Taças de Vinho
Thomas ensinou uma técnica de desarme a Ethan durante o treinamento daquela tarde. A senhora Kjaro sempre foi muito pontual quanto a necessidade de aprender a derrubar um soldado da NUVEM quando ele tem a vantagem de estar armado. Aquele pedaço de metal pode ser a diferença entre quem vive e quem morre, tudo em uma questão de quem tem um reflexo mais rápido. Então, os reflexos dos resistentes deveriam ser mais rápidos que os de um soldado treinado pego de surpresa.
Thomas explica que sua técnica é formada por três passos: O primeiro, segurar o cano da arma, independente de estar sendo apontada para a sua cabeça ou da de alguém que ama, com sua mão não dominante e avançar a arma alguns milímetros na direção do soldado; O segundo, como o treinamento da NUVEM era rigoroso na questão dos agentes segurarem as armas de fogo com as duas mãos, golpear por cima a área em que ambos os pulsos se encontravam, fazendo-o soltar suas mãos e impedindo que acione o gancho por acidente; O terceiro, com a arma agora em sua posse, puxar o gatilho. Ele tinha perdido a vantagem, que agora era sua. Você ganhou o jogo.
O primeiro líder consegue um revólver e descarrega o tambor na frente de Ethan. A munição quica no chão coberto pelo tatame, ao lado dos pés descalços do rapaz, que retoma sua posição de ataque e defesa. Os olhos azuis de encontro com os verdes. Ambos focados. Ethan toma posse da pistola descarregada do primeiro líder, que lhe oferecia com as duas mãos à sua frente.
Em um movimento rápido, o loiro segura a arma com uma mão e soca ambos os pulsos que seguravam a arma com a outra, fazendo McAllen soltar e distanciar-se do revólver. Foram os três passos, um seguido do outro como Thomas havia explicado. Muito rápido, muito preciso. Houve reação nos dois. Surpresa e curiosidade para Ethan, fazendo Thomas sorrir.
— Segure essa arma com força. — Ethan diz, já na mesma posição que o primeiro líder estava. — Agora é a minha vez.
Aquela não foi a única técnica de defesa desarmada que o primeiro líder ensinou a Ethan. A tarde de treinamento foi cansativa, mas foi pausada duas vezes pela senhora Runald, que trouxe leite fresco e biscoitos quentes para os rapazes suados. Não podiam gastar energia que não tinham. Thomas nem sequer negou o agrado, já que aprendera com ela desde cedo as consequências de não aceitar.
Quando foram visitados pela terceira vez, tiveram que finalizar. Um banquete formal seria servido como jantar para toda a Resistência. A tarde havia passado e Ethan estava exausto. Sentia que seu corpo o odiava. Sentia que, se seus músculos tivessem a oportunidade de falar palavras, o insultariam. Os garotos se separaram pela primeira vez naquele dia e caminham para seus respectivos quartos.
Aquela casa foi um presente às senhoras, dada pela NUVEM há muito tempo. Ele já sabia toda a história. Os Fundadores da época da vigésima sétima geração reconheceram os esforços e conquistas delas e as recompensaram, depois de algumas décadas de trabalho na corporação, quando pediram para deixar seus cargos. Eles não faziam ideia que elas já eram imunes à Colheita e que sabiam da história banhada em sangue e mentiras daquele governo. Nunca souberam. Nunca saberiam.
Em respeito às agentes de honra, que dedicaram suas vidas inteiras em prol do crescimento do poder da NUVEM, foi feito um acordo entre as agora senhoras e os então Fundadores. Um terreno para viverem em paz até o inevitável fim de suas vidas, distante dos traumas e violências que aconteciam nas operações. E estavam livres, longe dos olhos vermelhos da companhia azul. Tinham essa palavra porque tinham um voto de confiança.
Elas eram as melhores agentes que a NUVEM já treinou até então. As mais rápidas, as mais fortes, as mais frias. As mais detalhistas. Não deixavam nenhuma sujeira em nenhuma missão. Eram perfeitas, eram perfeccionistas.
