Violeta

Samantha mantinha passos leves e delicados enquanto caminhava com Ethan ao seu lado. O rapaz conseguia ver o movimento de seus longos fios cacheados e castanhos com sua visão periférica, tão leves e delicados quanto o caminhar dela. Ao redor deles, os demais resistentes variavam a velocidade de suas marchas de acordo com a urgência das tarefas que foram designados a cumprir.

O alarme nas paredes ainda estava em sua mente, assim como a pressão da mão de Thomas contra seus lábios, mesmo sabendo que esses dois eventos haviam terminado minutos atrás.

Desceram até o andar inferior, onde encontrara Ariadne pela primeira vez e recebera um leve corte no alto do pescoço em sua chegada. Sua mão seguiu seus pensamentos e já estava tocando o leve ferimento. A pele áspera que cobria como uma película já havia cicatrizado há muito tempo, mas o mesmo frio percorreu sua espinha mais uma vez.

Os passos de Samantha o levou até uma enorme mesa distante da entrada do andar. Havia uma toalha azul de jantar sobre ela, que cobria perfeitamente todo o comprimento do móvel de madeira. Sobre o tecido, na área central da mesa, descansava um jarro de vidro com o que parecia ser uma violeta dentro dele, hidratada com água até metade do recipiente. Existia uma variedade de bolos, pães e sucos ao longo da mesa, onde alguns membros da Resistência ainda comiam livremente. O cheiro de café novo invadia o ambiente, como uma força etérea e infinita.

Sam sentou em uma cadeira de madeira da ponta e indicou a do seu lado para o garoto que passava tempo demais analisando os ambientes em que visitava. Ethan obedeceu instintivamente.

— Pode pegar o quanto quiser. Você vai precisar. — Ela inicia, enchendo duas xícaras com o café. Algumas frutas estavam à sua frente. A mesa era farta. — Não se preocupe com a quantidade. A esse ponto, quase todos já comeram.

— Sinto como se não comesse à dias. — Ele respondeu, olhando-a por leite na própria xícara, completando até a borda, e o observa com um olhar interrogativo. Ele nega com a cabeça, preferindo a xícara de café puro, e a garota arrasta a cerâmica em sua direção. — Obrigado.

— Talvez não comeu. — Ela responde o encarando. — Você não lembra o que aconteceu antes do branco em sua mente. Talvez estivesse preso em algum lugar, privado de se alimentar. — Sam toma um gole do café com leite, faz uma careta e adiciona duas colheres de açúcar. — Vai saber?

— É muito estranho tudo isso. — Ethan observa o vapor saindo da xícara bem à sua frente, o calor formando pequenas ondas contra a umidade do ar. — Acordei no fundo de uma lagoa, sem saber quem eu era. Não tinha nada em minha mente, nem rostos nem qualquer outro vestígio de memória. Não tinha nada.

— Poderia ter sido uma morte terrível. — Ela mexe a pequena colher de metal na xícara novamente, mesmo sem necessidade. — É a morte que mais temo. Ficar submersa no fundo e não conseguir mais prender a respiração. — Ela captura o olhar dele por alguns instantes. Sam observa os detalhes rachados nas íris azuis escuras dele. — Não se preocupe com o que acabamos de passar, acontece toda semana. A NUVEM faz essa busca para ter certeza que a Resistência não se apossou dessa área. Mal sabem eles que estamos aqui, bem abaixo de seus narizes.

Ela toma um gole de sua xícara. Ethan ainda não tinha percebido a beleza da garota bem a sua frente. Pele escura, delicada, com feições fortes por conta da sobrancelha e nariz finos e definidos. Estava usando uma blusa branca e shorts jeans pouco acima dos joelhos. Segurava a xícara branca de porcelana com apenas uma mão e Ethan sorriu quando percebeu que ela fecha os olhos sempre que o líquido quente toca seus lábios carnudos. O cabelo castanho escuro que parecia brilhar contra qualquer vestígio de sol deixava á mostra seu pescoço. O pequeno pingente em forma de elefante dourado estava lá, em contraposição à blusa branca da garota.

— E qual o motivo dessa caçada da NUVEM contra vocês? — Ele perguntou, não conseguindo sair completamente dos próprios pensamentos. — Deve ter um motivo específico, não tem?

Ela assentiu.

— Bom, além de ter o motivo óbvio da força contra o governo, nós queremos acabar com o sistema autoritário deles pela Colheita.

— Já ouvi falar disso. — Ele responde interessado. Lembra das palavras da doutora de volta no acampamento no meio da floresta. Uma das primeiras das suas novas memórias. — Já foi comentado vez ou outra. O que seria isso?

— A Colheita é um evento trimestral obrigatório realizado no centro do Meridiano, exatamente no pátio frontal à Sede da NUVEM. — Sam pausa para ter certeza que Ethan acompanha a linha de raciocínio dela. — Ela diz à população que é uma espécie de vacina cerebral que combate vírus e doenças, retirando-os do corpo.

— E na verdade não é isso. - Ethan responde, fitando sua xícara de café - Isso é como se fosse a propaganda, não é?

— Não exatamente. — Ela acomoda as costas na cadeira. — Eles fazem isso, mas omitem a parte que é realizada uma busca na mente da pessoa, e é coletada o máximo de informações possíveis, principalmente sobre o paradeiro da Resistência e "lendas" sobre a NUVEM. — Ela faz o símbolo de aspas com os dedos quando fala lendas. - Coisas do tipo conspirações acerca da corporação ou pensamentos contra o sistema de Colheita. Qualquer coisa que eles achem que possa ser uma ameaça no futuro.

— E como vocês quebraram o sistema? — Ethan estava realmente interessado. Aquele era seu passado, tudo o que estava acontecendo.

