livro
dezessete
G. reapareceu dois dias depois, debaixo dum temporal, com todos da casa um pouco atordoados por uma visita assim tão inesperada, na chuva. Mais transtornado ainda estava G. parado no limiar da porta, com as mangas do capote gotejadas, enquanto fechava o guarda-chuva que pingava no assoalho. Mamãe apressou-se para pegar um pano, G. transtornou-se ainda mais em arrependimento pelo que causara sua visita desavisada. Mamãe manteve o decoro enquanto tinha nos pés o pano que esfregava o chão, pedindo para que o homem se acomodasse, disparando olhares a mim e Acádio para que sumíssemos dali. Da sala de jantar eu e titio ouvíamos e chegávamos a ver o que se passava na antessala, onde mamãe e G. estavam imersos numa conversa casual, repleta de reminiscências sobre os tempos mais áureos de papai. G. sorvia um café trazido por Lucrécia e, apesar de seus movimentos serem melífluos, havia uma certa inquietação nos músculos, uma pressa na voz como que para começar algo. Resumiu em minutos os últimos anos de sua vida, desde daquela véspera das vésperas de Natal até há alguns meses, quando voltou da Europa. Morara na Alemanha, morara na Suíça, morara na Itália, morara simplesmente e os detalhes permaneceram omitidos em sua narrativa breve e impessoal à mamãe, que assentia ao fingir atenção.
Pondo a xícara para o lado, G. levantou-se e andou lentamente pela antessala, observando-a com tamanha circunspecção que era como se aquelas paredes que abafavam os trovões do lado de fora lhe fossem nostálgicas e o tivessem guardado em bons momentos de sua vida. No entanto sua inquietação era muita e logo a apreciação pela antessala revelou-se uma desculpa para chegar até a estante que recobria toda uma parede, percorrendo as lombadas de maneira despretensiosa para perguntar à mamãe se ela ainda lembrava do livro que dera de presente a papai naquele Natal, há muitos anos... mamãe respondeu-lhe que sim, lembrava bem, mas desculpou-se por não ter lido ao marido, como pedira G. quando lhe entregou.
"Não há problema. Ainda o tem?"
Com os sobrolhos erguidos de surpresa mamãe levantou-se para averiguar na estante, maneando a cabeça com ar de decepção a cada linha que terminava de conferir.
"Tenho certeza que devo tê-lo em algum lugar... há muitos livros espalhados por essa casa", disse-lhe confiante, para não lhe parecer desdenhosa com o presente que, na verdade, sequer lembrava como mentira a G..
"Não teria como acha-lo para mim? Se não for incômodo, claro. Mas há algo nele.... Quer dizer, queria-o para uma coisa, a senhora não iria entender. Devolveria logo depois"
Confusa pelo pedido, mamãe demorou a assimila-lo e responder que sim, que procuraria.
"A senhora lembra dele, não é? Qual é exatamente..."
Mamãe queria responder que sim, que lembrava com toda a clareza do presente que ele dera, mas é claro que não lembrava de coisa alguma, sequer da cor da capa ou seu tamanho. Quase respondeu em afirmativa, já que tinha em mente esquecer por completo o pedido daquele homem infeliz que só a incomodava, mas havia certa sutiliza naquele pedido esquisito que lhe contava que aquele homem não desistiria fácil.
"Os sofrimentos do jovem Werther... era vermelhinho, assim..."
"Ah! Mas que coisa... lembro!", mentiu mamãe, "Pedirei para que os empregados fiquem de olho...", frisou o plural de empregados, mesmo que só tivéssemos a pobre Lucrécia, "E, claro, farei minhas buscas pessoais. Não o faço agora porque esse tempo escurece a casa e já não enxergo muita coisa..."
De dentro do paletó G. retirou um cartão de visitas e estendeu à mamãe, que o pegou desconfiada, com sua tez entregando a pergunta que pairava por sua cabeça "por que esse homem maltrapilho tem um desses e eu não?". G. explicou que ali havia seu telefone e também seu endereço, que a mulher o comunicasse assim que encontrasse o livro, ele iria busca-lo.
"Viram?!", exclamou mamãe ao bater a porta que levou embora o homem, "Vem aqui uma hora dessas e ainda me pede por favores nesse tom, sem explicação alguma..."
Naquela noite, antes de dormir, acocorei-me debaixo da cama e da pilha ali escondida peguei o livro pelo qual G. havia vindo à nossa casa, pois não poderia ter sido por outro motivo senão aquele. Sua inquietação, sua pressa, sua ida sem sequer ver papai levavam-me a crer que todo seu interesse estava concentrado em minhas mãos. Ao folhear o livro de jeito um tanto desatencioso, larguei-o na cama após não encontrar ali nada que denunciasse o porquê de G. quere-lo de volta. Pela manhã foi a vez de larga-lo na mesa da cozinha, onde mamãe dispunha o café-da-manhã. Perguntei-lhe se avisaria ao homem do livro, ela usando da pergunta para começar seu lamento matinal.
