III. Veados são bons quando estão... assados!


Não sei por quanto tempo permaneci adormecida, mas deve ter sido muito. Quando abri os olhos, já não chovia mais e o céu havia ganhado um tom alaranjado por cima da copa das árvores que, agora, eram mais escassas. Meu pai tinha aberto a janela novamente e, por ela, uma brisa que misturava pinheiros e eucalipto dançava sob nossos narizes.

As cabanas de lenhadores e caçadores apareciam por todo lado com um espaço de pouco mais de cinco metros uma da outra. Também havia herbalistas e curandeiros pela estrada, recolhendo a matéria-prima para seu trabalho. Tudo parecia tão diferente da Ilha...

Roncando, meu estômago reclamava de fome, afinal, já eram longas horas sem comer. O mesmo servente franzino entregou pela janela, do alto do coche, uma cesta com pães, algo que devia ser vinho e tiras de algo que cheirava bem, mas sua aparência era horrível.

- Carne de veado ressecada, ótima para levar em viagens longas. - Comentou o Rei. Aquilo era carne? Parecia mais um pedaço de couro e, ao morder, sua textura elástica me fez querer vomitar, porém, era extremamente salgado, justamente o que precisava para levantar o ânimo.

Sidgard me serviu a bebida em um cálice de madeira bem talhado, totalmente diferente das nossas canecas de concha do mar. Ao chegar aos lábios, tinha um gosto doce, acentuado por seu cheiro forte. Era vinho, com certeza, mas não eram uvas.

- Vinho das nossas amoras negras. Não há nada melhor em Bosque Esmeralda.

Certo. Aquela frase realmente era preocupante.

Não que fosse ruim, só... Suave demais.

O restante da viagem seguiu em completo silêncio na maior parte do tempo, porém quanto mais adentro dos vilarejos entrávamos, mais pessoas juntavam nas laterais e saltavam para olhar dentro da carruagem enquanto ela passava.

- Parece que eles estão ansiosos para te ver, Majestade. - Não podia perder a oportunidade de alfinetar meu pai, já que estávamos presos um ao outro.

- Eles não estão assim por mim, Amrella... - Mesmo em tom sério, um pequeno sorriso se formava no canto dos lábios do Rei enquanto ele acenava gentilmente para o povo lá fora.

Arqueando levemente a sobrancelha esperei que ele explicasse e, quando esta não veio, resolvi eu mesma questionar o motivo daquilo.

- Todos em Bosque Esmeralda estão curiosos sobre a princesa que foi criada entre piratas.

- Ótimo! - Lançando os braços para o ar, tentei me colocar de pé, mas o balanço da carruagem fez com que minha bunda caísse com força no assento de novo. - Agora sou um maldito animal exótico na jaula.

- Todas as meninas da floresta iriam querer estar nessa jaula no seu lugar.

- Então, porque você não dá esse presente a elas?

Quando achei que finalmente conseguiria irritar o Príncipe do Trono de Carvalho, ao invés de uma carranca emburrada, ele me presenteou com um belo sorriso de divertimento.

- Você não se olha no espelho muitas vezes, não é, Amrella? - Por não entender a relação da pergunta com o assunto anterior, optei pelo silêncio. Infelizmente, ele não seguiu meu direcionamento e continuou. - Sua prima Rosaline é a única mulher nascida no Trono de Carvalho em gerações e nem mesmo ela que tem a fama de ser a jovem mais bonita do povo da floresta consegue se igualar ao que vejo diante de mim agora.

Porque ele falava tão difícil? Custava ser um pouco mais direto? Aquilo tinha sido um elogio à minha beleza? Porque, se fosse o caso, ele estava bem enganado. Em Império de Sal, sempre fui a aberração da ilha, a única garota diferente do povo do mar, sempre se destacando pelos cabelos negros e os olhos escuros.

- Vai aprender a se ver diferente, criança.

Duvidava veemente disso. Mas, não adiantava discutir com alguém que não ia me ouvir. Optei por seguir viagem sem mais debates inúteis e assim permaneci até o som das trombetas ser maior do que a minha capacidade auditiva.

Enfiando seu pescoço magro pela janela, o servente de antes anunciou que estávamos atravessando os portões do castelo e que em alguns instantes já poderíamos descer.

