titio
dez
Titio ignorava ou desconhecia o seu tom pedante na voz; era glorioso sobre si mesmo, usando até mesmo do significado do seu nome para exibir-se; Acádio, dizia, meu pai tirou da obra de Dostoiévski, explicava, o queixo sobressaltado, o peito estufado de orgulho. Não saberia dizer o nome da novela ou romance, desconversava, mas agia como se a incumbência de seu nome o fizesse mestre de toda a literatura russa. Era também possuidor de manias que só seres como ele, dotados de uma necessidade de auto afirmar-se, poderiam criar, digerir e perpetuar. Só se vestia e se calçava de branco, nunca de outra cor. Dizia-se fluente em francês, espalhando ditados e frases decoradas no meio de suas falas, engolindo as paroxítonas, proparoxítonas, transformando tudo em oxítonas, pondo um "e" no final dos nomes; eu nunca era Maria Idalina, era Marié, Idaliné, Marié Idaliné, e assim se fazia seu francês e sua fluência, num oxitonês de e's.
Quando criança, contava, havia visto algo de extraordinário numa cachoeira, tempos depois achou um nome para a criatura e fez-se um admirador de sereias. Caçoavam de suas combinações de roupa num mesmo tom, bem como de seus relatos nervosos, com as veias do pescoço latejando, sobre a sereia que vira uma única vez e que possuía mil e uma versões diferentes em sua boca. Era inabalável, reconhecia a ironia na voz dos outros, a chacota, mas seu queixo estava levantado, os olhos se fechando para completar uma afirmação que vinha com toda a certeza. Incapaz de zangar-se e de zangar, era querido, com toda a sua pedância e sereias. Muitíssimo dependente dos outros, nunca saíra da casa de vovó ou doutra pessoa, sempre vivendo como um prolongamento do lar.
Quinze anos mais novo que mamãe e quinze mais velho do que eu, ela dava suas correções como uma mãe, ele me carregava para lá e para cá como uma irmã mais nova a quem precisava apresentar o mundo. Passava a maior parte de seus dias conversando nos cantos de Itatiaia, na casa de senhoras que lhe ofereciam café para que rissem de suas conversas, indo a pé até Ouro Branco para fazer o mesmo que fazia em Itatiaia, na casa doutros. Retornava à nossa casa para voltar a ser a extensão dela, com seu bom humor, soltando alguma graça até para a birra que vovó fazia quando ele entrava. Tio Acádio sempre funcionou como um alívio do que se passava em nosso teto; as noites eram mais silenciosas, calmas, antes e depois da janta não se ouvia tom mais alto algum de vovó ou mamãe. Tratavam-no sem paparicos, até com certo desdém e revirada de olho, mas ele as abraçava com elas o empurrando, fazia piada que nenhuma das duas achava graça, estava sempre ali e isso, no fim, era o que devolvia a calmaria. Adaptável, querido, extraordinário, eu já percebia tudo que ele era naquela época, e olhava-o com certa inveja de sua espontaneidade a tudo e todos, às situações que eu travaria, aos pedidos e constatações que falava como se estivessem sempre resididos em sua boca. Autossuficiente e confiante sobre si, era tudo o que ele era, tudo o que me faltava e por isso as manhãs e tardes, quando só havia eu e as outras duas espalhada pela casa, eram tão insuportáveis, sufocantes, agitadas de um modo tedioso e agonizante. Eu nunca apaziguaria a nada, tampouco era uma tormenta, era um infortúnio que incomodava mais do que deveria e de forma silenciosa, quase anônima. Tudo era tão decadente e ninguém sabia o porquê, eu já sabia, hoje sei ainda mais, sempre fora eu e a minha falta de presença. E Tio Acádio era assim, fazia-se agradar até pessoinhas que inquietam como eu, e se agradava de todos, até de infortúnios.
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