"Ligar? Já nem temos mais linha! Teria que ir até à merda de Tonico para lhe pedir o telefone... Odeio humilhar-me para aquele velho! Outra, não soube da nova? Da última vez que fui lá ele sugeriu começar a cobrar pelas ligações..."
"Mande um telegrama avisando"
"Eu não"
"Uma carta?"
Amuada, largou a colher de pau na panela e disparou:
"Se está tão interessada, por que não vai você avisar a ele, uai?"
"Vou"
"Para onde, menina?"
"Entrega-lo"
Piscando duas vezes para a decisão súbita que eu não costumava tomar, ordenou:
"...Vá, vá, se quer arranjar serviço, vá... Mas não pense que vai agora, hein? Só depois do almoço, vamos ensina-lo bons modo, a hora certa de chegar na casa dos outros..."
No meio da tarde eu pedalava pela calçada de pedras portuguesas úmida pela chuva. As folhas, o ar, os postes, estavam todos recobertos por um falso orvalho matinal que se estendia em sua excrescência por toda a Rua dos Guajajaras, onde eu começava a frear ao encontrar a casinha miúda de portão cinza, espremida por duas outras casas mais corpulentas. Apeando-me da bicicleta e aproximando-me da mureta, descobri um pequeno gongo que servia de campainha. Instantes após bate-lo vi o vulto do que seria um rosto espiar pela janela e em seguida G. abrindo a porta e descendo os degraus com um cachorro roçando suas pernas. Rindo e acarinhando o pelo caramelo do animal, abriu o portãozinho e antes que me perguntasse o que fazia eu ali, estendi-lhe o livro. Recebeu-o encostado ao muro baixo e musgoso, cabeça baixa, olhar profundamente extasiado pelo que lhe oferecia. Uma chuva de pingos pequenos e glaciais começou a cair e, ignorando-os, G. abriu o livro e passeou por suas folhas como se procurasse por algo. Num minuto desprendeu de uma das páginas uma folha fina, tão delgada e translucida que atribui a essa sua natureza o fato de não ter eu a encontrado quando procurei na noite anterior. Atendo-se somente a ela, leu-a em silêncio conciso e, após o olhar chegar ao fim, pôs no rosto um ricto de desgosto.
"Muito obrigado pelo esforço. Agradeça a sua mãe, também..."
Ao oferecer o livro de volta às minhas mãos, recusei num gesto, meu olhar interessando em repouso na folha fina que ele ainda segurava.
"Isso... isso é uma bobagem. Nem sei por que inventei de ocupar os senhores com isso...", e num segundo espremeu com brusquidão o papel. Restou-me soltar um áspero e breve "Não...!", recolhendo-me logo depois.
"Era bobagem", continuou, "Era um poema. Escrevi antes de viajar, achei-o esplendido. Havia colocado ele por engano dentro do livro que comprei para seu pai. Só me dei conta da besteira quando estava no navio... fiquei todo entristecido, pensei por anos ter pedido o único melhor poema meu. Reli-o agora, uma completa besteira, besteira... Não sei por que fui ocupa-los com isso"
"Às vezes ele não é tão mal assim...", G. olhou-me curioso, pedindo por maiores explicações. Arrependi-me de ter começado, não tinha costume de falar com gente estranha; causava-me sudorese, um rubor desnecessário, já nem suportava mais encara-lo com seu olhar rijo me fitando. "É só que o que escrevemos pertence ao tempo que escrevermos. Não vê mais sentido nisso porque já é outro. Digo, foi para a Europa, fez isso e aquilo, mudou de opiniões, conheceu outra literatura. É outro, só, o poema também é outro"
Desembrulhou o maço de papel e estendendo-o todo enrugado contra o sol pensou alto que deveria tentar reescreve-lo.
"Obrigado", salientou mais uma vez, pondo o livro e o papel debaixo do braço, "Preciso voltar para casa, há um aluno esperando por mim lá dentro"
Deveria ter assentido e seguido meu rumo, mas fiquei olhando-o argutamente, supondo mil e uma ocupações que aquele homem poderia ter. Absorta numa distração, dei-me por esquecida dele e seu olhar, que agora estava parado esperando que eu decidisse ir embora.
"Dou aulas de alemão", disse simplesmente, passando a apalpar os bolsos à procura de algo. Estendeu-me pois mais um cartão de visitas, daquela vez decorado com um Portão de Brandemburgo em nanquim.
"Ah..."
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