A carruagem foi perdendo velocidade e trepidando até parar completamente e a porta ser aberta. A mesma escadinha de madeira foi posta em sua base e uma mão apareceu para dar suporte ao Príncipe. Em seguida, chegou a minha vez. O burburinho que vinha de fora indicava uma pequena multidão curiosa e sem conseguir conter as violentas batidas do meu coração, dei o primeiro passo na direção das tochas acesas.

Já era noite e mal tinha notado.

Ignorando completamente a mão do servente com um "Posso descer sozinha" dito o mais educadamente possível, saltei os degraus facilmente, por estar trajando calças e botas.

Cochichos.

Ao olhar em volta, percebia que havia um monte de gente nas laterais, atrás do fogo que queimava para iluminar o caminho. Não podia ver seus rostos, mas sentia uma centena de olhos transparentes sobre mim. Adiante, seis sombras altas bloqueavam o final do caminho. Demorou até que a luz chegasse às faces e pudesse identificar quem eram ou como se pareciam.

- Os dois à direita são os gêmeos Arthuro e Rosaline, seguidos pelo pai deles, seu tio, o Príncipe Baldgard. Ao meio Evelyne e Conrad, o Rei Verde e sua esposa, com Elliot, o príncipe herdeiro à esquerda. - Atrás de mim, meu pai sussurrava calmamente enquanto o servo nos anunciava em alto som, tal qual foi feito comigo e meu tio ao desembarcarmos.

Mesmo na escuridão, escutei quando os joelhos da multidão tocaram o chão para reverenciar a nossa chegada. Meus primos, príncipes e princesa curvaram seus troncos levemente, porém, meus tios e a Rainha permaneceram impassíveis com aquela postura ereta e nobre.

Já se sentiu a caminho da execução? Porque era exatamente assim que me sentia agora!

- Bem-vindos de volta à casa, meu irmão e minha sobrinha!

Com os braços abertos, o Rei Verde nos recepcionou, mas sem abraçar-nos. Ele apenas saiu do caminho para abrir passagem para nós e começou a andar na direção do castelo. - Venham, preparamos um banquete para recebê-los!

Não dava para ver muito do pátio onde estávamos, mas parecia grande e aberto, pois o vento soprava com força àquela hora entre seus muros. Os portões de carvalho cravejados em bronze estavam escancarados com um servo de cada lado, esperando pacientemente nossa passagem para os fechar.

Em Império de Sal, os piratas sempre comiam juntos nas comemorações reais dentro da sala do trono. Mas, ali, o povo ficava claramente de fora das festividades.

- Eles não vão comer conosco, Majestade? - Por um momento, meu tio pareceu não entender a que me referia, mas, encarando o portão fechado por cima do ombro, foi como se uma luz clareasse as ideias.

- E porque comeriam? - Seu visível divertimento com a minha dúvida contagiou os outros membros da família que abafavam risinhos de um escárnio tão puro... Surpreendente!

- De onde Vossa Alteza vem é costume que todos comam juntos durante as celebrações, independente da classe. - Claramente chocados com o fato jogado ao grupo por meu pai, príncipes, rainha e princesa se entreolharam com os olhos arregalados, enquanto me limitava a sorrir nitidamente agradecida

- Algo completamente esperado de um bando de piratas. - Ignorando completamente a minha presença, a mulher mais velha abanou o leque frente ao rosto pálido e fortemente pintado de vermelho na bochecha e nos lábios. Ela foi a primeira a passar para o Salão Principal do Castelo, no qual uma luxuosa e longa mesa estava posta com um banquete que daria para alimentar toda a nação por anos.

Aquela frase tinha me feito ranger os dentes com força, mas sabia que estava em desvantagem naquele território e, se quisesse jogar, teria que jogar o jogo deles.

O Rei Verde se sentou à cabeceira da mesa, sua mulher à direita e o filho à esquerda. Quando ia fazer menção se seguir o movimento coletivo e sentar junto do restante também, a mais velha pigarreou discretamente, antes de falar para que todos ouvissem: - Certamente, podemos esperar até que a Princesa Amrella vista trajes mais adequados para a ocasião.

