Exuberante
Já estava tudo preparado. As horas passadas gastas na decoração e organização do lugar valeram o esforço.
Estavam na parte de trás da grande casa das senhoras. Uma tenda foi montada sobre as folhas caídas das poucas árvores dos fundos, a única parte do terreno que não possuía vinhedos. Colunas de madeira circulavam toda a área usada. Lonas finas decoravam todo o teto e o chão. Quase trezentas cadeiras de plástico sob as lonas circulavam igualmente a região central, esta um pouco mais elevada que o restante. O som do vento batendo nos galhos das árvores, e nas folhas dos vinhedos, e nas plantas que dominavam os pilares ao redor da casa vermelha já se tornaram característicos.
Os resistentes estavam dispersos nas cadeiras. Em uma das fileiras de quatro assentos mais próximas ao centro, Ariadne, Thomas, Ethan e Samantha estavam sentados, respectivamente. Mesmo com as diversas explicações, McAllen ainda não conseguia aceitar a Colheita, o deslocamento das pessoas, e existência de resistentes ao sistema, as vidas apagadas e reprogramadas, uma estrutura semelhante à uma nuvem metálica gigante flutuando sobre um conjunto de torres. Sam descobriu que gosta de tirar as suas dúvidas enquanto segurava sua mão, algo que fez desde quando se sentaram ali.
Aquele era um toque que não passava despercebido pelo rapaz.
Ethan nota os detalhes do vestido que a garota usava. Um tecido branco coberto por uma espécie de rede fina. Ao final, na altura dos joelhos, a rede se fechava, guardando diversas rosas vermelhas e azuis em seu interior. As flores emanavam uma fragrância doce, tinha que admitir, que se misturava com o cheiro natural de sua pele melânica.
— Você está bem, Thomas? — A segunda líder pergunta ao primeiro em um sussurro discreto, fazendo questão de não serem ouvidos nem pelos resistente mais próximos.
— Claro. — Ele responde devagar, sendo retirado de seus pensamentos. Thomas puxa o ar perfumado daquela tenda para seus pulmões. Não parava de pensar na cena em seu banheiro na noite anterior. Não parava de pensar na conversa que teve com Alice, e em como aquelas palavras o reconfortavam. Não parava de pensar no quanto tudo fazia sentido. Não queria que a outra soubesse que o real motivo estava bem ao seu lado. — Por que a pergunta?
— Porque está ficando pálido. — Ariadne toca o braço dele por um instante, na pele que não estava coberta pelas mangas compridas de sua blusa de botões. O garoto olhava fixamente para um ponto fixo à sua frente. — Tem certeza que está bem?
— Apenas nervoso. — Aquele era um aviso externo para prestar mais atenção. Não podia demonstrar seus sentimentos de forma alguma. — Sabe que sempre fico assim nesse tipo de evento.
Ela observa o irmão por mais alguns segundos antes de retornar o olhar para o centro. Ela sabia que ele estava mentindo. Ela sabia que Thomas era um péssimo mentiroso.
— Não. — Ela diz simplesmente, trocando o ombro onde o longo cabelo negro repousava. Sua voz e seus olhos compartilhavam da mesma seriedade. — Você nunca ficou assim antes.
Em um movimento súbito, ele apenas a encara. Os olhos dos irmãos Hope eram iguais na cor, e diferentes na tonalidade. Os de Ariadne eram mais verdes.
— Você nunca se importou assim antes. — É tudo o que o loiro diz.
Foi nesse momento que os resistentes sentados começaram a aplaudir. Na abertura do outro lado da tenda apareceram duas figuras. A luz do sol atrás de suas costas apenas permitiu que fossem vistas suas silhuetas até que avançassem alguns passos adentro.
A da direita com seu cabelo cinza em coque circular próximo à nuca, usava um vestido longo. Era completamente branco de um lado, com seu tecido de cetim reluzente naquela iluminação inclinada. O outro lado era de uma tonalidade de azul marinho muito semelhante à cor das íris de McAllen. Era a tonalidade que dava o azul das águas azuis. Seu tecido, no entanto, era de renda, com um segundo tecido, quase transparente entre o azul da parte superior e o branco de sua pele.
Já a da esquerda usava um conjunto de panos e tecidos nas cores verde e rosa, cobrindo seu corpo em laços de seus ombros até seus pés. Sentia que aquela gradação de cores valorizava seu tom escuro de pele. Também usava brincos, anéis e pulseiras, todas das mesmas cores das mantas que vestia. Em sua cabeça, um turbante composto por ambas as cores misturadas, trançadas, amalgamadas. E sorria, sendo o destaque branco em seu rosto.
Ambas seguravam buquês iguais enquanto caminhavam juntas por entre as cadeiras ali dispostas até a área central da tenda.
Era um casamento.
