vovó
nove
De vovó herdei a aparência filtrada por mamãe que se uniu a de papai e formou-me num laço metade desfeito. Mais que isso, herdei o que transcende os genes e suas combinações, o que só poderia roubar nos primeiros anos de criação: o medo, sobretudo o medo de falar. Ela era uma mulher difícil, agia como se seus maus modos fossem por conta de sua ignorância. Não era letrada, mas para uns — bem específicos — gabava-se com o pouco que conhecida do mundo; para nós, para mim, usava de seu pouco de conhecimento para justificar seus excessos, suas raivas, suas besteiras e loucuras. Ela era assim, andava conforme pudesse se beneficiar de alguma forma, falava para agradar aqueles que precisava, desdenhava na cara dos que tinha certeza nunca precisar. Adaptava-se para o seu próprio bem e somente por ele. E nesse vai e vem, mamãe a amava e desamava, ao passo que vivia embaixo de seu teto, escondendo-se nos cantos e colocando seu bico para fora quando estava desgostosa, rindo e em fofocas na calçada quando estava amicíssima. E nessas idas e vindas, eu era o miolo, que separava as duas partes à beira de se chocarem em briga. Cada lado me queria, cada desgosto e raiva usava das palavras e da comoção para persuadir-me a ir de contrário ao inimigo. Eu tinha que descordar, concordar, manear e não dar respostas. Ficava confusa, nunca suscitando uma opinião verdadeiramente minha. Pior, nas horas seguintes a algum monólogo de alguma evitava encontrar-me com a outra, encarar-lhe nos olhos, como, como após ouvir àquilo tudo e ter me sentido sujeita a concordar? Eu não poderia. Mas antes que eu escolhesse a um lado ou sucumbisse de indecisão, faziam as pazes, riam-se, fofocavam como se fossem incapazes de guardarem mágoas uma da outra. Quando me apercebia do retorno do ambiente sereno, minha respiração saia como que de alívio durante os dias ou semanas — nunca meses — que antecediam a desavença seguinte. Sempre havia e eu, na ingenuidade, cria que aquela seria a última vez a fazerem as pazes.
Mas vamos ao medo...
Atribuía a essa irregularidade na relação entre mãe e filha o gênio de vovô, não que o de mamãe fosse mais simples, mas havia um pedantismo maior na primeira, uma falsa modéstia, uns excessos sem importância, uma sobra que fez nascer o medo. Era uma mulher difícil, nunca conhecia com certeza o que poderia irrita-la. Os raros pedidos, quando feitos, saiam numa fala embolada, quase incompreensível, de preferência sem encara-la nos olhos. "Que disse, menina?" perguntava num tom que me tornava a criatura mais arrependida da Terra, com sua mão na cintura, o olhar forçando para que eu também a olhasse. Repetia, noutras apenas saia enquanto ela insistia para que eu continuasse. Às vezes, ela nem dava importância ao que pedia, justo nas ocasiões que eu tinha certeza que gritaria ao alto a minha imbecilidade em pedir-lhe aquilo. Noutras... ela era apenas ela, esperneando, colocando para fora os pulmões, reclamando. A insegurança replicou em todos os outros pedidos que eu fazia, a qualquer outra pessoa. Não tardou para se estender às falas; explicações, respostas simples, perguntas, por favores, obrigadas, fosse o que fosse, for o que for. Tremulo meus lábios, minhas mãos, minha voz. Evito olhar o outro nos olhos, tudo que sai de mim é embolado, turvo, incompreensível as melhores mentes e ouvidos. "Que disse, Idalina?" o tom é mais sutil do que o de décadas anteriores, o olhar mais delicado, mas a vergonha e temor que sinto são os mesmos. Repito, tenho que repetir, não há como virar as costas e ir, sou uma mulher adulta, não uma criança que birra, que vira as costas e se esconde. Sei que a permissão, a resposta, os gestos do outro serão gentis, jamais eufóricos e raivosos com o da mulher da rua sem nome. Mas dela herdei o medo, não há como se opor a coisa como esta, que nasce dum temor e morre noutro.
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