Confusos, os orbes negros foram dirigidos do couro vermelho caríssimo que estava vestindo, até aquela cara enrugada que a Rainha tinha. Agora, com a luz sobre todos, ficava fácil identificar suas feições. Aquele cabelo dourado tal qual fios de ouro líquido presos num coque todo ornado sob a coroa denunciava sua nacionalidade.

Sabia que o povo da cidade, pelo menos os integrantes mais ilustres da Corte dos Desejos, possuíam aquele traço em comum. Ela não era a única estrangeira ali.

- O que há de errado com a minha roupa, Majestade? - Apesar da relutância, a voz saiu o mais educadamente possível.

- É inaceitável que uma dama do seu nível se apresente de calças tão justas para jantar na presença do Rei. - Mal ela tinha terminado a frase, um grupo de serventes entrava carregando um longo vestido de cor verde, com detalhes em dourado e marrom, além de um par de sapatos esquisitos, cravejados com pedras preciosas. Na almofada de cetim de cor idêntica à da vestimenta, um diadema de ouro cuja esmeralda solitária no topo não passava de uma lágrima triste aos meus olhos.

Tentei pedir socorro silencioso ao meu pai, sentado do outro lado da mesa, mas ele desviou do olhar, afundando o rosto no prato e, visivelmente envergonhado.

- Tudo bem, já que o Vossa Majestade, o Rei Verde, se ofende com um par de calças justas, não vamos deixá-lo incomodado. - Enquanto levantava, esforçando-me o máximo para amenizar o tom zombeteiro, girei os calcanhares de leve pelo salão, observando cada guarda real parado próximo às paredes. - É bom que haja muitos vestidos, para cobrir os grilhões de todos esses guardas nessas calças pretas sufocantes.

- Amrella! - Quase engasgando com a comida, aquele que se dizia meu progenitor fez menção de levantar, mas já estava na metade do caminho, seguida dos guardas, pronta para desempenhar meu dever.

Inúmeros pares de mãos transparentes me recolheram ao pé da escada e me guiaram até um cômodo escuro, a princípio. Acendendo algumas velas em torno das paredes de pedra, as quatro meninas tagarelas cochichavam num ritmo acelerado antes de começarem a preparar uma grande banheira de madeira no centro do aposento.

Pelo canto dos olhos, identifiquei algumas de minhas arcas próximas a uma luxuosa cama cujas cobertas de um cetim verdíssimo reluziam à luz trêmula do fogo.

- Esse quarto... É meu? - Não sabia se elas entendiam o idioma padrão da Nação, muitos dos serviçais mais humildes do castelo eram escravos trazidos dos cantos mais selvagens da nossa terra e inseridos à "civilização".

A mais alta das quatro se aproximou, pendurando o vestido em uma das portas do grande armário de madeira que havia ali. Ela mantinha uma expressão neutra na face, um tanto séria, apesar dos olhos castanhos e sardas pelo rosto demonstrassem um pouco de suavidade.

- O Príncipe Sidgard o mantém pra você há anos. - Disse, já estendendo as mãos para as fivelas e abotoaduras das minhas vestes. Por mais inútil que me sentisse sendo despida como uma nobre de merda, essa era uma daquelas raras situações em que você percebe uma brecha para arrancar informação.

- Quer dizer que... Sempre esteve vazio e todo... Cheio dessas coisas de princesa? - Era difícil de acreditar que alguém que nunca me mandou sequer uma carta tivesse tamanha vontade de me ver.

- Quando cheguei aqui, ainda tinha um berço... Era tão bonito! - Foi a vez de uma outra serviçal se aproximar, ajudando-me a livrar os pés das pesadas botas de capitã. De cima, só conseguia ver o topo de sua cabeça aloirada, cujos fios caíam naquele busto enorme e se perdiam dentro do vestido. - Vossa Alteza mandou guardar todas as suas roupinhas e brinquedos em uma arca, junto com o tesouro real.

- E porque ele faria isso?

- Oras, para o neto, é claro! - As quatro se entreolharam rindo, completamente animadas com a ideia.

- Ele pode morrer esperando! - Num rápido movimento, desviei daquelas mãos pegajosas e terminei de tirar as peças de roupa que faltavam. Em Império de Sal, costumávamos nos banhar no mar e nas cachoeiras durante o verão e, no inverno, o Rei enchia as fontes termias sob o castelo de convidados. Nunca tinha usado uma banheira, mas não parecia algo de outro mundo.

