Exteriores
— Ainda não entendo... — Ethan diz em um tom baixo, antes de tomar outro gole da xícara com café que recebeu.
Estavam em outra sala, mas muito semelhante com a anterior devido também possuir uma grande abertura de vidro, lugar onde Thomas estava apoiado. As senhoras, assim como Ethan, estavam dispostas em poltronas no centro da sala. Tudo começou com o monólogo da senhora Runald sobre a NUVEM, tentando explicar como são seus formatos de incentivo no governo de Delta.
— Certo, querido. Eu entendo perfeitamente que é um choque muito grande de informações. Vamos tentar de um outro jeito, meu bem. — Ela diz, finalmente. A senhora recosta o corpo na poltrona, descansando os músculos cansados. — Até esse momento, você deve ter alguma noção sobre tudo, mesmo que seja mínima. Faça uma pergunta sobre algo que tem dúvida e lhe responderei, assim a conversa fluirá. Tenho certeza que tem diversas dúvidas após sofrer uma Colheita.
Nisso ela estava certa.
— Certo... — Ele responde, hesitante. Eram tantas perguntas em sua cabeça, mas no momento não conseguia focar em nenhuma. Aquele mundo era um mistério, e ele não entendia ainda de que forma ele tinha participado. Como se fosse um corpo estranho invadindo aquele sistema. Ele olha para a marca quase transparente em seu braço. — Para começar, o que é essa Colheita?
— A Colheita é um processo realizado pela NUVEM em toda a população. — Ela inicia, retirando uma curta mecha branca do cabelo curto da testa. — Consiste em uma migração das pessoas para o Meridiano, estado central de todo o país, sendo o mais rico, é claro. Lá é onde mais se concentra o poder das instalações da NUVEM. As pessoas vão em uma semana dividida para cada Segmento, organizada em números. O nome vem do ato deles invadirem o seu cérebro e extrair todas as suas memórias relacionadas à NUVEM em seu hipocampo. Eles usam esse tipo de ação para a própria proteção.
Ele já tinha uma ideia sobre a Colheita por algumas conversas com Sam. Seus olhos buscam a garota entre as pessoas nos vinhedos além da janela quase que instantaneamente.
— Se tiver algo relacionado e que seria um perigo à organização, retiram. — Thomas conclui, cruzando os braços contra o peito. — Você sai de lá sabendo quem é, quem são seus parentes, qual seu trabalho, mas principalmente, que a NUVEM é boa.
Se você não pensa que algo é ruim, então esse algo não é ruim.
A ignorância é uma dádiva e uma maldição.
— E no que consiste a NUVEM? — O moreno indaga antes de outro gole.
— É a sigla para a Nova Unidade Voltada Exclusivamente às Memórias. — A senhora Runald responde rapidamente, como se aquele acrônimo estivesse na ponta da língua, mas dá uma pausa até conseguir continuar. — Querido, há muito tempo houve a Última Grande Guerra, que gerou o genocídio em massa de bilhões de humanos. Cinco cientistas da época criaram um projeto alfa capaz de apagar memórias isoladas, o que acabaria com a depressão mundial, um dos resultados desse conflito. O Governo Regente contatou aquelas pessoas e disponibilizou recursos para o projeto continuar. O projeto se tornou um sucesso, e a humanidade conquistou o controle de suas próprias memórias. As memórias das pessoas sobre suas perdas pessoais foram suprimidas em momentos agora felizes, a nova criação de suas famílias, a vida que estaria por vir. A substituição da dor pela esperança.
Ethan balança a cabeça lentamente em sinais positivos.
— Fundador é o título criado para cada um dos cinco cientistas que fundou o projeto. — A mulher continua. — Após dez anos do início das trocas de memórias, criou-se um problema entre eles. Quatro dos cinco Fundadores estavam deslumbrados com a ideia de tomar o poder da República, o Governo Regente. Era uma situação possível de acontecer, ao menos em teoria. E essa teoria já estava pensada e planejada fazia um tempo. Sempre houve a regra de só cumprissem um plano com o consentimento unânime entre eles, e o Fundador Charles McAllen não viu esse plano com bons olhos. Mesmo sendo a maioria, inicialmente todos consentiram que, pelo código de ética criado por eles, a ideia seria descartada e nada seria levado à público.
