Violino

Sua percepção de tempo já não era mais a mesma, mas poderia jurar que já faziam três horas desde que sentou naquele banco de couro da van. Para a sua mente, nenhum segundo se passou desde que a pele macia de Samantha havia tocado a sua. Ainda podia sentir o toque circular de seus dedos desenhando sóis dourados em sua pele. Leva uma das mãos até o pescoço, próximo à sua nuca. A ordem dos eventos já não fazia mais sentido, bem como não importava de qualquer forma. Apenas era um fato, e esse fato ocorreu e seu corpo pedia por mais milésimos de segundo naquela piscina meio fria, meio quente.

Ethan aproveitou os cinco minutos dados por Thomas para descer a escadaria de concreto até o andar dos dormitórios. Troca suas roupas molhadas a pedido de James January. Não poderia ficar para sempre usando aquele moletom branco já manchado, muito menos na presença das senhoras. Era quase um evento formal, deveria estar no mínimo apresentável. Ethan ri ao lembrar das palavras do rapaz. Já esteve coberto de água, lama, terra, suor e sangue nesses últimos dias desde que renasceu do lago do Segmento C. Não teve muito luxo para se importar com sua aparência até o momento.

Muda o foco da sua visão da janela para as roupas que vestia no momento. O tecido daquela calça cinza era consideravelmente mais confortável que a que usava anteriormente. A blusa, no entanto, era o que mais chamou a atenção dentre as demais possibilidades disponíveis. Era um branco puro na parte superior, mas, conforme descia pelo corpo do rapaz, um tom de cinza era descoberto vagarosamente, com seu degradê completando-se quando combina com a mesma cor de sua calça.

Esse mesmo efeito degradê também se fazia presente no verde que cobria boa parte da visão externa daquela pequena janela ao seu lado. Pela coloração e tamanho, estrategicamente construídas para manter a curiosidade do lado de fora, não permitia que nenhuma visão dos soldados da NUVEM, ou da Resistência, fosse exposta.

Eram quatro vans como essa onde estava no total, todas enfileiradas, atravessando becos, ruas, vielas e avenidas à luz do dia. Como característica geral, tinham os símbolos da NUVEM por toda parte, afinal, foram roubadas durante os ataques da Resistência contra as Bases de Operação. Na parte inferior de cada um dos veículos, bem distante dos olhos não treinados, estão escondidos pequenos dispositivos de rastreamento à longa distância.

Em cada um daqueles veículos, esse rastreador estava destruído, fora do controle da NUVEM.

Thomas dirigia o primeiro carro, sendo seguido pelos outros três. Ariadne estava sentada ao lado do motorista, lendo algum tipo de livro enquanto comentava com o irmão. Os demais resistentes estavam na parte traseira junto com Ethan, mas nenhum deles era Samantha. O primeiro líder Hope pediu que ela apoiasse a van onde Victor Martes dirigia. Ele não queria que o ruivo fizesse algo fora do normal, então ela ficaria de olho.

Os pensamentos sobre ela retornam, mas tenta afastá-los dessa vez. Acaba apoiando a cabeça na janela para observar o lado externo. Conseguia ver formações rochosas e montanhas à distância, enquanto o vento, que corria apenas pela janela aberta do motorista, brincava com seus cabelos negros. O céu azul já começara a reinar contra o acinzentado de antes, criando uma mistura de cores vivas e depressivas. As nuvens que se formavam eram estranhas, formadas de qualquer jeito, desengonçadas e deformadas. Eram a parte de um quadro perfeito em que o pintor decidiu destruir com pinceladas desordenadas de tinta branca. Ou seja, eram apenas nuvens comuns, comportando-se como nuvens comuns.

Eram livres.

Ethan se perde na beleza das diferentes formas brancas no céu por tempo suficiente para perceber tarde demais que o veículo perdeu sua velocidade. Se aproximavam de uma estação de parada obrigatória de motoristas pelo departamento responsável por todo o trânsito de Delta. Seis guaritas ocupavam toda a parte inicial da ponte pela qual deveriam passar. A estrutura era enorme, com várias entradas possíveis, cada uma com uma equipe que atendia os veículos em ordem. A configuração era mantida com placas, câmeras, sinalização pintada da estrada e iluminada pela farda dos homens com capacete. Até mesmo os cones, as luzes e as hastes metálicas mantinham a mesma paleta de cores.

