Jaleco Vermelho

Mais de dez soldados estavam guiando Ethan para a entrada da Base. Talvez fossem quinze, mas ele não tinha forças suficientes para contar. A visão da floresta escura dá espaço ao interior iluminado artificialmente e o garoto precisa de um pouco mais de tempo para que suas pupilas possam se acostumar com a luz branca que refletia na lona amarelada, realçando o tom bege do tecido e o tom caramelado de sua pele.

O lugar era bem organizado. Mantimentos, armas e medicamentos estavam em uma das tendas. O dormitório aparentava ser em outra, interligada internamente com as demais, com camas improvisadas e sem conforto algum. A terceira e última tinha uma porta, também de pano, com palavras escritas em caixa alta e tinta escura no visor transparente.

"Doutora Leonor Rodriguez".

É pra lá que estava sendo levado. Impressionado com o tamanho e com a complexidade daquela estrutura, não conseguia falar nada. Não que fosse capaz de expressar seus sentimentos em palavras. Seu medo era do mesmo tamanho de sua curiosidade.

A marcha dos soldados para logo na frente da porta. Um dos militares retira as algemas dos pulsos do garoto, mas as mãos cobertas por luvas dos soldados ao seu lado continuam a prendê-lo em seus antebraços e por suas roupas. Ele é empurrado para mais perto da porta quando o general agarra o pescoço de Ethan com uma mão e, com a outra mão livre, sobe a lona que servia como porta, expondo o interior gigantesco da tenda. No fundo daquela sala, uma mesa metálica com pernas finas que suportava pequenas pilhas de papel e um computador. Atrás da mesa, uma mulher de pele alva que usava um jaleco tão branco quanto suas mãos ou quanto os papéis que olhava fixamente.

— Doutora Rodriguez? — A mulher ignora o general, apenas soltando um murmúrio de interrogação, com a vista presa no que pareciam ser relatórios. O garoto é empurrado mais uma vez pelo homem, atravessando a porta e tropeçando quando todos os soldados finalmente soltam-no, mas permanece em pé, antes de ser anunciado. — Ele está aqui.

Ela finalmente olha.

— Ethan McAllen! — A mulher branca de longos cabelos negros presos num coque se levanta de sua cadeira atrás da mesa de pesquisa, deixando os inúmeros papéis que segurava para trás e aproxima-se rapidamente do rapaz, fazendo seu jaleco branco se movimentar livremente no ar da sala. Quando tem o garoto bem à sua frente, põe sua mão no ombro dele, tocando um monte de areia ainda úmida. Sua pele era fria o suficiente para Ethan conseguir sentir a baixa temperatura através de sua roupa suja. — Finalmente esses idiotas o encontraram. Bem-vindo de volta, querido.

Ele a encara com total indiferença, mas com uma interrogação no olhar. A doutora usava um óculos de material vermelho escuro e lentes grossas, diferente de todas as suas roupas azuis e leves por baixo do jaleco. Seu sorriso fazia aparecer marcas de expressão em seus olhos.

— Quem é você? — Ele praticamente cospe as palavras, antes de tirar a mão dela de seu ombro. Era tudo o que conseguia dizer.

O sorriso forçado da mulher dá lugar a uma linha horizontal reta. Duas linhas semelhantes aparecem na testa dela, juntamente com um olhar fixado no seu. Ela bufa.

— Não se lembra de nada, não é? — Por um breve momento, sentiu como se a mulher desse ênfase às vogais de sua fala, desenhando-as em sua mente antes de saírem ao mundo. Ela dá meia volta, até sua mesa, enchendo dois copos de vidro com vinho. A garrafa esverdeada tinha um rótulo com o nome "SenhoraS", com ambas as letras S maiúsculas. A logo acima da marca aparentava ser a mesma letra duplicada. Faz um sinal para que os soldados deixem a sala com a mão livre, mas sem tirar o olhar da garrafa e das taças. Os militares respondem com uma breve reverência com a cabeça, e não com uma continência.