Ela toma um gole do chá de sua xícara antes de continuar.
— Mas o consentimento durou muito pouco. Houve uma rebelião dos outros Fundadores contra aquele, o que os fez quebrar outra regra de seu código: Jamais reprogramarem alguém da família. A reprogramação consiste em apagar todas as memórias do alvo e criar novas, gerando um novo humano. Fizeram com que o novo Fundador aceitasse a proposta dos outros e agora teriam a unanimidade esperada. Juntos, assassinaram o presidente da República, derrubaram o Governo Regente e criaram a NUVEM, o poder responsável por todo o país, criando uma era chamada de Ditadura das Memórias.
— Ethan. — Thomas chama-o, vendo que o garoto permanecia com o olhar perdido no tempo e nas palavras da senhora Runald. — Achamos que você seria reprogramado por alguém da NUVEM, mas algo não foi conforme os planos e agora está aqui, apenas com o processo da Colheita bem-sucedido.
Ele concorda novamente.
— O que não entendemos, no entanto, é que a regra da NUVEM de não apagar e reprogramar um membro da família ainda está ativa. — O loiro continua. — Então como...
— Como é possível eu ter a minha memória apagada, mesmo tendo o sobrenome de um Fundador? — Ele manifesta a pergunta de Thomas. Era a peça que não se encaixava em sua mente.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
E então, uma risada.
— A pergunta de um milhão de tris. — Ariadne quebra o silêncio formado, afirmando sua presença naquele espaço privativo. — Como é possível um dos Herdeiros dos Fundadores ter passado pela Colheita e perdido sua memória completamente? Como é possível que seu corpo foi achado no meio de um lago no Segmento C, muito longe do covil da NUVEM?
Ela anda em passos lentos na direção do rapaz sentado. Seu cabelo longo e preto movia-se de maneira uniforme, de maneira hipnotizante. A irmã Hope para bem na frente de Ethan, sem nenhum sorriso em seu rosto.
— O que você, Ethan McAllen, poderia ter feito, que a NUVEM achou melhor reprogramar por completo, e não ter passado por uma simples Colheita como eles fazem com a população inteira? — Ele consegue perceber o tom crítico da segunda líder da Resistência. — A NUVEM achou melhor apagar para sempre a sua personalidade anterior e descartar as provas, do que lhe dar uma segunda chance. O que você poderia ter feito capaz de assustar tanto eles?
Silêncio.
Mas durou pouco.
— Ariadne, nós já conversamos sobre isso. — Thomas responde sua irmã no mesmo tom ríspido de suas palavras contra o jovem sentado na poltrona. — Ethan é quem diz que é e isso não está mais em questão. O nosso trabalho agora é a partir dessa informação.
Ariadne fita os olhos do irmão, que possuem um tom de verde mais acinzentado que o seu, e o encara com ódio. Para ela, ele parecia já não lembrar do motivo de estarem ali. Para ele, ela parecia já não lembrar do motivo de estarem ali. Ambas as razões estão corretas, mas bem distintas uma da outra.
Ela sai pela porta daquela reunião sem falar mais nada, deixando os demais em seu silêncio.
E o silêncio mais uma vez é quebrado quando batidas no vidro da janela chamam a atenção do primeiro líder. Era Samantha Wit, que usava um vestido curto e florido. Em sua cabeça, um chapéu bege que quase esconde seus cachos negros. Ela sorria, e seu sorriso era lindo. Essa era a primeira vez que Ethan via Sam desde o momento que tiveram na sala de abastecimento hídrico. Sam toca no vidro mais uma vez, fazendo um sinal para que Thomas a acompanhasse. Ele faz um sinal de cabeça para as senhoras e o garoto dentro da sala, depois sai pela porta, deixando-os à sós.
