29 ▹ MARGARETH JOHNSON
Eu mandei alguns homens à luta, e um deles voltou na calada da noite. Eu disse: você viu meu inimigo? Ele disse: se parecia com você. — James Blunt (Same Mistake).
Gargalhei mais por nervoso do que achando graça de algo, com o único intuito de fingir que sua fala não se passava de uma piada.
Eduardo, porém, permaneceu com o semblante sério. Eu podia senti-lo assustado e confuso, talvez por isso, calei de imediato minhas risadas fingidas. A incompreensão nos dominou por completo.
— Você — murmurou, ainda processando meu delírio. — Não faz sentido saber disso. Nós não nos conhecíamos naquela época e você não estudava conosco. Essa memória faz parte de um passado que enterrei. — Sua voz centrada estava ladeada de frieza e rancor.
Temorosa, me aninhei em seus braços, local em que todos os males do mundo pareciam se dissipar. Ainda havia mágoa nele.
— Realmente não faz sentido, não tem fundamento. Sabe o que acho? — Ergui o rosto, ambicionando acreditar em minhas próprias palavras. — Que esse delírio foi tudo culpa do hospital. Não suporto ficar em um ambiente que me remete a remédio e à doença — supus, desejando que todas as dúvidas e suposições mirabolantes que perambulavam em minha mente sumissem.
É natural que eu delirasse, afinal, talvez eu e Edu estivéssemos tão conectados que meu pequeno afastamento da consciência resultou em um sonho parecido com algo que ele já vivenciou. Apenas uma infeliz coincidência que, para todas as hipóteses, não passaria de algo irreal e fantasioso. Algo que já passou e que está enterrado.
— Não vamos nos preocupar com isso, tudo bem? — pedi e, em resposta, Edu sorriu.
— Não mesmo... — Aproximou-se de mim. — Temos que aproveitar o tempo que temos.
Suspirei, sabendo que a felicidade nem sempre é eterna. Tínhamos que desfrutar do pouco tempo que ainda possuíamos a sós, em que não haveria ninguém por perto nos vigiando ou se intrometendo.
— Podíamos fugir — considerei enquanto colocava meus pés sobre as pernas de Edu e mexia na linha solta do lençol. Ele, à vontade, brincava com os fios rebeldes do meu cabelo. — Colocamos uns toddys na mochila e saímos perdidos por aí. Só nós dois.
Meu namorado sorriu e, em seguida, o silêncio preencheu o ambiente. Era horrível ainda não saber lidar com despedidas, afinal, minhas férias já estavam no fim.
— Promete que não vai se esquecer de mim lá? — Edu pediu com sua cabeça deitada em meu ombro, suspirando contra a pele sensível do meu pescoço. Esquivei-me dele um pouco, preocupada que, se ele continuasse assim, eu iria acabar me mudando para a casa dos meus tios.
— Claro! — exprimi a primeira coisa que me veio à mente, desnorteada ao sentir seus dedos deslizarem pelo meu braço, estremecendo-me mais uma vez. Ele ainda me deixaria louca.
— Promete que, quando chegar, ligará para mim e faremos vídeo-chamada todos os dias?
Virei meu corpo na cama, agarrando-o. Seus olhos abertos me miravam expressivamente.
— Não sei. Não posso deixar você se enjoar de mim — brinquei com um pingo de verdade, mas não queria que ele soubesse das minhas inseguranças que insistiam em despertar.
Era incrível observá-lo, pois, apesar de seus traços já estarem gravados em minha memória, eu sempre dava um jeito de reparar em sua fisionomia novamente, como se, caso houvesse alguma alteração, por menor que fosse, imediatamente eu me atualizaria.
— Não existe essa possibilidade, garota. Agora vamos cozinhar algo, tudo bem? Tô varado de fome. Você abusa muito da minha energia!
Revirei os olhos e, tempos depois, chegamos à cozinha. Felizmente estávamos sozinhos, pois meus pais tinham saído com meus tios, e pelo silêncio, sem dúvidas levaram Lili. Decidimos fazer omeletes recheadas com bastante queijo, ervilhas e orégano.
— Quantos ovos você vai querer, Antônia? — Edu perguntou ao abrir a geladeira.
— Quatro.
— Só isso? — questionou com deboche, apenas lhe dei a língua.
Eduardo trouxe os ingredientes para a bancada, onde eu estava organizando os utensílios que utilizaríamos. Pus a frigideira no fogo para esquentá-la, no momento em que Edu se aproximou, deixando cair o vidro aberto de orégano em mim.
— Eduardo! — esbravejei ao ver minha blusa toda suja.