Outro sinal é feito com a mão, mas agora para que Ethan sentasse em uma das cadeiras próximas.

Assim o faz, mesmo com alguma incerteza.

— Eu não fui informada de sua ausência de memória. — Admite, entregando uma das taças para o garoto. Ele o deixa no chão, ao lado de seus pés. — Os Fundadores repassaram apenas o objetivo... Mas isso não importa agora. Você vai voltar comigo para a Sede da NUVEM amanhã de manhã e resolveremos tud...

Ela então percebe a marca no antebraço do garoto. Os olhos vidrados em choque e se aproxiam rapidamente dele. Solta na mesa a taça que segurava e leva suas mãos livres à pele dele, tocando as tintas vermelha e preta gravadas em seu corpo. O olhar atento passa de sua pele para o fundo de seus olhos.

— Como você conseguiu isso? — Dessa vez, não faz questão de desenhar as vogais. Sua pergunta sai como uma exclamação. — Quem fez isso em você?

O garoto não entende de imediato, assustando-se com o ato brusco e inesperado, mas quando segue a mesma linha de visão daquela mulher logo arrasta a manga longa da blusa por cima do X vermelho, recobrindo-o.

— Não importa. — Ela anda até sua posição inicial e encosta as próprias costas na confortável cadeira atrás da mesa metálica. Com a mão esquerda, segura a taça cheia por entre dois dedos. — Resolveremos isso também quando estivermos juntos aos Fundadores, amanhã pela manhã.

Uma sombra de sorriso aparece no canto da boca dele, mesmo com o estômago revirado devido a presença dela.

— Não. — Ele responde. A mulher pausa o líquido vermelho de entrar em sua garganta. Tem que mover-se para a frente um pouco, tocando a área de seu abdômen na mesa. — Não vou a lugar nenhum.

A doutora paralisa espantada, com o olhar preso no garoto com atitude, mas logo ri com deboche, tomando outro gole do vinho em seu copo enquanto recosta seu corpo na cadeira. Apesar do olhar sempre fixo, seja nos papéis, seja nas linhas vermelhas, seja no olhar de Ethan, a doutora sempre fechava os olhos quando tomava outro gole do vinho. Seu corpo não aparentava nenhuma preocupação diante da atitude do garoto, o que preocupou ainda mais Ethan. Ela já esperava por algo assim.

Na verdade, ela esperava por algo muito pior.

— Ah, querido - Ela inicia lentamente. A taça de vidro volta a descansar na mesa, próxima à garrafa e ao computador. — Não é só meu emprego que está em jogo aqui. Há assuntos mais importantes...

Ele se levanta da cadeira, ignorando totalmente cada palavra que ela disse. Quando se vira de costas para a doutora, sente o cano frio de uma pistola tocar sua testa, paralisando-o completamente.

O general estava ali. Ordens da doutora, claro. Nos olhos dele, apenas determinação e indiferença. Do outro lado, desespero estático. O cano frio marcando um pequeno círculo no espaço entre as sobrancelhas dele. Atiraria se quisesse, Ethan sabia disso.

— O que está em jogo aqui, garoto... — O general diz em um tom baixo, muito diferente do tom que usou mais cedo com os dois soldados na trilha de terra. — são as nossas vidas.

Vidas?

— Como eu disse, Ethan. — A mulher retoma, fazendo o rosto do garoto virar em sua direção. A arma permanece firme, agora tocando sua nuca. — Há assuntos mais importantes. Prenda-o agora, general.

Então se ouve um tiro.

Um arrepio atravessa a espinha do garoto e para no mesmo lugar onde a arma estava anteriormente. O som foi alto e o ouviu logo atrás de si. Só percebe que fechou os olhos quando tem dificuldade de abri-los de volta.

E então, escuta outro tiro.

E então, mais três.