— Meu bem... — A senhora Runald continua, fazendo-o olhar em seus olhos. — Os Fundadores continuam seu poder através das gerações de seus Herdeiros. É muito importante para todo o sistema que os filhos fiquem em segurança, uma vez que existe a tradição da perpetuação do sexo da criança ter que ser compatível com o sexo do Fundador. Se o sobrenome do Fundador vier de uma linhagem de homens desde os primeiros, o Herdeiro é o primeiro filho homem. Se for de uma linhagem de mulheres, o Herdeiro será a primeira filha mulher. Você é o vigésimo nono Herdeiro de Charles McAllen.
Ethan arregala os olhos. Vinte e nove gerações da NUVEM no poder. Vinte e nove gerações em que sua família se manteve no topo da cadeia alimentar de Delta. Os predadores de todo o reino. O mesmo sangue daqueles que derrubaram sangue para estarem onde estão. Que criaram mentiras e obrigaram uma população inteira a engolir aquela realidade deturpada. Que traíram, que destruíram, que o caçavam.
Mas nenhum pensamento veio com um sorriso.
Ao menos, esse foi o grupo que pertenceu o Ethan McAllen antes da Colheita. Ele era o Ethan McAllen após o lago do Segmento C, a versão do Ethan que não fazia ideia de nada que estava acontecendo. Ele era a versão que não estava no topo da cadeia alimentar, junto aos demais membros da sociedade criada pela NUVEM. Na verdade, ele nem pertencia à essa cadeia. Ele não pertencia a lugar algum, e, se não fosse diversos fatores, ele não pertenceria nem mesmo ao mundo dos vivos.
Ele não era aquele Ethan McAllen, filho de Fundador. Ele era qualquer um, porque realmente poderia ser qualquer um, filho de qualquer um. O seu passado não conseguia lhe definir, uma vez que seu passado não fazia mais parte de si. Ele não conhecia aquela pessoa e, apesar de compartilharem o mesmo nome e a mesma aparência, poderiam ser completamente diferentes.
Ele pensou nas palavras de Ariadne. Ele não sabia o motivo de estar ali. Haviam milhões de possibilidades do motivo de sua existência, e apenas uma delas é que realmente era a reencarnação de Ethan McAllen, que renasceu logo após sua versão antiga ser apagada por um programa de computador. Ele pensou na possibilidade de estar ocupando o espaço daquele Ethan na Terra. E se realmente estava, qual era o seu espaço? Se ele era uma farsa, quem poderia reivindicar seu lugar?
Por um momento, imaginou que sua cor favorita talvez fosse diferente da de Ethan McAllen.
— Senhora Runald... — Ele diz em um tom mais baixo, retornando com suas perguntas.
Ela puxa um sorriso.
— Sim, meu bem?
Mas nada saiu da boca de Ethan. Poderia sentir sua cabeça acompanhar a rotação da Terra. Se sentia tonto, cansado, exausto pelas informações da conversa. Tinha tanto mais a perguntar, mas não conseguia dizer mais nada. Ele fecha os olhos por um momento, que se transformam em dois momentos. Então, três.
Quando os abre, encontra o rosto da senhora Kjaro bem próximo ao seu. Suas joias em seu pescoço e orelhas reluziam com cores vermelhas e amarelas. Em suas mãos, sua xícara de café tinha sido substituída por outra de chá. Conseguia ver algumas folhas verdes boiarem para a superfície de porcelana. Ethan conseguiu sentir a palma da mão da senhora em sua testa, depois em seu pescoço. Ela sorri e volta a se levantar. Quando se afasta, consegue ver que Thomas estava de volta na sala, agora com uma blusa xadrez vermelha, branca e preta, de mangas compridas dobradas na altura de seus cotovelos. Quando seus olhos se encontram, consegue ver a preocupação nos olhos do primeiro líder.
— Se sente melhor, Ethan, querido? — A senhora Runald pergunta, ao se aproximar um pouco de sua esposa no centro da sala.