— O que foi? — ele franziu o cenho me encarando. Depois, sorriu com destreza. — Bem que dizem que com orégano tudo fica melhor, agora você tá toda temperada!
— Você — Apontei para ele de forma ameaçadora com uma espátula, incisiva. — Não presta!
Antes que eu pudesse criticá-lo mais, Edu simplesmente deixou de lado a omelete e me pressionou contra a bancada de granito. Suas mãos vieram para o meu pescoço, aproximando-me de sua face, e foi impossível continuar na defensiva, tanto que a espátula caiu de minhas mãos.
Como resistir quando tudo o que você precisa está bem em sua frente?
— E você me ama mesmo assim — retrucou, e embora a frase parecesse convencida, era somente a verdade nua e crua, sem um pingo de escárnio. E mesmo antes da omelete queimar ou de eu ir embora de Londres, eu já sentia sua falta.
➹➷
— Fica, Tona. Não vai não — Alicia cochichou com a voz embargada, enquanto seus bracinhos pequenos me abraçavam e sua boca formava um bico choroso. Era tão doloroso me despedir dela que, por um instante, meu coração se quebrou.
— A gente vai resolver a distância em breve, tudo bem? — Edu tentou me consolar, sem muito sucesso. Nós nos beijamos e, dessa vez, meu pai não nos interrompeu.
No momento em que carregava minha mala em direção à área de embarque, notei que uma vida me esperava, meus amigos, meus pais e a faculdade. O problema era só a sensação de estar incompleta, principalmente por Lili e Edu. Meus tios também estavam inclusos, claro, mas havia me apegado demais àqueles dois.
E, bem, Eduardo era Eduardo. O rapaz que me salvou tantas vezes e, principalmente, arriscou sua própria vida por mim.
Queria me debruçar em lágrimas, jogar minha mala longe e correr de volta para eles. Porém, não podia. Então eu entrei no avião, e tudo o que fiz foi acenar em despedida, desejando que ficassem bem, e que a saudade não fosse tão cruel.
O voo na classe econômica durou algumas horas, possibilitando que eu lesse um livro e ouvisse músicas no aleatório, tentando me distrair. Quando cheguei, após realizar todos os processos necessários para dar adeus a mais um aeroporto, senti finalmente os braços de Bia e de Gabriel me envolverem.
Senti-me imensamente feliz por revê-los e, ali, com eles, entendi que tudo ficaria bem.
— Então, Tônia, da próxima vez que você for, me leva contigo! É difícil ter que aturar o Gabriel sozinha! — Bianca ao mesmo tempo que me dava as boas-vindas, alfinetava-o, e se aquilo não era amor, eu não sabia bem o que era. Agarrei-a mais contra mim, sentindo até mesmo o cheiro de shampoo barato exalar em seu cabelo. Até disso senti falta, mesmo sempre odiando esse cheiro.
— Então eu teria que ir também com vocês, sabe como é, né? Não posso deixar minha mulher sozinha — Gabriel retrucou-a.
— Sei que morreram de saudades, e iriam só para não evitarem de ficar um segundo sem mim! — comentei convencida, beijando meu ombro como se estivesse me achando.
Eles riram de forma debochada, Bia até mesmo segurou a barriga como se ela estivesse doendo. Apenas revirei os olhos diante da insensibilidade alheia.
— E que história é essa de minha mulher? — recordei-me de sua fala enquanto nos aproximávamos do táxi, depois que meu pai colocou nossas bagagens no porta-malas.
Bianca apenas ergueu o dedo, nele havia um anel delicado, expondo que estavam, oficialmente, juntos. É claro que não havia notícia melhor que essa. O simples fato de encontrar um brilho diferente no olhar de Bia me causava uma felicidade genuína. Estava na hora dela acreditar no amor.
— Só se lembre, Gabriel, que fiz um ano de karatê. Qualquer vacilo já sabe, né? — O mirei com seriedade e, com o braço, simulei quebrar um tijolo. — E não é só tijolos que sei quebrar!
Bianca, em contrapartida, aproximou-se de meu ouvido e sussurrou:
— Você sabe que videogame é diferente de vida real, né?
— Gabriel não precisa saber desse detalhe — cochichei de volta, sorrindo ardilosamente.
O taxista estacionou em frente à casa em que morei por muitos anos. A qual, mesmo sendo tão importante, não parecia tão receptiva quanto antes. Meu lar já não era mais uma construção de cimento, e sim certos braços acolhedores. Fechei meus olhos, com saudade da brisa gelada e convidativa de Londres. Adentramos o lugar e guardamos nossas coisas.
