rosto, mas o brilho e o espectro de cores em seus olhos não sofreram nenhuma mudança com os anos. Eram os mesmos do dia do estacionamento. 

      E eu podia sentir minhas mãos suarem, mesmo imersas na água.

      — Você não mudou quase nada, Bibi — escutar meu apelido de infância em seus lábios realmente me deixou completamente constrangida. Ele havia feito isso de propósito. — Reconheceria seus lábios de longe, afinal, foram os primeiros que toquei — revelou com uma facilidade que me assombrou. Não sabia de que forma codificar sua intenção ao me dizer isso, porque trazer tudo isso à tona, tão de repente, não era justo comigo. — Apesar de você ter me deixado. — Eu ia me explicar, eu ia respondê-lo, mas fui interrompida e ele persistiu: — Não precisa se preocupar. Infelizmente, todo mundo soube da razão de você e sua mãe ter ido embora.

      Envergonhada e confusa, disfarcei meu olhar no vazio por de trás dele e me perdi na movimentação das pessoas na água. Nada havia sido fácil. Eu era apenas mais uma sobrevivente.

      — Sinto muito — ele disse, por fim, com piedade e um pouco de raiva impregnadas em suas palavras.

      Raiva essa que era justificável.

      Por causa do que aconteceu, nós desatamos todos os laços que nos ligava e nos separamos em caminhos contrários. Eu tive que ir embora e deixá-lo para trás. Tive que amadurecer um pouco mais cedo que o normal e me comportar para não entristecer mais minha mãe. Tive que aprender a cuidar dos outros e perceber que adultos não são mais fortes que nós quando crianças. 

      Mas, agora, ele estava ali. Bem na minha frente. E quase podia imaginar como teria sido a minha vida se nada tivesse mudado. Será que teríamos namorado? Será que eu ainda seria tão inocente quanto antes? Será que teríamos planejado irmos para a mesma faculdade? Será que ainda estaríamos sempre juntos? 

      Em minha cabeça apenas reverberava uma onda incessante de serás que jamais teriam respostas.

      Eu nunca poderia saber.

      — Eu também — correspondi-o finalmente, fragilizada pelas memórias vividas e também pelas memórias hipotéticas de como seria se nada tivesse mudado —, eu também sinto muito. 

      — Mas me conte, como você está? Arrumou um novo amor? Está morando com sua mãe? Já tem filhos? Me desculpe o questionário, mas, minha nossa! — Ele balançou a cabeça e exprimiu uma risada genuína. Em seguida, ergueu a mão e a deslizou nos próprios cabelos, em consequência, uns pingos de água se sobressaltaram. Apenas admirei seus novos trejeitos, encantada. — Faz anos que não nos vemos! Na realidade, oito anos, sete semanas e... 

      — Seis dias — murmurei, sem sequer prever que minha boca falaria por mim. Foi inconsciente. Gabriel me encarou, provavelmente surpreso por eu ter contado o tempo também. 

      Era óbvio: ambos estávamos esperando, talvez ansiosos, para que o destino finalmente pudesse nos colocar frente a frente novamente. E dessa vez eu não permitiria que mais nada no mundo pudesse nos afastar. 

      Eu ri ao imaginar como minha vida era tão sem graça. Não. Nada de novidades. Eu não era tão boa em mudar as coisas.

                ➹➷

      Estávamos brincando e rindo quando Bruno e seus amigos se aproximaram mais da piscina, e então eu me lembrei de Antônia, e percebi que ela ainda estava longe. Seus minutos de diversão, pelo jeito, se foram. Ela provavelmente ou tinha voltado para sua casa ou estava comendo porções de batata frita em algum lugar.

      Me dava tanta angústia saber que uma das razões dela ter fugido de Bruno era por vergonha de seu corpo. Não fazia o menor sentido. Minha amiga era linda tanto por dentro quanto por fora. Revirei os olhos assim que vi Bruno aplicar protetor em uma de suas conquistas, Jéssica, sem conseguir esconder minha cara de nojo.

      E isso não passou despercebido por ela.

      — Olha quem está aí! A amiguinha da estranha. Ou namorada? — perguntou com um deboche tão audível que qualquer um ao nosso redor percebeu. — Deve ser, né, porque como o mundo de hoje está, eu não duvido nada — ela persistiu, sem nem mesmo filtrar o preconceito e o escárnio de suas palavras.

      — Estranho é elas não estarem juntas — Patrícia, amiga de Jéssica, ou melhor, cachorrinha dela, comentou logo em seguida, como se tivesse o direito de falar algo. Antes que eu não aguentasse mais as provocações e a retrucasse sem o mínimo de pudor, Patiquetipariu (apelido que eu e Tônia lhe demos há bastante tempo) continuou: — Mas é compreensível. Totalmente compreensível — em sua voz havia uma entonação de dó tão falsa quanto seus cabelos. — A outra deve ter um corpo tão horrível, acabado e destruído que é capaz de afugentar todo o público do clube, né? Não estamos acostumados a encontrar qualquer baranga aqui, não aguentaríamos o susto.