A temperatura da água estava boa, nem muito quente, nem muito fria. À medida que o corpo afundava e me sentava no fundo, as quatro jovens se aproximavam e começavam a jogar sais e pétalas de flores na água. Com algo que parecia uma concha, mas macia, a terceira delas passou a esfregar meu braço, enquanto a última esfregava os cabelos delicadamente.

Uma era morena de sol. A pele levemente bronzeada fazia lembrar do povo de sal, porém, ao invés de uma crosta oleosa de fios loiros, como era costume na Ilha, ela tinha cascatas de ondas negras descendo pelas costas, um pouco parecidas com as minhas. Nenhuma das servas poderia ser considerada um primor de beleza, mas essa última, a que me lavava a cabeça, tinha tido a falta de sorte de nascer com um nariz torto e olhos esbugalhados.

- Mas, você não sabe? - Aquela mais alta se aproximava com dois frascos quase idênticos de perfume e a mocinha robusta lhe apontava o segundo enquanto ela assentia com a cabeça. - O Rei Verde formou uma aliança importante com As Montanhas Flutuantes! Parece que o Rei Sobre a Montanha tem um filho que estava lutando nas terras selvagens fora da nação...

- Soube que é lindo... - Comentou uma.

- Eu soube que matou centenas de Urzes. - Adicionou a outra.

- O povo dele o chama de "Voo da Morte", porque ele ataca do alto e você nem percebe quando ele salta sobre você e te rasga em mil pedaços! - Sabia muito pouco das Montanhas Flutuantes. Devido a sua localização distante do mar e o notório temperamento explosivo de nossos povos, não haviam muitas transações entre o Império de Sal e o Trono Celeste.

O que sabia sobre eles é que eram bárbaros amantes dos climas mais frio e que viviam em um esquema de sociedade tão violenta e bruta que mesmo o senso de justiça deles era um tanto deturpado.

Eles eram a inteligência por trás da guerra centenária contra os povos nômades de Urzes: guerreiros selvagens, treinados para aguentar as condições mais precárias de vida, com um instinto assassino inato e um ódio pela Nação tão grande que os tornava inimigos mortais de todos os nossos Reinos.

- Não entendo... - As quatro me ajudavam a levantar e sair da banheira, envolvendo meu corpo com um tecido grosso para aquecer. - O que isso tem a ver comigo?

Mais risinhos.

- Não seja boba, Vossa Alteza! - Uma a uma, elas me vestiam apressadas. Os dedos ágeis iam fechando cordoes nas costas e cintura da peça até que mal pudesse respirar. Grunhi para mostrar o incômodo, porém, para as servas, aquilo parecia perfeitamente normal. - A aliança será formada através do seu casamento com ele.

Pálida feito um fantasma, senti só o corpo ir para frente. Sentia-me sufocada e não tinha nada a ver com aquele vestido mortífero. A mais alta me segurou firme, reestabelecendo o equilíbrio. - Não se preocupe, Princesa Amrella... Vossa Alteza ainda é jovem. O Rei Verde a trouxe aqui para te transformar em uma verdadeira Greyhood nos próximos anos.

Foi a minha vez de rir.

- Se ele pensa que isso é possível, serão longos anos, para mim e para meu tio! - A última peça foi colocada em minha cabeça, um diadema muito parecido com o da Rainha, porém inteiro em cobre e cravejado de esmeraldas. Ele combinava perfeitamente com o colar no meu pescoço. - Só não faz sentido: por qual razão me trazer de tão longe para me transformar em algo que não sou se... Eles já têm uma princesa nascida e criada na Corte Florestal!

As quatro se entreolharam em silêncio, até que aquela de cabelos negros sorriu gentilmente, trazendo um enorme espelho para diante de nós.

Mal podia me reconhecer: tanto brilho, tanto requinte inútil e tantas camadas de saia... Para que?

- Olhe bem, Vossa Alteza. - Pedia uma delas, ajeitando meus fios mais rebeldes para trás dos ombros. - Te trouxeram até aqui porque não existe beleza sequer parecida em Bosque Esmeralda.

Aquele reflexo iluminado pelas velas me encarava de volta com dúvida no olhar. Era a esquisita de Império de Sal, a garota pálida e diferente. Porque estavam dando tanta ênfase para minha aparência agora?

