Existência das Estrelas
Já era noite. A rotina da Torre da Resistência mantinha o mesmo padrão da noite anterior, a noite em que foi resgatado. As luzes dos cômodos eram tímidas, mas ainda existentes, o que as diferenciavam da iluminação externa, que não poderia dar sinal de vida. A Torre era alta, as escadas contavam com alguns andares antes de se mostrarem presentes na estrutura interna, mas mesmo com a segurança da altura, os resistentes se mostravam silenciosos. Toda aquela área do Segmento B estava abandonada para a NUVEM, então deveria se comportar como tal.
Existia uma guarda noturna, em que os resistentes responsáveis passavam por turnos para a proteção do perímetro da Torre. Os prédios daquela cidade fantasma tinham olhos vivos. As escalas eram organizadas por duplas, que vigiavam uma rua, uma avenida, uma viela, uma trilha, todas designadas previamente. A qualquer sinal de anormalidade, por menor que fosse, tinham o dever de reportar por meio de um rádio próprio, intercomunicadores portáteis, para algum membro dentro da Torre. A ordem era comunicação máxima e clara, que chegaria aos irmãos Hope a qualquer momento da noite.
O tempo estava úmido e fazia frio do lado de fora da janela, mas Ethan não conseguia sentir. Estava no andar de treinamento, completamente inabitado, acompanhado apenas de sua mente turbulenta. Somente uma lâmpada era responsável pela iluminação do lugar inteiro, e estava posicionada no teto, logo acima de sua cabeça. Uma luz que o abençoava, ao mesmo tempo que o amaldiçoava, deixando o ambiente inabitado irracionalmente inóspito. Sua sombra formava uma poça escura e móvel abaixo de si.
Em alguns momentos, imaginou se aquela poça fosse o engolir eventualmente.
Um saco de areia estava posicionado no alto do octógono. Ethan reproduzia os movimentos ensinados mais cedo por Thomas, atingindo o alvo com força e precisão. Estava concentrado, tendo como foco de sua visão periférica o tecido grosso do alvo. Não enxergava mais nada, e parte disso era culpa das gotas de suor que não paravam de descer do seu couro cabeludo, nem sempre sendo evitadas pelas grossas sobrancelhas que possuía.
Cada soco distribuído transformava-se em um estrondo que dominava o ambiente silencioso. Sentia uma pontada na parte posterior da cabeça, mas não tinha certeza exatamente do que significava. Poderia ser exaustão, depois de um dia intenso de treinamentos. Poderia ser algum resquício das suas memórias tentando se comunicar com ele, e queria acreditar que fosse. A sua verdadeira personalidade sentindo falta do agora corpo vazio. Claro que haviam perguntas em sua mente, mas tentava afastá-las, ao menos por enquanto.
Soca mais forte o tecido vermelho à sua frente. O estrondo foi diferente dos demais.
Depois que brincou com Alice e Thomas, Ethan deixou o quarto a pedido do mais velho, que disse que a faria dormir. Depois que saiu do quarto, procurou Samantha por todos os lugares, mas não a encontrou. Ouviu alguém dizer que alguns resistentes foram levar alimentos para os vigias do horário noturno e imaginou se ela estaria lá, então retornou à zona de tiros para treinar um pouco mais.
Algumas horas depois houve o jantar e Ariadne se pronunciou, a pedido de Thomas que não estava lá, anunciando que no dia seguinte aconteceria uma "missão nos vinhedos", e houve uma comemoração geral. Ethan procurou Samantha com os olhos pelo andar de entrada durante o jantar, mas não a encontrou mais uma vez.
Agora estava ali, acompanhado de si mesmo, enquanto todos dormiam.
— Fingindo se enturmar, McAllen? — A voz se tornou absoluta no andar de treinamento, cortando o som do último soco e levando a atenção do garoto treinando para o alto da escada atrás de si. Era uma silhueta conhecida, esguia e pesada. A voz estridente se mostrava inflada, assim como o ego do seu mediador. — Tenho que admitir, é muita força de vontade estar aqui treinando sozinho, esperando que alguém apareça apenas para lhe elogiar por estar se adaptando à Resistência de forma exemplar. Esse personagem que criou é muito bom, mas acredite, vai precisar de bem mais que horas de treinamento para fazer comigo o que você fez com os outros.
Victor Martes.
Agora estava ali, acompanhado de Victor Martes, enquanto a maioria dormia.
Ethan ignora a provocação e retoma o foco ao objeto de couro vermelho à sua frente.
Percebendo que sua fala foi em vão, o ruivo dá passos rápidos até a beirada do octógono acolchoado. Para a surpresa do garoto, o outro se inclina e passa pelas linhas elásticas de segurança, pousando lentamente logo a frente de Ethan.
— Se você ainda está vivo no segundo dia aqui, significa que conseguiu enganar os idiotas dos irmãos Hope, parabéns! São poucos que conseguem esse feito. — Ele anda mais para a frente, invadindo o espaço pessoal de Ethan aos poucos. — Apenas me ajudou a dar um passo importante para a queda deles e o início da minha liderança na Resistência. Só falta um detalhe...