— O sistema de Colheita não consegue raptar a memória de todos da população da mesma forma. — Ela responde lentamente. — Algumas pessoas são... desenvolvidas. A Colheita deixa de fazer efeito depois de um tempo. A primeira vez que isso aconteceu, a pessoa viu a realidade da NUVEM e resolveu que não faria mais parte do sistema. Assim, foi criado o primeiro resistente à Colheita. O resistente zero. Logo, outros também quebravam o sistema, também desenvolvendo a resistência e tentando mostrar à população o que a NUVEM fazia.

Ethan percebe que o olhar de Sam desce para a xícara de porcelana que segurava com ambas as mãos. Sente o olhar da garota se perder no líquido mestiço.

— Claro que não durou muito tempo. — Ela finalmente continua. — A NUVEM descobriu e matou todos eles. Em seguida, a Colheita foi melhorada e passaram a exterminar os resistentes iniciais. Demorou para haver outra melhoria no desenvolvimento cerebral. Mas antes que pergunte, nem todos nós temos essa capacidade. É muito rara, na verdade. A maioria dessas pessoas que está vendo foram recrutadas em outras Colheitas. A maioria já estava sem os pais ou mães ou ambos, presos pela Colheita. Thomas e Ariadne nos salvaram, e são respeitados por isso. Criamos a nova Resistência, a nossa, e todos se ajudam como se fosse uma fraternidade ou irmandade, tanto faz. Esse é o nosso objetivo. Queremos libertar as memórias das pessoas de Delta, para que possamos todos finalmente viver livres.

Todas as peças estavam fazendo sentido agora. A NUVEM quer se manter no poder, então muda a mente das pessoas para alcançar esse objetivo. Acredita que era bem mais fácil ter bem visto pelos olhos de todos quando toda a sua sujeira poderia ser apagada e jamais relembrada.

"Apenas uma parte não faz sentido" , ele pensou.

— Qual? — Ela se aproximou um pouco dele, e foi quando Ethan percebeu que seu pensamento fugiu pela boca.

— Eu. — Respondeu lentamente. — Como eu entro nessa história? Como eu vim parar no meio de um lago? Como posso não me lembrar de nada e estão me caçando por aí?

Então houve o silêncio.

Então houve a resposta.

— Eu não sei. — Ela respondeu. — E ninguém sabe. Realmente não faz sentido, e por vários motivos.

Ele a encarou, seu olhar era triste.

— Você tem o sobrenome McAllen, um sobrenome de um dos Fundadores. — Ela responde à pergunta em seu olhar. — Mas a família dos Fundadores é a única que não sofre a Colheita em nenhum ponto da vida. Se você é quem diz ser, você deveria lembrar quem era.

Ele voltou a encarar a xícara de porcelana e toma mais um gole do líquido preto.

— Mas não lembro.

Ela coloca uma mão em seu ombro direito. Ele conseguia sentir a pele macia mesmo sobre a manga de sua blusa.

— Mas isso pode não ser ruim. — Sua voz tinha compaixão. — O seu eu do passado pode ter feito algo que irritou os Fundadores, talvez até tivesse sido um atentado contra o sistema. Eles podem ter tentado te reprogramar, mas não funcionou.

Mais uma vez, ele a encara com dúvida.

— É a segunda parte do processo da Colheita. — Ela respondeu a pergunta que não fez. — Eles primeiro apagam a memória, parcial ou completamente, da pessoa e inserem uma nova, fazendo-o acreditar que sua vida era aquela programação, então ela a aceita. Deve ter acontecido um erro na sua programação, mas não na coleta de memória, já que tem no braço a marca da Colheita. De alguma forma, você apareceu naquele lago, mas não tenho palpites para isso.

Ethan observa a tinta escura presa na carne de seu antebraço. Obviamente, não era um resistente, nem pela Colheita, nem pela Resistência. Ele perdeu quem era no passado. Seus sonhos, suas vontades, seus desejos, seus acertos e seus erros, tudo foi perdido. Agora tudo estava longe de si, e sentia que ainda mais distantes que inicialmente pensara. Era alguém novo, com pesadelos, medos e cicatrizes novas. Observa o vaso no centro da mesa, não tão distante de suas mãos, e percebe que aquele recipiente tinha mais conteúdo que seu corpo sem sua programação. Pensou que talvez fosse melhor viver qualquer falsa verdade implantada em sua cabeça do que viver sem absolutamente nada. Ele se virou para capturar o olhar da garota ao seu lado, e teve a certeza que seus pensamentos não saíram dessa vez.

Ela tomou um último gole do líquido de sua xícara. O dele já tinha terminado faz tempo. Alguns pontinhos pretos habitavam o fundo de sua xícara.

Então Ethan ouviu o elevador de carga sendo usado no fundo da sala. Metal contra metal, engrenagens se colidindo e girando simultaneamente. Todos estavam trabalhando, como os órgãos de um corpo. Membros de uma causa. Todos tinham um propósito ali, e ainda não estava claro qual era o seu.

— Assim que eu terminar essa fatia de bolo, te levo à zona de tiros como Thomas pediu. — Samantha captura sua atenção novamente. Era um bolo de chocolate em sua mão direita. Na esquerda, a xícara de café com leite. — Acho que ele consegue esperar só mais um pouquinho. A culpa não é minha se ele faz um bolo tão bom.

Ele sorri para ela, e perde o olhar em seus pensamentos novamente. Não tinha mais fome, já conseguia se saciar por completo com seu próprio existencialismo. Depois, ele se pegou pensando na delicada violeta no centro da mesa, dentro do vaso de vidro com água o dia inteiro. Pensou se mais alguém pensava nela sempre que fosse comer.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top