- Vamos, estamos atrasadas!

- Espera! - Sem pensar, puxei o braço da mais alta, fazendo seu corpo girar de volta para encontrar os orbes castanhos arregalados. - Não sei o nome de vocês! - A expressão suavizou instantaneamente, dando lugar ao sorriso mais doce que já tinha visto.

- Sou Drèa e estas são: Khriste, - E apontou para a loira de busto avantajado, depois para a menina de olhos esbugalhados. - Norrah e Amesta. - Por fim, àquela que tinha cabelos negros como os meus. Todas faziam uma curta mesura ao terem os nomes citados. - Fomos designadas especialmente para você.

- Não demos muito certo com a Rainha e a outra princesa...

- Norrah! - Aquela que chamavam de Khriste rapidamente cobriu os dentes tortos de sua companheira, ficando corada.

- Mas...

- Isso é uma história para outra noite, você precisa agora impressionar no jantar. - Tranquila tal qual pluma de cisne, Drèa apoiou a mão em minhas costas, guiando-me pela escuridão dos corredores e para o familiar lance de escadas por onde subimos.

Do outro lado da porta do Salão do Trono, suas centenas de mãos transparentes novamente aperfeiçoavam cada detalhe, até se convencerem de que tudo estava perfeito.

- Respire fundo, Vossa Alteza, logo te anunciarão...

Observei as quatro se posicionarem cautelosamente atras dos guardas que agora abriam a passagem e o mesmo servo da carruagem endireitava a postura para anunciar em alto e bom som.

- Entra a Princesa Amrella Greyhood, sétima na linha de sucessão e herdeira legítima do Trono de Carvalho.

Havia uma curta distância entre a mesa e o lugar que atravessava, porém, ao ver toda a família real de pé para me receber, pareciam léguas e mais léguas a perder de vista. Cada um parecia ter algo específico a ser dito, uma vez que os rostos de opala expressavam reações distintas.

O Rei e a Rainha duelavam entre a surpresa e a indignação. Eles não tinham herdeiras, apenas o Príncipe. Um único filho que tratavam como se fosse feito em cristal, pois sua soberania dependia da sobrevivência dele.

O mesmo, por sua vez, tinha os lábios entreabertos e um olhar fixo no meu. Aqueles cachos negros pendiam do alto da cabeça até as sobrancelhas igualmente peludas, um marco dos Greyhood. Suas pupilas ampliavam à medida que me aproximava da mesa, o que era um tanto incômodo, mas divertido.

A única pessoa que tinha me olhado assim era Navhir.

O que será que ele estava fazendo agora?

- Não é que elas conseguiram fazer uma flor desabrochar em minutos? - Baldgard tinha fama de ser gracioso, mas, naquele momento, o bom-humor não foi muito bem visto. Não que ele parecesse se importar, afinal, seu sorriso dizia o contrário.

Porém, até ele e sua pança saliente murcharam quando, orgulhoso, Sidgard voltou a se sentar e bateu algumas palmas. - Definitivamente, a mais bonita de todo Bosque Esmeralda, quem sabe até da Nação!

Não era de corar, mas sentia as bochechas pegando fogo enquanto um criado puxava a cadeira para mim. Rosaline estava tão tristonha em seu lugar que os ombros se encolhiam quase que para dentro do pescoço. Já o gêmeo permanecia completamente indiferente, cutucando a codorna no prato com o garfo. Ele e irmã tinham os cabelos um pouco mais claros, castanhos, provavelmente herdados da falecida mãe e seus olhos eram um pouco mais escuros do que os do primo mais velho, duas gemas negras e opacas flutuando num rio leitoso.

- A senhorita tem alguma preferência pela carne, Vossa Alteza? - Nós também éramos servidos em Império de Sal, mas aquela dependência dos criados parecia absurda. Balancei a cabeça negativamente ao pobre rapaz que equilibrava o prato nas mãos. Não conhecia metade daqueles pratos e não faria diferença.

- Agradeço se for algo sem ossos. - Meu pai sorriu, desviando o olhar ao escutar aquele pedido. Ele sabia que era uma escolha cautelosa e sensata, afinal, nós até usávamos talheres, mas nunca para aves, essas eram comidas com as mãos.