Tudo era azul e branco.

Era a NUVEM.

Os irmãos Hope levantam os vidros de suas respectivas janelas sem mover mais que seus antebraços.

— Atenção, resistentes! Procedimento padrão! — Thomas mantém o mesmo tom imperativo, tanto para as pessoas presentes no seu veículo, como para os demais que o ouviam através do equipamento de rádio acoplado no seu painel.

Antes de Ariadne fechar a pequena divisória que ligava a cabine do motorista à parte interna da van, Ethan consegue ver que Thomas coloca um capacete, semelhante ao usado pelos soldados do lado exterior, em sua cabeça. Tal movimento é espelhado pela segunda líder, que também calçava luvas brancas. Quando a divisória é fechada, percebe que não consegue lembrar em qual momento da viagem os irmãos Hope vestiram a jaqueta branca e azul pertencente ao fardamento principal da NUVEM. Pelo menos, esse movimento não foi discutido dentre os demais resistentes ao seu redor, todos agora com seus corpos inclinados para a frente na completa escuridão da van sem luzes. Não poderiam chamar atenção já que, para os soldados alheios, ocupavam o lugar de caixas de armas e munição.

Lembrou do tom de voz de Thomas quando as palavras "procedimento padrão" ecoaram em sua mente.

O carro para, mas não desliga o motor por completo. Apesar do interior traseiro estar mergulhado na escuridão, alguns resistentes também fecharam seus olhos.

Ethan prende a respiração enquanto ouvia os passos de quem visualizava o fundo da van, onde estava, pelo lado de fora. Os passos eram ocos, secos, do coturno das botas do soldado em contato com a estrada ainda fria pela recente chuva. Andava lentamente em direção à cabine.

— Identificação obrigatória, soldado. — A voz do homem é projetada em um tom mais alto e abafada pelo capacete, da mesma forma que os soldados que o aprisionaram algumas noites atrás. A memória estava ainda quente em seu hipocampo.

É possível ouvir quando o primeiro líder desce o nível da janela até ser possível passar o pequeno documento azul que tinha em mãos, e nada mais que isso. O soldado recebe o pequeno documento embalado em uma proteção de acrílico e couro em suas mãos. A luva percorre a marca sobressalente da parte de trás, que tinha o mesmo símbolo da organização responsável por tudo que seus olhos conseguiam enxergar ao seu redor, e quando percebe, engole em seco. O nome e rosto do documento não coincidiam com o nome ou o rosto do homem por trás daquele capacete, mas o soldado não sabia disso, e jamais saberia.

O que ele sabia era que estava cometendo uma infração por parar um veículo oficial. Infração grave, segundo o código de conduta da Central de Operações Designadas da NUVEM.

— Peço perdão pela inconveniência, superintendente. Soldados inferiores deveriam ter me alertado... — O homem diz, entregando o documento de volta. Após isso, se afasta da janela para anunciar aos demais na guarita a alguns metros à frente. — Liberem os próximos quatro veículos! Pertencentes a superiores da NUVEM!

Thomas recebe o documento das mãos do soldado e acelera. Ariadne observa de canto de olho enquanto os soldados da guarita, até mesmo os de outras divisórias da ponte, assentiram com a cabeça após receberem a ordem verbal. Nenhum ousou olhar em direção ao interior da cabine. Todos os quatro carros passam pelas guaritas sem mais problemas e atravessam a ponte em completo silêncio. Era possível sentir as sombras das torres de sustentação quando engoliam as pequenas janelas. O escuro se tornava mais escuro.

Até que se tornou claro. A estrada agora estava livre. O carro não para, mesmo quando Thomas retira seu capacete e seus fios loiros voam com o novo ar das janelas abertas. Ariadne mantém os olhos fechados por uns instantes depois de retirar seu capacete, e ainda desvia o olhar de qualquer vista possível do retrovisor interno.

Sempre se sentia enjoada quando se passava por um soldado da NUVEM. Estar ali, na pele de um de seus inimigos de guerra, mesmo que por um instante e por um disfarce, a fazia sentir o gosto de bile ao engolir em seco. Por um breve momento, sentia nojo de si mesma, assim como sentia nojo de todo e qualquer agente por trás daquela farda, daquela insígnia presa ao peito e daquele capacete escuro e claustrofóbico.