Heroínas aos olhos dos Fundadores e de toda a população.
A Resistência jamais existiria se o casal de agentes assassinas ainda estivesse em campo quando a Aldeia estava viva na floresta. A NUVEM sabia que tinha sido desleixada ao permitir sobreviventes daquela praga que logo se tornou sua maldição. As agentes Runald e Kjaro jamais seriam desleixadas assim. Elas terminavam o serviço. Nenhuma história jamais sobreviveu para ser contada. Todas morreram com seus contadores de histórias. Eram apenas lendas.
E lendas eram apagadas na Colheita.
A agente Runald foi a primeira a desenvolver resistência. Depois do processo que demorava apenas alguns segundos, ela sabia o que tinha acontecido. Se tornou um deles, um dos inimigos. Mas, algo não estava certo. Algo dentro de si sabia que não era só aquilo. Kjaro passou por um estágio de negação antes de aceitar a dolorosa verdade. O que sentiu foi luto. Luto por ter gastado sua vida inteira no lado mentiroso, no lado sangrento, no lado sombrio.
Luto por todas as famílias que foram subtraídas por suas mãos.
No mesmo ano, ambas pediram afastamento. Receberam a casa, o terreno e a paz. Construíram um império com a plantação do vinhedo, com a sua própria fabricação de vinhos. Principalmente tintos. Era o favorito das duas. A lealdade à NUVEM trouxe remuneração, mas também trouxe fama. Todo mundo queria uma garrafa do "Vinho SenhoraS", e não demorou até que elas comandassem o mercado.
Elas sabiam que o passado nunca conseguiria ser apagado. Sabiam também que, se pudessem, escolheriam não ter resistência à Colheita e apagariam todas as suas vidas como militares da NUVEM. Apagariam os rostos daqueles que assassinaram em prol do "bem maior" tão prometido. Talvez assim, conseguissem dormir.
McAllen subiu algumas escadas até poder fechar a porta de sua suíte. Retirou aquela camiseta encharcada que ainda vestia, apoiando-a em seu ombro. Entrou no banheiro simples, retirou o restante de sua roupa e olhou para si mesmo no espelho sobre a pia. Parecia cansado, e realmente estava. Deixou a água levar todas as impurezas. Seus músculos ainda estavam tensos, mas não apenas devido ao treino. Era devido a tudo. Encontrou roupas limpas nas gavetas da cômoda próxima à sua cama. Quando finalmente ficou pronto, desceu os andares até sair da casa vermelha pela porta da frente.
O cheiro daquele lugar era um meio termo perfeito entre madeira e absinto. Essas eram as únicas palavras que Ethan achou que conseguiam definir. Era uma abertura ao lado da grande casa, com duas portas de alçapão que, depois de dois lances de escada, levam para um porão gigantesco. Barris armazenados e enfileirados de forma horizontal em estantes decoravam as paredes. A cerca de 6 metros de altura, lâmpadas estavam dispostas em linha, de forma que iluminavam todo o lugar. Eram seis pequenos lustres que desciam para mais próximo da grandiosa mesa de madeira que ocupava todo o centro daquele armazém.
Alguns resistentes já estavam dispostos ao longo das cadeiras.
— Bem vindo à grande adega, meu bem! — A senhora Runald disse, enquanto se movia lentamente na escada até chegar ao mesmo nível que Ethan. A senhora Kjaro, que já estava no armazém, apressou-se em ajudar sua esposa a descer, segurando-a pela mão. A mulher de cabelos prateados aceita a mão oferecida de bom grado. — Sente-se em qualquer lugar, querido. Falta pouco para começarmos.
Dito isso, Ethan consegue ver uma garota do outro lado da mesa. Ela acenava para ele, com um sorriso entre os lábios carnudos. Um pingente dourado brilhava junto à sua pele exposta pelo vestido florido que viu mais cedo. Seu corpo segue em sua direção de forma quase imperceptível.