Então o ruivo agarra o braço do garoto, puxando-o para si. Ethan é pego de surpresa e é arremessado pela perna de Victor para o outro lado do octógono, caindo sem amparo no chão. Sente uma pontada de dor em sua coluna. Mas não acaba por aí. Logo sente um aperto por cima de seu corpo e vê o outro garoto sobre ele, empurrando seus braços contra o chão, tentando deixá-lo imóvel. Ethan tenta atacá-lo com as pernas, mas ele está distante demais. A sensação de imobilidade o faz lembrar de quando foi carregado sem forças pelos soldados da NUVEM após ser perseguido na floresta, o que o preenche de ódio e determinação. No momento em que Victor abaixa a guarda para rir dos esforços do rapaz ao chão, Ethan transfere um golpe com o cotovelo, atingindo o rosto do ruivo na diagonal e o jogando longe de si. Se liberta e finalmente se põe de pé mais uma vez, recuperando os sentidos e a posição de combate.
—Saia daqui, Victor. — Ethan anuncia entre dentes. Estava com a mandíbula flexionada e não tinha percebido, como se estivesse tentando desesperadamente manter o controle. Seus punhos estavam fechados e sua voz saiu como um rosnado. — Me deixe só. Volte para os seus sonhos de revolução e me deixe só.
O garoto ruivo se apoia nos joelhos e toca a própria face com a mão. Então ri alto. Solta uma gargalhada pesada e venenosa. Se inclina para a frente e se levanta sozinho, ainda com a mão no rosto, virando-se para encarar o garoto em guarda. Encara-o dos pés à cabeça, examinando-o profundamente como se fosse uma pintura de outro mundo, incompreensível de ler.
Dá alguns passos lentos e firmes em sua direção. A musculatura de Ethan enrijece.
— Não pense que pode chegar e mudar as coisas, McAllen... — É o que diz. — Eu tenho mais tempo de memória que você.
Ele dá a entender que vai se aproximar mais uma vez, mas seu movimento para com a presença de uma terceira voz.
— E eu mais tempo que você. — Thomas Hope aparece do outro lado da sala, no alto da escada. Sua voz logo se torna dominante enquanto se aproxima da área de treinos. Os dois garotos iluminados pela única lâmpada no topo param seus movimentos. — Deixe-o em paz, Martes.
Victor fita o primeiro líder com ódio e surpresa no olhar, mas se distancia do garoto, mesmo contra sua vontade.
— Não pense que isso já acabou, McAllen. — Ele diz, retomando o olhar preso no garoto. Seus olhos tinham uma cor de castanho mais clara. — Eu sei o tipo de pessoa que você é. Pode ter enganado a todos, mas não me enganou.
Ele se vira e anda até o limite do octógono, pulando o elástico e pousando no chão. Dá passos pesados e sonoros e, quando se aproxima de Thomas, curva sua fronte em quase 90°, mantendo o contato visual e desviando seus corpos, seguindo até o primeiro degrau da escada.
— Está satisfeito agora, garoto? Está feliz em trazer o caos para nós? — É tudo o que diz antes de desaparecer na escuridão da escada abaixo.
Os dois restantes no andar de treinamento o seguem com o olhar, e Ethan soca o saco de areia com tudo, descarregando a raiva imediatamente em uma forma de válvula de escape. Então ele bufa e deixa a cabeça cair a ponto da testa descansar sobre o tecido do artefato de treino, sucubindo ao estresse. Thomas se aproxima lentamente dele, subindo o octógono também. Perto o suficiente para Ethan, que estava apoiado no alvo, tendo seu peso sustentado e olhando para baixo, conseguir ver os pés descalços de Thomas ao seu lado. Ele apoia sua mão em seu ombro.
— Eu sinto muito ter trazido isso comigo. — Ethan fala em um tom muito baixo, como um sussurro ou um pensamento que escapou por seus lábios. Não tinha certeza. — Eu não queria que isso acontecesse. Que nada disso acontecesse.
— Não se desculpe por algo que não tem culpa, Ethan. — Thomas diz com um tom confiante, o que dá a certeza para Ethan que suas palavras não tinham sido apenas um pensamento. — Nem mesmo você sabe se tem alguma influência sobre os eventos recentes. É tudo novo para todos nós.
Ethan apenas sussurrou algumas palavras inaudíveis e suspirou, voltando a distribuir golpes. O primeiro líder se afasta um pouco, apenas para dar espaço o suficiente para o outro continuar seu treinamento.
— Bata mais alto. — Thomas diz, tentando mudar um pouco o assunto claramente desconfortável para o outro. — Tente focar onde seria o pescoço do adversário.
— Não duvido que tenha sido com ele quem falou antes de fazer aquele teste comigo na zona de tiros. — Ethan parou e o olhou nos olhos. Thomas retribuiu o olhar com surpresa. — Digo de Victor Martes. Estou certo?