— O que foi tudo isso? — Ethan pergunta após se aproximar um pouco da divisória, agora aberta.

A segunda líder fica em silêncio, esperando que aquela pergunta tenha sido sobre o incidente da ponte, e não sobre sua situação após se despir do fardamento azul e branco. Ela estava certa.

Thomas encontra os olhos azuis pelo retrovisor rapidamente, em meio à pouca luz que chegava na área traseira da van.

— A NUVEM foi formada com base em uma hierarquia muito rígida entre quem tem mais poder sobre quem tem menos. E quem tem menos, deve ter medo. — É tudo o que o rapaz loiro responde, retomando os olhos para a estrada.

A viagem continua majoritariamente em silêncio. Alguns sussurros paralelos acompanhavam o vento que corria pelo interior do veículo. Alguns resistentes, como forma de ignorar o tempo daquela jornada, liam livros do andar da biblioteca da Torre, outros faziam anotações. Alguns dormiam, com suas cabeças apoiadas ou nas laterais metálicas daquela van, ou em ombros conhecidos.

O para-brisa do veículo já mostrava uma paisagem bem diferente, com as formações montanhosas deixadas para trás. No final da última colina que a cabine de metal atravessa, a vista panorâmica era colorida com diferentes tons de verde, vermelho e azul. Uma variedade de tons secundários e terciários, cada um mais rico e belo que o outro. E o vento que circulava agora é aromatizado com a mais delicada fragrância do cheiro de uvas, Conforme o carro se aproximava daquele oásis em meio aos montes, mais detalhes enchiam os olhos e a imaginação de Ethan. Era um vinhedo exuberante, com uma organização perfeita de diferentes plantações de uvas.

A cor predominante entre os tons de verde, era o roxo. Manchas que formavam cachos cheios e úmidos. A chuva presenteou a plantação com um brilho natural de gotas de orvalho. E uma construção principal se fazia presente no centro daquele lugar, conectando todos os caminhos de terra batida que invadiam os vinhedos. A casa era gigante e era formada de diferentes partes de formato cúbico ou retangular, com uma área assimétrica. Apesar de possuir apenas uma porta de entrada, muitas janelas estão dispersas igualmente em seus três andares de altura. Sua fachada era feita inteiramente de tábuas rígidas de madeira, deixando a casa num tom ainda mais rústico. Todo o ambiente por si só aparentava ser antigo e muito bem conservado, apesar da passagem das décadas. Pilares de pedra rodeavam a casa como uma proteção arcana, cobertos por videiras virgens. Sua cor era de um vermelho vivo, que se destacava entre o verde das videiras, o roxo das uvas, os tons de marrom, laranja e bege da terra, o azul do céu e o branco das nuvens.

A van em que estava desacelera, podendo sentir os pneus sendo arrastados contra a terra durante o processo de frenagem. O carro é estacionado em uma área livre, ao lado da grande casa que habitava o centro daquele terreno. Em seguida, os demais veículos ocupam os demais espaços livres, um seguido do outro.

A porta lateral da van é aberta e os resistentes iniciam sua saída antes que Ethan percebesse. Ele é um dos últimos a passar pela porta e aterrissar no chão de terra fofa. Os demais membros dos demais carros também acompanham o movimento do primeiro carro. É possível ouvir as portas de metal dos veículos correndo pelos trilhos em um som suave. Logo, uma pequena multidão é formada na área frontal da casa vermelha, próxima a um dos pilares cobertos de vinhas.

Ethan McAllen observa ao seu redor, e ao redor de seus arredores. Observa também ao redor dos pilares frontais e ao redor dos veículos estacionados na lateral. Seus olhos procuravam o brilho dourado do pingente de elefante de Sam.

Não encontra o que busca.

Mais pessoas passavam ao seu redor, todas diferentes em rosto, em corpo, em alma, em memória. Todas diferentes entre si. Nenhuma igual a Samantha Wit.

— Não se preocupe. — Thomas diz ao seu lado, apoiando seu braço direito em volta do pescoço de Ethan. — Você está seguro aqui.