— Ethan McAllen! — Ela diz no meio de um abraço. Seus fios cacheados estavam dispostos tanto em suas costas quanto abaixo de sua clavícula. Sentia que as flores de seu vestido exalam um aroma agradável, mesmo sendo feitas de lã. — Por onde esteve?
— Passei a tarde inteira em treinamento. — Responde e senta na cadeira ao seu lado. — Meus músculos doem.
— Começamos a colheita das uvas verdes hoje. — James January estava sentado do outro lado da mesa, conseguindo ouvir a conversa pela metade, e chama sua atenção. Ethan não tinha notado sua presença até aquele momento. — Você precisa provar alguma dessa safra. As senhoras sempre sabem o momento certo de colher.
McAllen o cumprimenta com um aceno de cabeça, que é logo retribuído com um sorriso.
Na mesa havia a presença de inúmeras panelas de barro, todas fechadas. O aroma no ar fazia sua boca salivar. Para cada assento, um prato e dois talheres. Para cada assento, uma taça de vinho enchida até a metade.
— Queridos! — A atenção de todos foi levada à ponta da mesa, para as senhoras levantadas. Os líderes da resistência estavam na primeira cadeira de cada lado, com Thomas à direita da senhora Runald e Ariadne, à esquerda da Kjaro. A voz falhada da mulher de paletó, agora escuro, ecoa por toda a adega. — Antes de começarmos nossa cerimônia como todas as outras vezes, tenho algo a dizer. Os tempos para pessoas como nós estão mais difíceis. A NUVEM, mesmo desconhecendo a real influência da Resistência, está mais preparada para qualquer ataque. Mas devemos ser fortes, isso é uma esperança!
Em sincronia, as senhoras e os líderes, os Hope, levantam suas mãos que seguravam taças de vinho ao alto. Depois, cada um dos que estavam ali presente na mesa, resistentes de diferentes idades, levantou seu cálice com o líquido cor de sangue ao céu. Por um momento, pensou se essa era sua simbologia. O sangue de cada um ali, pronto para morrer pela sua vida.
Morrer pelo seu direito de lembrar.
— Pela liberdade! — Todos disseram em uma voz uníssona, com um timbre único, como uma só pessoa ou entidade. Cada um unido por um bem maior, uma causa.
Ao redor de McAllen, rostos sorridentes e olhos que demonstravam determinação. Não importava o cargo que exerciam ou o tempo de memórias que tinham. Cada um deles expressavam o mesmo sentimento. Cada um deles vivia com intensidade aquela guerra. Eram as suas cabeças que estavam em jogo, cada um ali sabia disso, e a NUVEM não teria piedade quando chegasse a hora.
O líquido vermelho escorrendo por suas gargantas, como foi o de seus antepassados derramado ao chão, os davam forças para continuar. A única forma de honrar suas memórias era continuar. Lutar, não somente por cada um que se encontrava naquela mesa, mas por cada um que merecesse a libertação. Lutar pelo que um dia foram. Lutar pelos que um dia vão ser.
Todos tinham o sonho de se encontrarem no futuro, quando tudo aquilo acabasse, e levantar taças de vinho em comemoração de sua vitória. A luta teria valido a pena. Os sacrifícios não teriam sido em vão. Seus nomes teriam uma segunda chance.
Viu as senhoras Runald e Kjaro sorrirem, como vingança dos males que tiveram que fazer em nome de tantas mentiras. Viu os irmãos Thomas e Ariadne Hope sorrirem, como vingança de terem suas vidas sacrificadas em nome da criação da Resistência. Viu Samantha Wit sorrir, como vingança pelo seu pai.
Ethan McAllen sorri em meio a tantos sorrisos, mas ainda não sabia qual vingança o marcava.
O que ele sabia era que, com esse ritual de sangue e de taças, fez um pacto consigo mesmo de vingar a história de cada um ali presente. Cada um ali teria a sua segunda chance. Cada um ali vai comemorar a vitória no final daquela guerra. Ele dava a sua palavra.
Mas, para isso, a NUVEM tinha que cair.
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