disperso
vinte e um
Minhas desculpas não a acalmaram; aquela semana que sucedeu a quarta foi então comigo do quarto para a sala e da sala para o quarto. Estava de férias da escola, não saía nem mamãe permitia, comecei então a pedir que Acádio me trouxesse um exemplar do dia do Estado de Minas, com ele sempre fazendo conta dos centavos que gastava para traze-lo até mim. Titio contava à mamãe que agora eu havia dado a ler notícias, ela fazia seu bico e ignorava, eu ia descobrindo os dias em que G. tinha sua coluna; nas segundas, nas sextas... Na quarta seguinte eu já havia lido duas de suas crônicas e era dia de ir para sua casa ter aulas. Era também o segundo dia do novo ano. A sua esposa havia voltado, a sua cachorra voltara a latir, as esquinas estavam mais agitadas, as nuvens mais espaçadas e o sol mais exibido. As coisas retornaram ao seu cotidiano e G. talvez já não se sentisse assim tão decepcionado. Recebeu-me no entanto com certo palor e introspecção, como se já tivesse se arrependido de ter-me dito tantas coisas que já não poderiam ser desditas. Não procurei acalma-lo quanto ao que havia me contado na semana anterior, muito menos perguntei-lo se estava ou não melhor para confortá-lo, não saberia faze-lo, de toda forma.
G. deu-me aquela aula falando e falando, mas nada dizendo. Suscitado numa taciturnez incomum, logo compreendi, pelos seus olhares fora de hora apoderando-se das coisas vis que nos cercavam, que desejava que eu lhe dissesse alguma coisa, qualquer que fosse, e só assim sairia daquele seu estado. Nada lhe disse e no finzinho de aula que restava contou-me que seu filho estava chegando na próxima quarta e tinha que ir busca-lo na rodoviária às cinco e que por isso não poderia me dar aula na outra semana, mas que substituiríamos noutro dia, talvez no sábado ou no domingo.
"Por que me olha assim, não pareço um homem que pode ter filhos?", foi sua pergunta para a minha cara que mastigava aos nós que me contara, "Ele é um pouco mais velho que a senhorita. Saiu de casa faz tempo, vive conforme suas vontades e para o seu bel-prazer. Surpreendo-me que resolva tão subitamente dar as caras. Bem, uma coisa eu sei, para me ver é que não foi; talvez seja meu rosto a última coisa que ele gostaria de encarar, mas ainda é um menino meio apegado à mãe, se veio assim de repente é por conta dela. Que foi, Idalina, por que continua a me olhar assim?"
Para mim não havia excrescência alguma em minha face, mas não lhe contrariei sobre, apenas perguntei-lhe:
"Por que seu rosto seria a última coisa que ele gostaria de pôr os olhos?", em alemão, pois coisas assim eu não perguntava em português.
"Oh, Idalina, talvez eu não seja uma pessoa assim tão boa e correta quanto pode achar que eu seja. Já errei demais, principalmente com esse menino, nem o culpo por ser assim"
Na minha falta do que complementar — pensei mil e uma coisas, não sabia traduzi-las para o alemão, abri a boca e a fechava em arrependimento —, o silêncio retornou e nos minutos que prolongaram meu rosto rente ao dele — numa fitada desmedida — o sino pesado e abafadiço nos tisnou pela metade, cedendo nossos braços por sobre o colo e chegando nós à conclusão de que já era hora de eu ir embora; demoraria mais tempo do que o normal para voltarmos a nos ver.
Até lá fui alimentada pelos exemplares do Estado de Minas, cuja a única coisa que me interessava era lida, recortada, guardada e o resto — grudado de notícias de política e anúncios de emprego — jogado fora. No fim de semana seguinte eu já possuía mais de meia dúzia de crônicas enclausuradas por dentro das gavetas de meu quarto — também era tempo de repor a aula passada. G. apareceu-me na exata entonação do que fora seus últimos escritos no jornal; exaustivos nas linhas e nodosos nas concatenações; se fossem pessoas estariam como ele se punha a mim naquela tarde de sábado, teriam aqueles olhos como que ardidos por uma penumbra fumegante, possuiriam a voz incomodada com a qual me falava e me deixava desconfortável junto.
Seu filho não estava ali, não naquela casa. As paredes de amarelo pálido fechavam além de nós dois somente sua esposa, que fumava na sala enquanto cosia. Quis-lhe perguntar sobre o rapaz, porém o que eu tinha de querer faltava-me na pretensão de começar uma conversa daquela; concentrei-me no alemão, na minha fala que matizava com a dele e se tornava perturbada junto, ele beirando a desistência, seu olhar vazio e terrível que nada via. E sua perturbação era tanta que um déjà-vu ao contrário passara por minha cabeça, dele e sua impaciência chegarem a tamanha irritação que as pernas da cadeira a qual sentava seriam arrastadas pelos ladrilhos com brusquidão, rasgando o cimento e criando sulcos no chão; ele olharia para o estrago indiferente, caminharia em seguida com a mesma indelicadeza, as quatro pernas cedendo com o encosto; bateria aporta em saída com tal força que meus braços fremiriam e eu precisaria de segundos para compreender o que acontecera. Porém, nada fez senão respirar de forma profunda, em um ritmo que criara, tremelicando os pés por debaixo da mesa como que para esvaziar-se da veneta.
E como se sua impaciência tivesse se exaurido, cessou com os pés e o respirar ritmado, contando-me de repente em voz e olhar baixo que iria para aquela cidade lá, a que eu havia lhe falado em minhas narrações em alemão que ele exigia. Uns senhores o haviam contatado para fornecer umas aulas semanais para uns velhos, sabe, explicou-me, naquela coisa de dar sentido à vida em fase tão sem eira nem beira como a deles. Respondi-lhe que compreendia sem compreender, mais preocupada em lhe corrigir a cidade; falei-lhe que minha terra era Itatiaia e ele falava era de Ouro Branco; tudo a mesma coisa, concluiu simplesmente. Resolveu pois que iria na tal cachoeira que lhe contei em narrações em alemão, a que as crianças olhavam do precipício, pois lá chegaria como um primeiro humano a pôr os primeiros passos numa coisa primeira. Que ideia! exclamei no jeito e tom que mamãe me repreendia, pois lá não se ia, não se embrenhava assim na mata atrás de uma cachoeira que nem nome tinha direito.
"Anônima como eu", observou, "Irei até ela", decidiu-se comprimindo a boca, assentindo para si mesmo, batendo duas vezes na mesa como que para firmar sua decisão nas fissuras da madeira.
"Eu lhe a mostro, se quiser", em alemão, coisas assim não se sugerem em português, "E serei a primeira dentre aquelas crianças da minha antiga rua a ir tão longe"
"Vamos"
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