— Elas se casam novamente a cada Colheita. — Sam diz próximo ao ouvido de Ethan. A pele de sua nuca arrepiada. — A NUVEM presenteia a Senhora Runald com um vestido novo para o processo. Eles sabem da falta de memória do casamento, mas não de sua resistência. Como não conseguem repor memórias exatas, permitem que criem novas.
"A NUVEM não é má, é cruel". O garoto tenta evitar pensar na quantidade de pessoas que precisam fazer o mesmo, mas não podem por simplesmente não se lembrarem. Se torna um trabalho impossível. A quantidade de filhos sem pais, casas sem donos, términos de relacionamentos. Tudo planejado e arquitetado de acordo com a vontade da NUVEM.
A NUVEM estava no controle de tudo, afinal.
Ethan não conseguia imaginar a senhora que, até então, sempre vestia-se com ternos e outras roupas executivas, usando um vestido longo como aquele. Quebrava todas as ideias que tinha da Senhora Runald em sua cabeça. E ela continuava uma mulher exuberante.
Elas caminham lentamente de mãos dadas. O longo vestido branco e azul levava consigo algumas das folhas verdes do chão, mas aquilo não era um problema. As mantas unidas da mulher negra faziam o mesmo efeito. Disseram que a senhora Kjaro não gosta de roupas sociais, ou até mesmo vestidos, por estarem diretamente ligadas às décadas de terror em sua passagem como agente da NUVEM, e que suas mantas passaram a ser usadas após a morte de sua mãe, que adorava as vestimentas antigas da cultura de sua família. Apesar disso, nunca reclamou da preferência de sua esposa por aquele estilo.
Elas chegam até a parte mais elevada da área central e olham uma para a outra. Não havia ninguém responsável pela cerimônia. Simboliza a libertação delas para viver, Sam explica. Sempre usam as mesmas alianças, os únicos artefatos que a primeira Colheita não conseguiu apagar. Por apresentarem estruturas físicas semelhantes, uma pega a aliança que a outra tem no dedo e coloca no próprio, e vice versa. Criaram um acordo que não as permite jamais tirar o anel de seus dedos e ver o nome escrito.
Eram tantas cerimônias que nem mesmo a senhora Kjaro, que não tinha sua memória do casamento afetada pelas inúmeras Colheitas que foi submetida, não tinha certeza quem era o nome talhado no anel que agora usava.
Após aquele momento, a senhora de vestido se aproxima, apoia sua mão no ombro da outra e finalmente se beijam. Os resistentes se levantam para aplaudir. Sorrisos nos rostos de cada um, acima ou abaixo do altar.
Thomas, bem ao lado dos dois, passa o braço por cima dos ombros da irmã, desviando o olhar de volta para as senhoras.
Uma festa se inicia logo depois, finalizando a rotina que acontece a cada três meses. Apesar de mesas dispostas ao redor da tenda com diferentes pratos, McAllen não estava com fome. Estava com muita coisa na cabeça. Sentia-se responsável por tudo aquilo, pelo menos em parte. Não sabia o que aconteceu antes de aparecer no lago do Segmento C, mas se aquilo não tivesse acontecido, poderia ser ele no governo, já que é filho de um dos Fundadores. Ainda não sentia o peso da verdade, mas sentia uma cicatriz de responsabilidade. Uma cicatriz de culpa. Não conseguia imaginar quem era antes de tudo aquilo, apenas sabia que não queria retornar. O Ethan do passado era outra pessoa de quem é hoje.
Tomava com lentidão a taça de vinho que pegou em uma das mesas. Estava sozinho. Era uma das mais distantes da tenda de lona. Todos pareciam estar aproveitando aquele momento. O som da natureza ao seu redor parecia tentar fazer algum tipo de comunicação, mas não era capaz de entender nada.
— Ethan! — Ele ouviu seu nome ser dito por uma voz que nunca tinha sido ouvida. Era uma voz melodiosa, encantadora e misteriosa. Atributos que já pertenciam àquela senhora. — Podemos conversar, querido?
Era a Senhora Kjaro.
— Claro, senhora Kjaro. — Ele segura a taça com mais força ao tentar não gaguejar.
Eles caminham para uma área mais afastada da que estava. Não estava entendendo o que sentia. Não temia a senhora, ou pelo menos não era a intenção. Talvez fossem as possibilidades escondidas dentro do desconhecido. Ela aponta para um banco de dois lugares mais próximo à casa e puxa suas mantas para cima a fim de facilitar o movimento de seus pés.
Ela era uma mulher enigmática na visão de todos, principalmente para Ethan. Ele acreditava que a única pessoa que conhecia-a de verdade era sua esposa, a senhora Runald. Talvez fosse verdade. E gostava disso.
