IX. Morda-me se for capaz


Que cerveja pesada, pelo Deus Afogado!

Talvez fosse a minha falta de costume, após passar os últimos anos afogando as mágoas naquele vinho maldito dos Greyhood ou simplesmente o fato de que já estava passando da décima caneca quando me dei conta, mas a verdade era que fazia muito desde que a minha cabeça girou daquela forma.

Levantando do banco improvisado em um velho barril, cambaleei pelo chão de terra batida, passando pelas piadinhas dos batedores como se não as escutasse, até, finalmente, encontrar meu destino.

Não, não esqueci do que o dragão disse. Para ser bem sincera, aquelas palavras, o convite e, principalmente, a sensação de seu polegar frio em meus lábios, ficaram marcadas no cérebro feito uma pegada funda, agitando para longe qualquer resquício de bandeira de paz.

Sua cabana era simples, como a minha, excluindo a enorme maça apoiada na lateral da entrada. Trazia duas canecas vazias na destra e um jarro de cerveja na canhota, por isso, puxar o tecido com o pé e entrar sem aviso foi o mais cortês que consegui ser.

— Estou entrando. — Ao menos avisei.

Ainda não o tinha em meu campo de visão, mas pude visualizar perfeitamente na cabeça seu sorriso de escárnio acompanhando as palavras: "eu sei".

— Você tem a leveza de uma montanha, afinal.

Se arrependimento fosse palpável, o meu estaria pesando nos ombros. Gaerion deixava claro que não era confiável, o que me fazia sentir ainda mais vontade de estar perto dele. Gostava que as pessoas mostrassem sua verdadeira natureza, mais ainda que elas não tivessem vergonhas de seus cacos e farpas. Não fosse tanto um réptil, o loiro até que serviria de pirata. — Vejo que trouxe um presente. — Sua voz me trouxe de volta à realidade, mas era tarde demais.

Quando dei por mim, já o tinha tão próximo que seu hálito quente acariciava meu rosto perigosamente, enquanto, hábil feito um ladrão e tão ágil quanto, ele retirava as peças que eu segurava e as apoiava em um caixote próximo.

O coração parou. Por mais que já tivesse tido contato com homens antes e não fosse uma tola sobre suas táticas, de Navhir a Elliot, eu nunca tinha conhecido alguém de Fortaleza do Dragão.

Eles eram exclusos e agora entendia porquê. De todas as pessoas, dentre toda a Nação, nunca alguém pareceu para mim tão distinto quanto Gaerion e seus cabelos de prata líquida somados àqueles olhos de ametista opaca e sem fim.

E mesmo que seus ombros largos dessem a entender o porte de guerreiro que ele era, a constituição esguia de seu corpo também indicava uma versatilidade inapta aos homens do norte.

Sentei-me sobre a cama de palha improvisada, idêntica àquela que eu tinha na minha tenda e observei, quase que academicamente, enquanto o homem servia as canecas de cerveja.

— Você está me encarando. — Apontou, em tom divertido, mas ao mesmo tempo, repreensor.

Murmurei um "desculpe" em resposta, desviando o olhar apenas por um segundo, o bastante para ele não me ver corar.

Quando a caneca voltou à minha mão, relaxei ao primeiro gole.

— Você foi bem... Na caverna. — Era visivelmente difícil para ele fazer um elogio sincero.

— Você também... — De maneira quase instantânea, os orbes escuros baixaram até o peito enfaixado, cujo alabastro sólido de sua pele jazia maculado apenas por uma manchinha de sangue seco nas ataduras. — Como está isso aí?

— Você se preocupa demais. — Desviou. Gaerion era bom nisso. — Deveria estar realmente atenta a si própria. Todos estão se perguntando quem é você.

— Não há muito o que dizer... — Com o álcool só aumentando no sangue, a manha também crescia em ondulações perigosas que me faziam deitar no lençol e me esparramar por ele. — Casamento forçado, família difícil, a velha história onde fugir se torna a escolha mais racional para se manter são.

Era difícil ler as expressões dele.

Ao mesmo tempo em que parecia me escutar atentamente, seus olhos baixavam sem disfarçar para a curva de meu colo, os pequenos montes que meus seios formavam ao serem pressionados pelo tecido do vestido naquela posição. Não saberia distinguir Gaerion de um predador, pois ele se comportava exatamente como um.