— Queria agradecer por vocês terem deixado tudo aqui e terem ido cuidar de mim quando souberam do acidente — disse assim que ultrapassei a porta da cozinha, já devidamente tomada banho e vestida de jeans e regata. — Não precisava, mesmo, eu não ia amar menos vocês por não irem.
Sentei à mesa, minha mãe pegou minha mão de forma gentil e a acariciou, com seu olhar maternal e cuidadoso para mim.
— Tive um delírio enquanto estava desacordada. Eu sei que não é nada demais — dei uma pausa longa, com medo das respostas que poderiam vir. — Eu sei que nunca quis saber sobre o meu passado antes de chegar aqui, mas eu preciso ter certeza de que não tenho nada a temer. Preciso ter certeza de que tudo foi uma infeliz vertigem.
Meu pai, resoluto, suspirou, deixou o jornal de lado e assentiu. Era assustador ter mais detalhes da noite em que fui encontrada e ajudada por eles, totalmente sem memória e machucada.
— Nós não sabemos de muito do seu passado, mas, sim, há coisas que foram ocultadas, simplesmente para te poupar de sofrimento desnecessário. — A sinceridade escorria de sua boca com tanta segurança que, por um instante, pensei que seria algo pequeno. — Primeiro, quem te encontrou não fui eu. Foi Bianca.
— Bianca? — interpelei. O choque em minha voz era perceptível.
— Sim, querida — minha mãe assegurou, emocionada. — Se não fosse ela, era possível que não estivesse aqui. Você não caiu de uma escada de um orfanato, como tínhamos dito, você foi encontrada desacordada em um prédio abandonado, toda suja, sangrando, cheia de hematomas... Irreconhecível. E depois houve o incêndio, mas, por sorte, Bianca estava lá e teve empatia por uma desconhecida, na época. Fazendo o que, eu não sei, ela nunca nos contou.
Eu me assombrei. Mesmo não me recordando, eu podia sentir meu corpo esquentar, o cheiro de queimado, a dança suave de chamas que entorpeciam minhas células, quase perdendo os sentidos.
— Foi um incêndio criminoso, Antônia. Era para você estar morta. E, de certa forma, esse tempo todo... você esteve.
— Eu estive? — Meus olhos se arregalaram.
Recordei-me das palavras de Edu: ela está morta. Morta.
— Ia muito além do fato de você estar desamparada e sem família, porque sua mãe foi contatada, mas... ela não podia cuidar de você — meu pai acrescentou, e eu permanecia a escutá-lo, atônita, apenas absorvendo o suficiente para encaixar as peças da minha vida. — Não era seguro descobrirem que estava viva, já que nunca encontraram o culpado e o caso foi arquivado. Por isso, não foi surpresa a autorização judicial para a sua mudança de identidade.
Dona Pilar apertou a mão do marido, como se estivesse procurando um apoio silencioso para continuar. Sabíamos que aquilo era pesado e, no final, mudaria tudo.
— Você ainda era muito jovem, então passaria pela assistente social e iria para algum orfanato. As chances de ser adotada eram ínfimas, pois era mais velha que as outras crianças e bebês. Não sabíamos o que tinha acontecido antes com você, mas ao te vermos tão indefesa e sozinha naquela maca de hospital, sem ninguém no mundo, sem sequer sua memória, juntamos isso ao fato de não termos mais nossa filha, e decidimos adotá-la. Sofremos um aborto espontâneo de uma menina há muitos anos antes, em uma das nossas inúmeras tentativas de engravidarmos, e ela se chamaria Antônia.
Ricardo, com uma risada paterna comovida, confessou:
— Enquanto eu e sua mãe estávamos no sofá ao lado do seu corpo debilitado, ainda no hospital, ela me disse que, se Antônia tivesse viva, ela se pareceria com você e teria a sua idade. Mesmo desacordada, você sorriu, como se gostasse da ideia. Foi aí que decidimos torná-la nossa, e como estava em processo de troca de nome, te batizamos de Antônia. Antônia Campos.
Uma lágrima silenciosa escorreu de meu rosto e, impiedosa, instigou que outras viessem.
Era muito louco imaginar a sorte que tive, em meu azar, deles terem compaixão de uma adolescente suja, cheirando mal, com olhar sôfrego e passado desconhecido. Sem pensar duas vezes, até mesmo no perigo que poderia os rondar, me levaram para casa e me tornaram parte da família.
Meus olhos muito provavelmente já estariam vermelhos, minhas bochechas molhadas, mas ainda com uma sensação de gratidão imensa no peito. Nada fiz a não ser encostar minha cadeira perto da minha mãe, agarrar a camiseta do meu pai para trazê-lo para mais perto da gente, e então me aninhei no abraço protetor dos dois. Minha família.