Uma movimentação de soldados é ouvida com gritos e mais tiros. Armas sendo carregadas e descarregadas. Mais tiros. A iluminação na outra tenda falhava, piscando a cada vez que mais pólvora queimava e explodia. O chão tremia para Ethan, ou poderia ser apenas sua perna falhando novamente.

O general empurra Ethan para o interior da sala, entra e fecha a porta. O som dos tiros continuam lá fora, cada vez mais próximos.

— O que está acontecendo? — Ethan pergunta, ainda com a arma do general apontada para si, mas não mais para sua cabeça. A mulher passa rapidamente para a área anterior à sua cadeira, mais próxima ao arquivos na parede.

Sua pergunta não é respondida, mas a doutora olha para o militar de maneira tenebrosa. Ethan percebe isso.

Um último tiro é dado.

As luzes param de tremular, agora com uma luz intensa focando na área da porta da tenda onde estavam. Uma sombra forte se aproxima, única e que crescia cada vez que se aproximava mais da entrada. O general puxa Ethan para si, mas agora sua pistola apontava para a silhueta gigante do outro lado da porta. O garoto conseguia ver a mira trêmula que a arma desenhava na mão do militar. O homem então grita por baixo do capacete azul que usava e dá uma série de disparos até descarregar por completo o pente de munição. O tecido amarelado da entrada repleto de buracos, atravessando a tenda e atingindo qualquer um que estivesse do outro lado.

A silhueta permanece de pé, e quando é revelada como o corpo de um soldado morto, que havia sido usado como escudo humano por uma garota alta de cabelos negros, o general entra em pânico por um momento. Tenta jogar a arma descarregada no garoto loiro que abriu a porta da tenda e que estava ao lado da garota que segurava o corpo morto do escudo.

Ethan não consegue acreditar no que vê. Eram jovens. Jovens como ele. Cerca de vinte a trinta garotos e garotas, todos armados, do outro lado da tenda. A menina de cabelo negro atira no pescoço do general com uma mira excelente e se aproxima mais, soltando o corpo que segurava e deixando-o cair no chão. O corpo do comandante cai com um baque oco que se espalha por toda a tenda. Todos entram na sala.

Quando o corpo do comandante que o segurava cai, Ethan cai junto, derrubando consigo a taça de vidro que havia deixado no chão. Dois vermelhos diferentes agora riscavam o tecido que servia como chão da tenda, um vindo da taça, outro vindo do general.

A doutora Rodriguez, que já estava afastada de Ethan no outro lado de sua sala de pesquisa, não conseguindo se equilibrar devido o salto desnecessário que usava, vai ao chão. O processo acaba derrubando alguns papéis do relatório que lia mais cedo no chão. Um deles chega bem perto dos pés do garoto, que o pega rapidamente e guarda no bolso de sua calça ainda com areia e terra úmida.

— Vocês não têm permissão de estarem aqui! — A voz da doutora sai relutante. Com o medo, as vogais desenhadas não pareciam tão belas mais. — Este é um centro de pesquisa militar da NUVEM e estamos no meio de um projeto...

A garota de cabelos negros aponta a arma na direção da mulher de jaleco.

— Cale essa maldita boca, sua idiota. — A voz focada dela chama a atenção no meio ao silêncio. Somente agora Ethan percebeu que uma lateral da cabeça da garota de cabelos negros era completamente raspada. — Que se foda você e a NUVEM, não ligo.

As pernas da doutora começam a tremer quando tenta se levantar. Sua pressão estava atacando de novo. Ela levanta um pouco a mão e saca um revólver da parte interior do jaleco branco e aponta para a garota armada.

— V-Vocês não levarão esse g-garoto daqui! — Sua fala se torna trêmula. Não estava conseguindo se controlar mais nesse ponto. Usa um dos armários como apoio para tentar se levantar. — Não conseguirão dessa vez. Reforços já estão vindo.

