Capítulo 9

AVISO // Esse capítulo contém linguagem imprópria

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Minha loja era um conforto solitário até Lianne invadí-la sem delicadeza. Ela era um carro descontrolado que entrava numa garagem sem precisar abrir. Eu não sabia lidar com ela.

Lianne demonstrava sinceridade em todas as suas atitudes. Até como ela piscava parecia mais honesto que eu:

– Foi mal, mas tu pode falar mais baixo? Tô de ressaca. – foi o que ela falou para um cliente no primeiro dia.

Em geral ela estava de bom humor. Sua alegria era tanta que eu podia perceber o incômodo dos clientes:

– Como você pode estar tão alegre numa segunda feira de manhã?

– Temos que trazer boa vibrações pra ter um bom dia!

E eu notei, com um pouco de inveja, que ela conseguia fazer amizade em minutos:

– Desculpa interromper, mas cês tão falando de Filadélfia?

– Você já assistiu esse filme!?

A loja ficou mais barulhenta com ela falando o tempo inteiro. Eu a coloquei no caixa por um dia até que a vi fazer isso:

– Ta faltando dez centavos? Tudo bem, pode ir, querido.

– Ah, é só cinco centavos. Pode ir!

– Sério? Ah, tu compensa oscinquenta centavos na próxima.

Lianne era uma bagunça! O ponto positivo dela era que as plantas ficaram vivas e mais fortes quase milagrosamente. Em três dias as flores e suculentas mudaram tanto que me perguntei se algum dia cuidei delas direito.

– Nossa, como você fez isso?

– Eu tenho uma conexão com as plantas. Elas falam e eu escuto. Não é, minha pequena jadezinha?

– Ah, eu esqueci de te falar sobre Samael. Eu conversei com ele há alguns dias e descobri que ele é médico e os horários livres dele são na madrugada. Na verdade ontem ele me disse que vai ficar do lado de fora hoje.

– Mentira, amiga! Isso é sério? – ela abriu a boca exageradamente – Só me diz o horário que amanhã te conto os detalhes.

– Não precisa me falar, sério.

– Mas eu quero!

Minha sorte é que Lianne fala mais que escuta, então fiquei um pouco aliviada. Ela sem querer ouvir e eu sem querer falar – melhor do que pensei! Ela não ia me conhecer de verdade.

Voltamos juntas para o condomínio. Fiz uma gororoba qualquer para jantar e coloquei um conjunto saia e blusa. Pretendia sair naquela noite. Estava com vontade de beber, mas não era só por isso que ia para uma balada.

Eu não me envolvia muito com as pessoas, mas ir a baladas era o jeito mais fácil de conhecer alguém sem riscos de ser algo sério. Eu costumava beber as bebidas mais baratas, que costumavam ser as mais fortes, para criar coragem. Havia dois clubes próximos ao condomínio e eu sabia que havia festas quase todos os dias, mas costumava ir nos finais de semana.

Havia criado coragem para ir a boates LGBTQ um ano atrás. Lá eu não tinha medo de homens aproveitadores e beijar uma mulher não trazia olhares. Conseguia um breve espaço para ser eu mesma.

Naquele dia eu dancei. Estava muito bêbada. Beijei várias mulheres e mostrei que não tenho jeito para dança. A música era boa, mas estava tão alta que minha cabeça começou a doer. E eu achei que estava tendo alucinações quando vi Guilherme.

– Eu tô vendo coisas? – cutuquei o braço dele – Ué. É você mesmo?

Eu não ouvi o que ele disse. Balancei a cabeça negativamente e ele segurou meu pulso. Deixei ele me guiar para fora da boate. Estava incomodada com a música.

– Eu te vi beijando várias mulheres. – foi a primeira coisa que ele disse – Você é lésbica?

– Nãão, eu sou hetero, mas beijo desconhecidas por hobbie. – minha cabeça girava – Me chamasse pra perguntar isso? Dá licença que tenho que intensificar meu hobbie.

– Tas muito alterada. Nunca te vi falando assim. – ele passou o braço no meu ombro – Melhor te levar pra casa, eu pago o táxi.

– Ta bom, mãe. Pela fé, eu bebiporque eu quis. Aliás, você tava fazendo o que nessa balada? Você é gay ou bi?

– Ér... Não. – ele ficou envergonhado – Eu gosto de dançar e... de ver mulheres... Não vomita no meu pé, espera!

Guilherme me convenceu a entrar no táxi. Falei onde morava e me acomodei no carro. Andava de ônibus há tanto tempo que esqueci o que é conforto. Naquele dia eu realmente exagerei na bebida, mas Guilherme se provou um bom rapaz. Ele me deu uma pastilha de menta e pediu para o taxista não balançar o carro. Ele até me acompanhou até a porta da minha casa. Queria saber das horas, mas tinha quase certeza que já havia passado do horário livre de Samael.