Ele apenas assente.
Sua pressão havia despencado.
— Perdão, senhoras, mas acho que devemos continuar nossa conversa em outro momento. — É tudo o que o loiro diz, antes de oferecer uma mão para Ethan, que ainda estava sentado na cadeira, apesar de ter passado mal. Ele aceita e logo é posto de pé, ao lado de Thomas.
Ethan tenta se desculpar também, mas nenhum pedido de perdão consegue sair de sua boca. Uma dor aguda passa por todas as partes de seu cérebro ao invés disso.
— Certo, meu bem. Acho que já tivemos o suficiente por hora. — Ela então se aproxima de Ethan e abraça-o novamente. — Foi um prazer lhe conhecer, meu bem. Estaremos aqui por você.
Thomas o acompanha até a porta, retornando ao corredor repleto de quadros gigantes. Eles seguem em passos iguais até uma porta no final daquele corredor. Para a sua surpresa, a porta abria para os exteriores da casa. Os raios de sol abraçam seu rosto.
— Me acompanharia em uma caminhada no vinhedo? — O loiro pergunta, roubando-lhe os pensamentos. — Dizem que ajuda a pensar.
Recebe um sorriso como resposta, enquanto caminham cada vez mais por entre a enorme plantação. Os passos na terra fofa que cortava o terreno eram lentos. Os olhos admiravam cada vez mais a beleza daquela safra. Seus pensamentos parecem ocupar lugares diferentes em sua cabeça agora que tinha mais acesso a oxigênio. E o ar tinha cheiro de uvas roxas.
Uvas gordas, frias e roxas.
— Quer dizer que a senhora Kjaro pintou todos aqueles quadros nas paredes da casa? — Ethan pergunta curioso, mesmo sabendo da resposta. — São tão lindos!
— Sim! — Thomas responde com empolgação. — Aquela mulher é arte. Não se preocupe, ela gostou de você. Ela só gosta de apreciar as pessoas em silêncio.
A terra no chão estava fofa, então conclui que houve chuva há pouco tempo. Talvez a mesma chuva na noite fria na Torre da Resistência tivesse chegado na casa das senhoras. O cheiro daquele lugar variava entre plantas molhadas, açúcar e ar puro. O vento que tocava sua pele era gelado, fazendo-o arrepiar algumas vezes. O garoto passa sua mão por entre as formosas uvas roxas do vinhedo enquanto caminha, fazendo-as balançar lentamente.
— Prove uma. — O loiro pede quando percebe a ação, apontando para um cacho pesado próximo a eles. — Juro que não vai se arrepender.
Ethan então puxa uma das últimas uvas do cacho, levando-a à boca logo em seguida. O suco da fruta toca sua língua com um sabor doce e gelado. Seguem o caminho de terra enquanto o sabor doce desce pela sua garganta.
— Todas as temporadas trago o máximo de resistentes que posso para ajudá-las na colheita dessas belezas. — Thomas continua, puxando mais duas uvas na caminhada e entregando uma para o garoto ao seu lado. — É o mínimo que posso fazer para retribuir tudo o que fizeram por mim.
Ethan então percebe um resistente, que aparentava possuir seus 12 anos de idade, passar correndo no fim daquela linha de plantações. Também é seguido por outros da mesma idade, que logo o acompanham em alta velocidade por baixo das hastes de madeira dos vinhedos. Uma delas cai, fazendo todos rirem antes de ajudá-la.
— Essas crianças vêm aqui para correr entre os vinhedos e esquecer o que acontece lá fora. — O primeiro líder diz num tom baixo, como se fosse um segredo entre os dois. — É um sentimento bom estar em casa.
Apesar daquela não ser sua casa, nem ao menos ter visitado aquele lugar antes, Ethan também se sentia em casa. Thomas o observa por alguns segundos antes de retomar o resto da caminhada em direção à casa vermelha tendo seu braço nas costas de Ethan com sua mão apoiada em seu ombro.
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