      Eu estava pronta para sair da piscina e enforcá-la até que eu a visse sufocar em minhas mãos, mas Gabriel, atento, segurou-me pelo braço.

      — Por que vocês não deixam Bianca em paz? — ele tentou ser discreto.

      Mas com aquelas garotas seria impossível ter paz. Sabe, é natural não sermos amigos de todo mundo, mas geralmente as pessoas são maduras. Não se falam, não conversam, cada um fica na sua e segue a sua vida. É inteligente viver somente para aqueles que lhe trazem dias bons, e ignorar aqueles que só trazem dias ruins. E a linha tênue entre duas pessoas antagonistas é o respeito. No entanto, aquelas garotas eram o oposto da maturidade. Eram mesquinhas, egoístas e vaidosas.

      E gostavam de magoar, de ferir e transtornar quem não as agradasse. E tinham uma predileção por Antônia que era irritante. Sempre que Jéssica observava minha melhor amiga, faíscas de ódio e inveja chamuscavam de seus olhos. 

      Os meninos que estavam com elas, por sua vez, mal davam atenção à destilação de ódio gratuito delas. Estavam tão concentrados nas bundas femininas alheias que, mesmo se gritássemos, não nos ouviriam.

      — Me segura, pois estou a ponto de ir arrancar o silicone delas! — Me virei para Gabriel, meus nervos já ferviam de raiva e meu coração transtornava-se pelos insultos despejados a mim e a minha melhor amiga.

      — Calma, Bia. Não vale a pena se estressar — Gabriel me orientou, com uma tranquilidade que me deixou um tanto desnorteada de início. Como ele conseguia ser tão impassível diante de garotas de nível tão baixo?

      Eu só precisava de mais um estímulo para perder o pouco de controle que eu ainda tinha. 

      — Ao menos nisso sua amiguinha gorda e desajeitada se manca. Agradeça a ela depois por desaparecer daqui — Jéssica finalizou, fazendo suas amigas rirem.

      Era só disso que eu precisava.

      — Sabe quem mais é desajeitada, querida? A minha mão! — esbravejei. — E ela tá doida para cair na sua fuça! 

      É muito fácil ultrapassar a razão e ser movida pela raiva. Eu nem sempre fui explosiva, nem sempre fui arredia, mas desde que saí do meio de minha família perfeita, me tornei alguém diferente. Transformei-me em uma pessoa desconfiada, mais crítica e mais realista. Entretanto, ainda assim, uma coisa nunca havia mudado: meu instinto protetor em relação às pessoas que amo. Não são muitas, aliás, mas Antônia estava inclusa.

      Eu senti as mãos de Gabriel me segurarem pelo braço, assim como eu senti suas mãos se afastarem quando o empurrei grosseiramente. Eu o fitei de maneira tão gélida que o rapaz não hesitou em me soltar. Sem medir minhas passadas, sem medir a situação, meus pés me impulsionavam a sair da piscina e a caminhar em direção a elas.

      Diante de Jéssica, corri o olhar por seu corpo de cima a baixo como se eu estivesse encarando um inseto nojento e asqueroso. Isso me deu um pouco mais de controle, porque considerei que, se ela se aquietasse, talvez não valesse a pena:

      — Ao menos, os peitos dela são de verdade! — considerei ao olhar para aquelas bolotas tão superficiais. — E em plena juventude não tem rugas na cara! — eu sabia que esse tipo de indireta as incomodaria mais do que tudo. Só alguém com uma superficialidade tão extravagante poderia se dar ao luxo de se sentir provocada dessa forma.

      Mas, às vezes, é preciso jogar usando as armas de seu inimigo, ou melhor, seus pontos fracos.

      Eu considerei lhes dar as costas, a fim de voltar para o meu lugar e fingir que elas sequer existiam. Mas parecia que o tempo estáticas não foi suficiente, pois não calaram a boca. E por que ainda esperava que elas mantivessem um pouco de dignidade?

      — Quem você acha que é garota pra me insultar desse jeito? — Jéssica questionou indignada. — Você é tão imunda quanto ela, a diferença é que não sabe se colocar no seu lugar!

      Ainda estava de costas para elas, porém não evitei um sorriso debochado.

      Foda-se a civilidade, pensei, essas garotas pediram.

      — Sou alguém que vai fazer você pensar duas vezes quando dirigir a palavra a qualquer um que eu me importe! — proferi já tendo me virado para confrontá-la.

      Eu vi perpassar em seu olhar um lampejo de pânico, mas nem isso me impediu de querer machucá-la.

      Um segundo bastou para que eu me aproximasse e despejasse um soco em seu rosto. Sua cabeça foi arremessada para o lado com o impacto e ela tocou o rosto com a mão, sentindo a dor. Talvez por isso sua expressão fosse de completa fúria. Jéssica veio até mim na tentativa de arranhar meu rosto, ou puxar meu cabelo, e até conseguiu, mas eu consegui imobilizá-la, mantendo seus braços presos ao meu redor e com meu rosto quase colado ao dela.