A garota atira no ombro esquerdo da mulher, que solta o revólver de imediato num grito de susto e medo, despencando ao chão novamente. Ethan não pensou que ela realmente atiraria. A jovem se aproxima e chuta a arma caída para longe.

O jaleco imaculado e branco como sua pele passa a ter uma mancha vermelha, que descia de seu ombro e rapidamente desenhava o tecido.

— Estava descarregada, senhora doutora. — Então se vira para os outros ali parados. A multidão de jovens nos quais variavam pouco de idade. — Dominamos outra Base!

Todos urram levantando o que tinham consigo, cada um da tropa com seu sorriso e sua arma, demonstrando poder.

— Parabéns a todos. — Foi a vez do garoto de cabelo curto e loiro tomar as rédeas. Os fios dourados etqvam escondidos pelo capuz cinza que fazia parte de sua roupa. Sua postura era tão triunfal quanto a entrada daquele grupo na Base. Suas mãos estariam livres se não segurasse algumas pastas com documentos similares aos que descansavam na mesa da doutora. A barba rasa em seu rosto tornava-o mais velho do que realmente era. Estende a mão para o garoto que estava no chão, próximo ao corpo do general. Ethan aceita a mão estendida em um movimento incerto, mas o loiro puxa-o para cima com determinação, deixando-o próximo a si. De pé, consegue observar o olhar do loiro sobre o seu, com olhos em um tom de verde que parecia cinza. Desviam o olhar. — JJ, leve o novato para a van militar que vimos lá fora. Vamos ter uma carona até a Torre.

Dito isso, o loiro joga um molho de chaves de carro para a garota que atirou na doutora e no general. Talvez tivesse atirado em outros dos corpos agora caídos na tenda.

Um garoto da dianteira do grupo o faz, puxando o pulso de Ethan para fora da tenda. Presumiu com sucesso que aquele fosse o tal JJ.

— Vamos de carona! — A garota repete as palavras do loiro enquanto levantava a chave brilhante que recebera do loiro, e todos urram novamente, saindo em velocidade para o lado externo, deixando o corpo do general lutando por ar e a doutora de jaleco vermelho caída no chão.

O lado externo já era estranho novamente para Ethan, com a escuridão tornando a maioria das luzes vindas da floresta em um tom perdido de azul. O veículo mais próximo já havia sido aberto e muitos dos suprimentos que havia visto mais cedo agora estavam na parte de trás, com alguns dos jovens, agora adolescentes, carregando caixas da Base para dentro do carro. O pequeno exército joga suas armas para dentro da van e entra, um por um. Na frente, o loiro dirige e a garota morena está ao seu lado, em um dos assentos de acompanhante.

Ethan se senta próximo a uma caixa de mantimentos da van. Tudo estava acontecendo rápido demais. Quando olha pela janela viu um brilho alaranjado de fundo, com uma coluna de fumaça que cortava o céu. Não lembrava de quando o fogo se iniciou, mas agora pelo menos dois compartimentos da tenda militar estavam em chamas.

— Oi, garoto! — O jovem que o trouxe se aproxima de Ethan. Ele estende a mão em um cumprimento amigável de saudação. A pele de tonalidade escura brilhava tão azul quanto a noite fora da van. — Sou James January, mas todos aqui me chamam de JJ.

Vendo o olhar aterrorizado que o encarava, James desiste do aperto de mãos, toca no ombro do garoto, no mesmo local onde a doutora havia tocado momentos antes, mas não tinha como saber daquilo, e diz devagar:

— Muita informação, não é? — Ele abre um sorriso e põe sua visão na estrada, soltando o ombro de Ethan no processo. O veículo agora estava em movimento. Diferentes sombras de árvores desenhavam o lado exterior da janela de vidro. O suor de sua testa era tão brilhante quanto a linha de dentes que encaravam o rapaz em choque. — Tudo será resolvido. Você está seguro agora.

"Você está com a Resistência".

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