Eles continuam assim até se aproximarem na porta principal, passando por uma varanda externa com bancos brancos de ferro e rosas vermelhas e amarelas por toda parte. O primeiro líder bate na porta de madeira algumas vezes e, após não receber resposta alguma, abre-a lentamente. A mobília interna mantinha o estilo da casa, sempre rústico e antigo, mas assim como o seu exterior, bem cuidada. As paredes internas da casa eram decoradas com enormes quadros. Diversos tamanhos, mas todos grandes. As molduras eram todas pintadas de uma tinta dourada, ou prateada, ou simplesmente branca. Um rubrica em tinta preta finaliza as pinturas, presente unanimemente no canto inferior direito de cada quadro.

As pinturas nas paredes protagonizavam geralmente a plantação de uvas ou uma mulher de pele tão pálida quanto os seus fios de cabelo. A atenção aos detalhes era impressionante, com pinceladas tão reais que mais pareciam grandes fotografias. Ethan se aproxima da senhora pintada no quadro para ter certeza de qual segmento da arte estava admirando. De perto, as tintas à óleo pareciam ainda estar molhadas no quadro. Durante sua inspeção, finalmente percebe uma melodia lenta e delicada de violino como único som ambiente além de seus passos no chão forrado.

— Senhoras? — O rapaz loiro braveja, conforme o grupo avança pela casa. Thomas permanecia na frente, liderando a caminhada do grupo que ainda não havia entrado por completo na grande casa. — Vocês estão aqui?

O instrumento de cordas solta uma nota aguda como sinal de sua existência, antes de interromper de vez o som da melodia que tocava.

—Estamos sempre aqui, meu bem! — Ouve-se a resposta de uma sala um pouco distante daquele corredor principal. As palavras eram doces num tom suave e calmo, porém feliz. Quase conseguia sentir o sorriso formado entre as palavras. — Venha nos ver!

Em direção à voz de resposta, o grupo logo se vê em uma sala com uma parede inteiramente de vidro, de janelas que enfeitavam do teto ao chão, mostrando parte da plantação do outro lado. Uma mulher vestida com um paletó escuro que cobria uma blusa azul acinzentada de botões estava ali, de costas para aquela paisagem e de frente para a porta da sala, por onde os resistentes entram. As pérolas em seu pescoço assemelhavam-se com a cor de seus cabelos curtos e seu tom de pele repleto de rugas e marcas de idade. Aquela era a mulher retratada nos quadros, e a sua versão real era tão pintada à mão quanto as pinturas distribuídas pela casa.

Há alguns passos de distância da sua frente, outra mulher estava ali. O tom escuro de sua pele apenas era coberto por duas longas mantas, uma laranja e a outra vermelha, que vestiam seu corpo em laços em seu pescoço até seus calcanhares. Em seu rosto, apenas um par de óculos espaçosos e circulares. Nada cobria sua cabeça lisa. Orelhas, pescoço, punhos e calcanhares eram repletos de joias e ornamentos pertencentes à mesma paleta de cores das mantas. Ela aparentava possuir a mesma idade da senhora com o violino e manuseava cuidadosamente a tinta do pincel que segurava para a tela, usando a outra senhora como modelo.

A pintura, quase finalizada, era quase uma fotografia da visão logo à sua frente.

— Finalmente chegaram, meu bem! Como foram de viagem? — A mulher de paletó deixa o violino de lado, pondo-o sobre a pequena mesa próxima e caminha até o primeiro líder, envolvendo num abraço demorado. O sorriso em ambos os rostos foi instantâneo, bem como nos rostos de diversos outros ali presentes. — Venham todos aqui, temos um pouco para cada um.

Logo a sala ficou lotada, com cada senhora sendo abraçada pelos resistentes, que recebiam um pouco de atenção por vez. Ethan apenas observou, posicionado com as costas contra uma parede distante enquanto aquilo acontecia. Com o passar do tempo, o fluxo foi diminuindo até restar poucos. Thomas então olha para o lado e puxa McAllen pelo braço e o leva até a primeira senhora.

— Senhora Runald, gostaria que conhecesse Ethan. — O rapaz diz, posicionando o garoto entre os dois.

A senhora, que era consideravelmente menor que os demais, observa-o de cima a baixo antes de abrir os braços novamente, trazendo-o para um abraço apertado e carinhoso. Alguns segundos depois ela solta-o para observar seus olhos de um tom de azul escuro.

— Muito prazer em finalmente conhecê-lo, querido Ethan. — Ela diz em meio a um sorriso largo. — Pode me chamar de senhora Runald, e essa é a senhora Kjaro, minha esposa. Temos muito o que conversar, meu bem.

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