O loiro assentiu.
— Estava em reunião com Ariadne. — Ele responde, finalizando o contato visual. — Martes entrou de repente na sala, disse a teoria que estava em sua cabeça a agi por impulso. O medo de estar errado quanto ao meu julgamento acabou sendo mais forte do que eu. E, aliás, me desculpe por aquilo.
— Você estava apenas sendo o líder. — Ethan respondeu, fazendo-o olhar nos seus olhos novamente. — Só estava protegendo sua família.
Thomas pareceu receber um tiro no peito. O choque de realidades apareceu. Sim, estava tentando proteger seu grupo, sua família, mas Ethan também fazia parte, pelo menos agora. Ele vai até um dos entornos do octógono e senta-se, esticando as pernas e apoiando as costas no elástico.
— Me senti um pouco errado depois daquilo. — Ele fala em um tom calmo, mas não baixo ou melancólico. — Desde o começo confiei em você e estive certo. Você se tornou da família também. Eu tentei proteger a família tentando machucá-la. Talvez a forma que tentei agir naquele momento tenha sido mais agressiva do que o necessário.
Um sorriso fino se instalou no canto da boca de Ethan, mas retomou a atenção para os socos.
Thomas usava apenas uma camiseta regata fina, deixando os músculos de seus braços desprotegidos, e uma calça de moletom cinza, confortável e folgada. Seu olhar estava preso, Ethan podia perceber no canto de olho, nos seus movimentos de ataque.
— Ethan. — E a voz do primeiro líder era confiante, atravessando o octógono inteiro e atingindo o rapaz nas costas. — Sobre o que aconteceu hoje no quarto mais cedo...
Foi inevitável. Assim que as memórias do acontecimento recente foram projetadas em sua cabeça, aquela palavra voltou a dominar seus pensamentos.
Morte. Morte. Morte. Morte. Morte.
O olhar pesado de Thomas contra o seu. As engrenagens não funcionando. O desespero de matar aquele silêncio desconfortável enquanto Alice aguardava uma resposta do primeiro líder. Toda aquela situação, tudo de novo.
Ensinou uma garotinha, livre de qualquer pecado, o que era a morte.
— Eu sei... — Ethan disse, ainda preso aos seus próprios pensamentos. — Eu não devia estar vendo vocês ali, aquela invasão de privacidade foi completamente culpa minha e juro que não vai...
— Obrigado pelo que você fez com a Alice hoje mais cedo. — Thomas o cortou, como se não tivesse ouvido. Talvez não tenha mesmo, a julgar pelos seus olhos pensativos e distantes. — Acho que eu nunca conseguiria ter feito aquilo. É um pensamento triste, mas essencial. E foi lindo. Uma criança enxergar a morte como algo natural, o que é, como a existência das estrelas. Não consegui parar de pensar naquilo desde então. Eu esperava que estivesse treinando aqui e subi para agradecer pessoalmente.
Ethan parou de socar. Sentia-se exausto. Uma corrente de ar fria da janela toca suas costas e o faz arrepiar, mesmo com o corpo quente. Depois disso, ele olhou fixamente para os olhos do primeiro líder.
Abriu a boca por alguns instantes e, mas a fechou logo em seguida. Não sabia o que falar. Talvez nada fosse necessário ser dito.
Thomas se levantou e fez menção que fosse se aproximar, mas recuou, deixando suas mãos pousarem lentamente atrás das costas, agarrando o elástico do octógono. Manteve o olhar de Ethan por alguns segundos antes de desviá-lo. Bateu uma palma, como se tentasse retomar as rédeas.
— Bom. — Ele começou. — Melhor ir dormir. Vamos sair amanhã. Quero que conheça alguém. Deve ter ouvido o anúncio da minha irmã mais cedo.
Ethan assentiu.
— Algo sobre vinhedos, eu ouvi. — Ethan se afastou um pouco do saco de treinamento. — Tem razão, está na hora de ir.
McAllen anda até a borda, mas não salta, como Victor fez. Em vez disso, deixa seu corpo cair e sai seguramente do octógono. Seus passos são firmes e diretos, indo em direção à escada. Antes de descer, ele se vira para encontrar o olhar do primeiro líder, que o já o encarava, ainda próximo ao octógono no centro da sala de treinamentos.
— Boa noite, Thomas. — É o que diz. Ele espera uma resposta, mas consegue um aceno de cabeça. Acena também e afunda em direção à escuridão, deixando o outro rapaz só.
A luz da única lâmpada acesa faz os fios loiros de Thomas criarem mais força de presença. Reluziam como se fosse ouro puro. Brilhavam como se fosse uma estrela. Ele sorri pela última vez naquela noite.
— Boa noite, Ethan. — É tudo o que diz enquanto sua visão sai das escadas e volta para a outra única coisa, além de si mesmo, ainda iluminada pela lâmpada no teto daquela sala.
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