Passar como selvagem na frente daqueles nobres nojentos? Jamais!

Carne de veado: um pedaço grande, escuro e suculento, pousou diante de mim. Nem precisava espetar o garfo para saber que teria a consistência de um tablete de manteiga. A primeira porção levada a boca causou a ação involuntária de fechar os olhos e gemer baixo.

- É a primeira vez que come carne? O que servem para esses selvagens, irmão? Afinal, você parecia gostar do que te ofereciam por aqueles lados. - Se havia qualquer chance de gostar do Rei Verde, havia acabado naquele jantar e evaporado feito névoa para além daquele teto mofado de pedra sobre nossas cabeças.

Porém, antes que meu pai pudesse abrir a boca, puxei com os dedos um pedaço de couro entre os dentes, através de alguns fios de pelo animal ainda presos nele. - Peixe e aves, em sua maioria. Mas, até os selvagens sabem limpar uma carne melhor do que isso.

Princesa e Rainha ficaram verdes de nojo, colocando as mãos nas próprias bocas enquanto Vossa Majestade me olhava com cara de quem me arrancaria o coração com aquela mesma colher de cobre que segurava com tanta força.

- Mas... - Ainda não tinha acabado. - Seja lá o que serviram ao meu pai, deve ter sido inesquecível, afinal, não o vejo com carne alguma ao lado.

Pensei que fosse ser reprendida, pois, até então, o mais novo dos três irmãos ainda não tinha demonstrado qualquer sinal de reprovação. Ainda mais quando o Rei Verde esmurrou a mesa e fez todos os pratos saltarem diante de nós.

- Isso é inadmissível, irmão! Ordeno que controle essa criatura ardilosa!

Quando jurei que a bronca vinha, Sidgard apenas deu de ombros, sorrindo de lado e piscando rapidamente para mim. - E qual seria o motivo para fazer isso, meu querido irmão? A Princesa Amrella não mentiu. Não existem mulheres como as mulheres do mar e, definitivamente... - Nossos olhos gêmeos se encontraram por um segundo que pareceu durar um ano. - Não há mulher alguma como Narissah.

Evitar sorrir foi um esforço gigantesco.

Mas, o misto de dor e saudade preencheu o peito ao lembrar daquela mulher brava, geniosa e destemida que me havia ensinado tudo o que sabia. Era possível agora, ainda que em um vago momento, imaginar a ruiva ali, com a cabeça descansando no ombro largo dele, seus braços atados em um encaixe perfeito, os olhos de oceano, verdes e profundos, levemente fechados com a paz que aquele momento trazia...

Pela primeira vez, talvez, desde que nasci, conseguia imaginar meus pais juntos.

O restante do jantar correu em silêncio. A única coisa mais vermelha que o vinho era a cara de ódio do Rei. Sua esposa tentava, em vão acalmar os nervos do marido, mas, ele desviava bruscamente de qualquer gesto ou toque, sem se importar com o filho ou os sobrinhos ali.

Baldgard, vez ou outra, soltava uma piada sobre as últimas caçadas e - quando o tal vinho de amoras alcançou o ápice - as façanhas mais recentes das cortesãs para alcançar seu coração.

Patético, pensei. Sua semicareca e dentes amarelados, de certo, não eram um atrativo, mas meu tio não parecia deixar sua autoestima ser abalada pela idade.

Quando a madrugada já era avançada, as festividades foram amenizadas pelos bocejos da jovem Rosaline e, logo, Conrad permitiu que todos se recolhessem e descansassem daquele dia agitado.

Drèa estava esperando ao pé da escada. Em silêncio, ela me acompanhou até o quarto e me ajudou - felizmente - a tirar aquele abraço da morte que me sufocava a cintura. - Como conseguem passar o dia assim? - O tom de voz era perplexo.

A menina riu, puxando os últimos cordões, de maneira que meu peito subisse e descesse rapidamente, em busca de ar.

- Há muito o que se acostumar em Bosque Esmeralda, Vossa Alteza. Verá que os espartilhos são os seus menores problemas.

Aquilo me deu muito o que pensar por toda noite. Mas, o bom dos lençóis de seda e mantas de pele é que não te dão muito tempo para refletir: logo, o sono vem, tão forte e predominante... Sem chance de combater.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top