– Valeu, Guilherme. Acho que foi melhor assim. Imagina se eu tivesse vomitado em alguém!

– Ah, você sempre me ajuda tanto. Quis retribuir pelo menos uma vez.

– Que nada, eu ajudo todo mundo que eu vejo. É o meu outro hobbie.

– Sério? Acho que você me ajuda demais... Você realmente é lésbica? Sempre te vejo com roupas bem femininas e você mesma é bastante... feminina é a melhor palavra.

– Como assim, Guilherme? Você me viu beijando mulheres.

– Eu não quero soar preconceituoso, mas muitas mulheres acham que são lésbicas só que na verdade elas nunca ficaram com um homem de verdade. Você me ajuda mais que as meninas lá do shopping, talvez você só não perceba que gosta de mim.

– O quê? – eu nem sabia o que responder.

– Se você ficar comigo essa noite eu prometo que você não vai se arrepender. Eu gosto muito de você, de verdade! Você foi minha primeira amiga no shopping, sempre tão gentil que fez eu me apaixonar.

– O quê? Não. Guilherme, eu nunca senti atração por homens. Nunca tive vontade de ficar com um homem, não foi nenhuma experiência ruim. Eu só gosto de mulheres e fim. Eu aprecio que você me considere tanto, mas eu não gosto de você desse jeito. Não podemos continuar só como... amigos?

Eu não o considerava um amigo até aquele momento. Saber que ele me considerava gentil me deixou levemente feliz, apesar de todas as besteiras que ele falou.

– Amigos? – ele riu com ironia – Por que as mulheres consideram os cara legais como amigos? Eu te trouxe pra casa e nem tentei fazer algo contigo mesmo você estando bêbada. Fui um cara legal com você desde que nos conhecemos! Vai se fuder, Cíntia! – ele gritou – Vai tomar no cu, sua vadia.

– Que merda ta acontecendo aqui? – a porta da casa ao lado abriu e Lianne apareceu – Eu não sei quem tu é, mas se continuar falando alto eu vou arrancar a tua língua e... Cíntia? Tas gritando com minha amiga? Ah, eu vou ligar pra polícia!

Guilherme foi embora bufando de raiva e eu fiquei abalada. Ele era um bom rapaz, mas apenas para tentar transar comigo. Nunca me tratou mal até ser rejeitado.

– Tas bem?

– Sim... Ele é só um babaca que trabalha comigo.

– Sinceramente, eu ouvi a conversa de vocês. Sim, eu ouvi escondida porque até curto fofocas.

Aquilo me atingiu. Lianne descobriu sobre minha sexualidade! Eu não sabia como ela ia reagir e tentei entrar na minha casa antes de continuar a conversa. Ela segurou a porta e entrou logo atrás de mim.

Eu apenas a olhei nos olhos, esperando qualquer comentário. Queria mostrar que minha covardia não me impedia de parecer forte naquele momento.

– Cíntia, eu tô nem aí se tu é lésbica. Só tô puta com aquele traste. Mas agora eu tô tão cansada... – ela bocejou e deitou no meu sofá. E só acordou quando o dia amanheceu e meu despertador tocou.

Fiquei bastante ansiosa naquela noite e pensei que era melhor me demitir. Ia ser arriscado, mas eu não queria suportar olhares e fofocas novamente. Dormi quatro horas e fui para o shopping cedo, apenas a gerente estava lá. Eu pedi demissão sem dizer o motivo real e voltei para casa.

– Pensei que ia me deixar presa. Bom, eu fiz esse café da manhã simples. O suficiente para nós duas!

Passei a manhã com Lianne, como duas grandes amigas. Ela mostrou que cozinha bem, assistimos a um filme e até descobri uma parte trágica da vida dela.

– É perigoso sair de madrugada, especialmente se tu for mulher. Ser lésbica também ajuda a ser mais perigoso... apesar que tu não é masculina. Na real o mais perigoso mesmo é ser um gay afeminado. Por que será que com gays é pior?

– Eu não sei se é pior... Mas amasculinidade é muito frágil. Qualquer besteira pode considerar um homem"afeminado", então se ele realmente for afeminado o choque é bem maior.

– O meu pai... Vai fazer dez anos que ele se foi... Sabe, Cíntia, é realmente um perigo sair sozinha na madrugada, não importa se tu é homem ou mulher. O meu pai gostava de ir a baile funk e ele foi morto sem razão. Ele foi pra um baile com os amigos, como sempre, e um miserável atirou nele do nada!

– Eu... sinto muito, Lianne. O homem foi preso?

– Quem dera... Enfim, isso pode acontecer com qualquer um.

– Ta bom, para de me assustar.

Ela riu. E eu pensei que talvez eu devesse me permitir ter uma amiga.

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