      — Não meça forças com quem você não pode competir — sussurrei calmamente, totalmente fora de sintonia com sua respiração ofegante. — Eu não sei se você já percebeu, mas eu tenho um lado meio psicopata que você certamente não vai querer conhecer.

      Ela se debateu, me contrariando. Jéssica se jogou no chão e me empurrou com a perna, a fim de me afastar. Isso me fez sorrir. Ainda com muita repulsa e indignação, dei passos para me aproximar de seu corpo amedrontado e a arrastei até que eu pudesse tê-la sob meu domínio. Sentei-me sobre seu abdômen, imobilizando-a por debaixo de mim mesmo em suas tentativas de me tirar dali, jogando-se para os lados e mitigando o pouco de energia que ainda lhe sobrava. Sua afobação era a sua pior inimiga naquele momento.

      Descontei toda minha irritação em seu rosto. A velocidade do meu braço era impressionante, e nunca me imaginei possuindo tanta força assim. Mas eu já não pensava em nada. Nada. Apenas queria descontar todas as raivas que eu possuía. Toda a dor.

      Ali eu descontava os insultos dirigido a mim e, principalmente, a Antônia. Eu descontava a infância fodida que eu tive por causa do meu pai. Descontava a separação de meu melhor amigo e a perda da minha inocência. Descontava a existência de pessoas como ela, impiedosas e cruéis. Eu a machucava enxergando-a, enxergando meu pai, enxergando a vida e todas pessoas infelizes que tive o desprazer de conhecer.

      Levantei-me ainda transtornada. Totalmente transtornada. Não havia mais civilidade em mim, tampouco compaixão. Só havia tristeza misturada com revolta. E mesmo que meus braços estivessem cansados, que meus músculos tremessem, mesmo que minhas pernas estivessem dormentes e meus cabelos permanecessem grudados em meu rosto suado, ainda assim, eu a chutava como se ela fosse culpada por todos os pecados do mundo.

      Patrícia, por outro lado, não moveu um passo para protestar ou proteger a amiga. Apenas assistia a cena como uma telespectadora chocada. Isso não me surpreendeu.

      Quando estava a ponto de deixá-la desacordada, depois de fazê-la espirrar sangue, alguém forte o suficiente para me segurar me agarrou pela cintura e caminhou comigo para trás, afastando-me dela.

      Eu me debati o máximo que consegui.

      — Me solta! Me solta! — minha voz parecia vidro em minha garganta enquanto grunhia, machucando todo o caminho pelo qual passava. Minha pele latejada sobre meus órgãos como se tivesse uma corrente elétrica perpassando por mim. — Eu quero machucá-la por ser tão horrível! Eu quero machucá-lo por ter destruído a minha mãe! Eu preciso! Por favor! — os gritos saíam da minha boca sem serem sequer formulados. Era puro instinto. Era pura angústia.

      Era pura justiça.

      Eu comecei a sufocar assim que meus cabelos tamparam minha visão. E, de repente, eu me senti vazia. Perdida. Entristecida.

      — Tirem essa selvagem de cima de mim! Mantenham-na longe de mim! — Jéssica implorou com medo enquanto protegia o rosto, mesmo que eu já estivesse a quilômetros de distância. Mas sua voz era falha, quase incompreensível, e se misturava com o líquido avermelhado que saía de sua boca e nariz.

      Assim que Gabriel, sentindo que eu simplesmente enfraquecia sob seus braços, confiou em me deixar um tanto mais solta, de forma delicada e até mesmo afável, ele removeu os fiapos de cabelo do meu rosto e sorriu, como se dissesse que iria ficar tudo bem. Agarrei-o com intensidade, prensando-o em mim, e chorei com saudade do passado. 

      Após alguns incontáveis segundos, ergui o olhar e senti Jéssica me afrontar ainda mais enraivecida. Havia uma ânsia de vingança inexplicável em sua pupila. Ia além da briga, pois sua fúria sempre esteve lá. Talvez agora apenas houvesse se escancarado. Dessa vez, no entanto, também havia vergonha. 

      O mais evidente, no fim, era o sangue. 

      — Você e sua amiguinha vão se arrepender disso! De terem nascido! Não deveria ter feito isso! Agora é questão de honra! — ameaçou.

      Ainda fraca, cansada e evasiva, sentindo-me retornar aos poucos à sanidade, eu ri.

       Eu sei que reagir com uma gargalhada seria a pior coisa a se fazer, mas nada eu podia fazer senão seguir meus instintos e demonstrar que não tinha como eu ter medo dela. Eu já tinha perdido tudo, não havia meios de me transtornar mais ainda. Eu já não era eu mesma há muito tempo.

      Ah, se ela soubesse...

     Talvez não se sentiria tão envergonhada assim.

     Mas nada falei, nada exprimi, nada fiz e nada pensei.

     Continuei a gargalhar, porque era a única forma de eu ainda me sentir viva.

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