Porque é muito difícil você começar a amar uma adolescente carrancuda como eu fui, sem graça e, aparentemente, que nada tem de especial. Uma menina que não sabia sequer seu próprio nome. Me trataram com tanta dignidade que nunca me senti como uma pobre órfã sem identidade, para que ninguém me olhasse com pena.
— Veja bem, queríamos te contar, mas os médicos e os advogados nos aconselharam a revelar as coisas aos poucos, à medida que você recobrasse a memória, pois sua mente deletou tudo. Parece que seu cérebro rebobinou assim que abriu os olhos no hospital. Somado a isso, você ainda teria que passar pelo processo de adaptação...
— Mas isso não aconteceu, né? Eu não me lembrei de nada — concluí, com minhas mãos espalmadas em minhas têmporas, tentando processar a verdade.
Era como se, finalmente, um quebra-cabeça começasse a se encaixar. Porém, diferente dos que joguei com Lili, esse não se tratava de um cenário alegre e colorido, muito pelo contrário.
Era a minha vida. O meu passado sombrio e terrivelmente maquiavélico, que havia atormentado não só a mim, mas também pessoas que eu gostava. Edu. Até mesmo Bruno. Todos envoltos por essa neblina trapaceira, que me impelia a descobrir que, no fim, não havia absolvição.
Não tinha sido um delírio. Minha memória era real. E era, de fato, minha. Eu tinha somente recuperado um trecho pequeno de um passado, até então, bem guardado em minha cabeça. Mas, ao contrário do que Edu disse, eu tinha participado daquela memória, tanto estive presente, como fui a culpada por Eduardo ter, de certa forma, se fechado por algum tempo.
Isso significava uma coisa. Apenas uma conclusão absoluta e inflexível.
Meu nome não era Antônia.
Mas eu não queria dizer meu verdadeiro nome, pois era muito forte e eu estava aflita. Aterrorizada.
A culpa por tudo o que fiz, mesmo não tendo noção do que, veio como um tsunami destruindo uma civilização, abocanhando tudo por onde passa. Pontadas no meu estômago, tão agudas e violentas, me fizeram encolher como uma menininha amedrontada de novo, e meu choro era apenas entrecortado por soluços vigorosos.
E então, sem pedir autorização, toda a dor que causei a Eduardo e Bruno me atingiu simultaneamente, e em minha mente rodava as cenas que me transmitiam apenas ódio daquela mulher. Agora, na realidade, ódio de mim.
As lágrimas de Bruno enquanto sofria com as alucinações que tinha. A tristeza estampada no rosto de seus pais, sofrendo junto ao filho.
A expressão de Edu, destruído por um passado injusto, que o levou para um vazio de vida, em um mundo sem formas, cores e sentimentos bons. Eu lhe despejei apenas ódio e raiva, que por tanto o dominou.
Separar dois grandes amigos.
Brincar sem se importar com dois corações, que se importavam comigo.
Meus pais estavam assustados diante do meu desespero, e tudo o que fiz, ainda não suportando minhas lembranças, foi empurrá-los para longe. Se eles soubessem, talvez não me amassem mais.
Eu não os merecia. Não merecia ninguém.
Imagens, falas e sentimentos nocivos bagunçavam meus pensamentos, deixando-me aturdida, e eram tão abundantes que eu poderia selecionar qualquer um novamente. Em todos, eu tinha nojo de quem eu era.
Eu tinha nojo de mim.
Sentindo-me sufocar em meio àquele surto, corri até a porta e a abri bruscamente. Com passos mais apressados, tentei alcançar algum lugar longe de mim mesma. Meus cabelos já estavam grudados em meu rosto em razão do suor e das lágrimas irrefreáveis. As pessoas me olhavam como se eu fosse maluca, mas não me importei.
Não era apenas culpa que me consumia, mas também repúdio e desprezo.
Parei de correr entre as ruas apenas quando minhas pernas começaram a latejar, doendo tão quanto a minha dor psíquica, e o frio me acolheu como um bom amigo. Joguei-me em uma calçada em frente a uma construção inacabada e escondi meu rosto entre meus joelhos.
— Por que eu fiz isso com Eduardo, meu Deus? Por quê? Eu queria tanto amá-lo e cicatrizar suas feridas. Mas como fazer isso, quando quem as causou fui eu?
Minha voz era apenas um fragmento minúsculo da esperança de encontrar tais respostas.
Porque saber que, na verdade, Margareth Johnson não havia morrido, parecia ruim. Mas saber que ela, na realidade, era eu, parecia mil vezes pior.
➹➷
Como será depois dessa descoberta? Como Edu vai reagir caso descubra???
Até o prox <3
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