— Disso eu entendo. — Assumiu, ainda que em tom de tédio, antes de virar a cerveja na garganta em um só gole e se servir um pouco mais. — Mas, achei que as mulheres da corte florestal eram mais... Domesticadas.

Ele sabia o que estava fazendo e cutucava, propositalmente, minhas feridas mais putrefadas. Levantei em um salto um tanto tonto, escorando a lateral do corpo na parede em uma pose relaxada, ou pelo menos assim pensei estar. — Não essa aqui.

Seu riso debochado cortou qualquer esperança que eu tinha de estar destruindo sua autoconfiança.

Como da primeira vez, sua mão enorme chegou ao meu rosto, delicadamente a princípio, mas logo o toque se tornava mais dominante, feroz até. O polegar puxou meu lábio inferior para baixo um pouco, trazendo a consciência de que seu quadril pressionava o meu com força.

— O que foi, dragão? — Sim, eu não tinha a menor noção de quando parar. — Vai soltar fogo em mim?

Nossos olhos pararam um no outro por um longo instante em silêncio. Conseguia ler cada linha de desejo nos orbes dele, como se fossem frases escritas em brasa.

Sem responder de imediato, seus lábios desceram pelo meu pescoço, chegando aos ossos da clavícula marcada, onde pararam. Mesmo sem ver, imaginava suas narinas abrindo violentamente ao escutar a maneira como Gaerion tragou meu cheiro para dentro de seus pulmões.

Não fosse humano, teria certeza de que estava diante de uma fera pronta para me devorar.

E eu derretia em seus dedos que agora fechavam em volta da minha garganta. Ele tornava a ficar ereto diante de mim, tão alto quanto uma árvore, o que, naquela situação, pela primeira vez, me deixou vulnerável.

Ao se aproximar do meu rosto, com o nariz roçando ao meu, havia um sorriso zombeteiro na face do homem. — Se você me morder... — Sussurrou. — Eu te mato.

Desafio aceito.

Sem que ele esperasse, estiquei o pescoço da maneira que podia, trazendo o rosto para perto e mordisquei de leve, puxando um pouco, seu lábio, apenas para provocar. — Nem assim?

Um rosnado baixo ecoou do peito do dragão. Não podia vê-las, mas sentia a fumaça escapar de suas narinas. Eles realmente tinham o sangue da criatura que lhes dava o nome, agora todas as lendas pareciam vivas para mim.

Quando sua boca chegou à minha, dura e impiedosa como um algoz faria a seu prisioneiro, meus joelhos tremeram e falharam, deixando que o corpo dele sustentasse todo o peso do meu contra uma pilha de caixas de madeira.

Durou tempo o suficiente para conhecer o gosto e a textura daquela língua macia e longa, brincalhona, tão diferente de seu dono. Tão logo gemi em resposta ao beijo, perfeitamente entregue como jamais estive, ele se afastou, triunfante.

— Assim você pode.

Esperei uma nova investida, mas ela não veio.

No instante em que Gaerion agarrou com força minha cintura e eu sabia que nunca mais saberia o significado da palavra "virtude" depois dali... O som de passos do lado de fora chamou nossa atenção.

Uma voz feminina ecoou, tímida e receosa.

— Lorde Gaerion, poderíamos conversar? O senhor está aí? — A dança de meus orbes de abismo era clara: da entrada da tenda a ele e de novo, e de volta.

Bufando, o dragão me empurrou contra a cama e, sem dizer uma palavra, saiu pela abertura. Tudo o que consegui ver foi um vislumbre de um vestido azul escuro e cabelos castanhos que corriam feito rios de chocolate nas costas de uma bela donzela.

Merda.

Quem ele pensava que eu era?

Essa era a droga de se parecer com uma mulher comum: quanto mais bonita você fosse, era só estar de vestido e não importava se você podia estripá-los com uma navalha cega, ainda te tratariam feito uma puta.

Amrella Greyhood precisava morrer e dar espaço para que a Capitã Amrella Snay finalmente respirasse depois de mais de dois anos encarcerada.

Sóbria eu já não dava a mínima, bêbada então... Só tinha uma escolha plausível: falar com a Rainha.

E fui, sem pensar duas vezes. Irrompi feito um raio da tenda, atravessando meio cambaleante o acampamento até a maior de todas elas. 

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top