— Existe algo que não foi contado na última vez que nos reunimos. — A senhora inicia, acomodando-se no banco de madeira e permitindo-lhe sentar. — Algo que poucas pessoas sabem e assim deve continuar a ser.
Um segredo.
Uma morte.
— A Resistência luta diretamente contra a NUVEM, isso é fato. — Ela continua. Ambos os pares de olhos bem atentos. — Mas alguém teve que ser o primeiro a ter essa visão. A criar poder e seguidores que concordassem com a ideia. Logo após o massacre da Aldeia, poucos conseguiram sobreviver. Encontramos os irmãos Hope na faixa dos nove anos de idade, fugindo da morte, mas não tinham medo. Runald e eu sabíamos da existência da Aldeia, mas não encontramos uma forma de nos alistar já que ainda tínhamos vínculo com a NUVEM. Acontece que não foi por sorte ou destino que os gêmeos entraram em nossas vidas.
Ele pensou que ouviria algo relacionado ao poder do acaso, ou até mesmo sobre religião, mas não.
— Eles receberam ordens de alguém para aparecerem próximos ao nosso jardim depois do massacre. — Ela finaliza.
As sobrancelhas do garoto contraem. Ordens? Eram crianças perdidas. Sem famílias, sem vínculos.
— Sei que parece impossível. Eu duvidei também quando Runald me contou. — Ela continua sua explicação, puxando a atenção do garoto mais uma vez para si. — Mas era verdade. O pequeno Thomas tinha um dos comunicadores da NUVEM guardados em seu bolso. Sua explicação foi que estavam dormindo sob uma ponte em uma cidade próxima do lugar da antiga Aldeia e acordaram com aquele dispositivo vibrando próximo a eles. Pensaram que fosse uma bomba ou algum equipamento semelhante, mas era um comunicador. Na tela do visor apenas aparecia uma mensagem. "NUVEM busca sobreviventes. Corram pelas saídas não movimentadas. Existe uma casa segura. Oráculo". Logo abaixo havia uma coordenada com um mapa a ser seguido até esta casa. A nossa casa.
Ethan distancia o lábio superior do inferior, mas nenhum som é capaz de sair.
— Depois de outras mensagens que receberam daquele dispositivo, o último nome sempre se repetia. — Ela toca na pele descoberta do garoto com uma de suas mãos. Ele é capaz de sentir o frio dos anéis que usava ser transferido para seu interior. — Então imaginamos ser uma assinatura.
— Oráculo... — Ele sussurra para ela. Tentava absorver as informações o mais rápido possível.
Ela assente.
— Seja quem for, o Oráculo comanda os principais passos da Resistência em sua batalha contra a NUVEM. Tentamos manter contato com ele, mas somos ignorados na maioria das vezes. A teoria possível é que trabalhava na organização e, além de ter acesso às fichas de funcionários, ainda tinha a ideia que Runald e eu éramos resistentes. Um completo inimigo em potencial.
— O Oráculo teria então a obediência de duas agentes nas mãos. — Ethan conclui. — Qualquer passo ou ordem não feita acarretaria nas suas cabeças para a NUVEM.
— Esse foi meu pensamento na época! — Ela diz, com um sorriso no rosto. Sua voz era de um tom mais grave que o da senhora Runald, ele conseguia notar. — Mas não faria sentido tudo aquilo para nos entregar. Foi somente aí que entendi. O Oráculo também foi um dos sobreviventes do massacre. A maior diferença é que ele trabalhava para a NUVEM ao mesmo tempo. Ele é alguém infiltrado.
Foi nesse segundo que a boca de Ethan abriu pela segunda vez, em completa inércia. O Oráculo sabia de tudo, então acabou se tornando a luz guia para os novos líderes da depois formada Resistência. A queda da NUVEM estava acontecendo de dentro para fora.
A senhora Kjaro se levantou lentamente, retornando ao seu estado silencioso e lento. Despede-se do garoto estático através de um aceno de cabeça e sorriso branco.
— Mas, senhora Kjaro... — Ele se levanta rapidamente, fazendo-a olhar para trás com um olhar interrogativo. — A senhora disse que poucos devem saber dessa história, da existência do Oráculo. Por que me disse? Por que mereço saber de tudo isso? O que essa história tem a ver comigo?
Então um sorriso se forma em seu rosto mais uma vez. Foi naquele momento que percebeu algo de especial naquele garoto.
— Creio que tudo, querido! — Ela diz sem pensar duas vezes. — Foi através de uma mensagem do Oráculo, dizendo que tínhamos que salvar um garoto no lago do Segmento C, que encontramos você, o filho de um dos Fundadores.
Algo que talvez o Oráculo tivesse percebido também, de alguma forma.
A cabeça de Ethan cria centenas de perguntas enquanto ela retornava à área central da tenda.
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