ida
vinte e nove
"Eu estou apaixonada, Rosamélia, apaixonada"
O silêncio tumular desceu sobre nós duas, detive-me no aquoso de seus olhos, pedindo para que ela me falasse qualquer coisa, uma de suas bobagens, um de seus pensamentos; era tão falante há um minuto e sua voz agora recuara e ponderava sem pressa.
"Apaixonada? Por quem? Por aquele filho de deputado? Como que é o nome dele, mesmo, Ernesto?"
Era estarrecedor ter, por menor que fosse o momento, toda a coisa que naquela hora se acumulava tão abruptamente em mim como pertencente a Ernesto. Neguei, neguei veementemente, eu estava apaixonada por G., revelei-lhe e mais um novo silêncio que nada tinha de novo se avolumou, não passando de uma reencarnação do que há pouco havia ido embora. Eu já não podia olha-la, seu rosto foi para longe, ela se levantou e remexeu com os dedos as cambraias das cortinas da janela por onde submergia na vista insossa da rua.
"Já pensou... já pensou numa cor chamada asfalto molhado?"
Seu dorso retesado virou-se pela metade para trás, para mim, olhou-me e eu a olhei; será que havia dito outra coisa e havia ela me soado como uma revelação? Era possível, era real que eu havia ficado trôpega em minhas frases e de certo Rosamélia não compreendera que eu estava apaixonada, que eu amava a G..
"Seria como um cinza... um cinza lustroso"
"Eu estou apaixonada"
Senti a palavra, agora ela havia saído, tremelicado pelo ar, entrado pelas orelhas macias e alvas de Rosamélia; agora eu tinha certeza, ela sabia, seu suspiro soltou parte de mim que estava presa nela, dizia que não queria começar aquela conversa, que estava exausta daquele assunto que mal havia trocado comigo.
"Eu já entendi"
"E por que não me diz nada?"
"Porque ele é casado. O que tenho eu para dizer? Isso deveria ser um assunto encerrado. Você está estranha, Idalina, lembra do homem que beijou àquela noite? Credo! Agora me vem com essa e ainda quer que eu lhe diga algo. Se espera que eu a encoraje, está perdendo seu tempo"
Uma enxurrada de dizeres bregas embolaram-se em minha boca, ia falando sabendo que ela não queria sabe-los, ela ia recebendo-os com cólera, palavras que me pareceram tão belas e inovadoras enquanto eu as tinha somente em mente; o problema era a minha voz, meu tom, a voz em que lia meus pensamentos era amena e teatral, as breguices do coração que ama pela primeira vez se multavam sem deixarem de ser o que eram; breguices. E à Rosamélia eu as teci, descarnei-as enquanto me desnudava, e dela eu queria como que uma redenção, esperava que ela entendesse, em meio àquela chuva torrencial de sofreguidões e juras de morte e amor, a gravidade encubada naquela confissão — eu estava apaixonada. Não sei o que dizer, isso é insólito demais, foi, no entanto, toda sua conclusão. Fiz que compreendia, mas não sabia o que era insólito nem quis lhe perguntar para não inflar seu ego, contentei-me tristemente em saber que ela não me diria nada porque não sabia, porque estar apaixonada tão gravemente era insólito. Em casa descobri que insólito era incomum; fechando o dicionário com uma borrifada de pó com odor de décadas meu amor era incomum. Incomum como um domingo de trabalho, incomum como se apaixonar em uma manhã, quem, quem no mundo se apaixona durante uma manhã? Insisti a gravidade que me acometia, por dias, narrando e esperando por alguma reação involuntária por parte dela; não houve nada além de suas pálpebras guardando sua expressão esvaziada de qualquer coisa. Não desisti e de forma humilhante continuei a relata-la o que eu queria dizer com aquilo tudo, falas e mais falas que poderiam resumidamente se reduzir a um eu o amo. Mas talvez fosse a falta de extensão dessa simples frase ou sua falta de melodrama que persuadisse Rosamélia a crer que nada era tão grave; e eu a estendi em letras e semanas, enquanto tudo ficava ainda mais insólito e portanto nada poderia ela me falar que não isso, o quão incomum era.
Em algum momento resolvi me calar e assumir melhora; não havia por que atormentar Rosamélia, compreendi que a gravidade de se apaixonar era particularmente minha e com insistência alguma eu poderia fornecer a outro uma ótica que o aproximasse da fatalidade que me causava desespero. Concomitantemente, as coisas preludiavam retornarem à normalidade como que para acompanhar-me; falava dos homens e suas estadias de quase um mês em Belo Horizonte. Eles espantavam a G., que passara a evitar visitas a papai ou restringi-las a horários em que supunha não haver o deputado e sua comitiva, quase sempre errava em suas suposições e se punha a contragosto ao lado daquela gente que o incomodava; sentiam-se superiores a eles, o resto do mundo os via como tal, somente ele se sentia como que igual e isso não bastava, os degraus existiam exteriores a suas vontades e não suportava ter que compartilhar o ar, as paredes e o moribundo com aqueles homens. Nas quartas perguntava-me a previsão de ida deles e em seguida não deixava faltar suas perguntas que se alteravam em cada aula, por que diabos visitam tanto seu pai? para se fazerem bons? não há nada melhor para fazerem? Mas os ares já eram de despedida entre eles, regressariam tão logo, dentro de alguns dias, e com saudosismo diziam coisas que os fazia parecerem céticos quanto a possibilidade de reencontrar papai vivo numa próxima visita que poderia demorar anos para acontecer. Devem estar indo na próxima semana, alertei G., para satisfação de mamãe. Talvez esse infortúnio maior a faça detestar menos o infortúnio menor que sou, sorriu, procurava que eu confirmasse suas suspeitas sobre mamãe o achar um inconveniente. Na próxima semana eles vão embora e o senhor poderá retornar com seus infortúnios, foi tudo o que lhe disse pois não via a hora de que tudo regressasse à normalidade, inclusive G. em suas visitas a papai e sua indiferença a mim naquelas horas. Com os ares de ida exaltados Ernesto ia dizendo um tchau como um adeus naqueles fins de tarde onde gastava percorrendo minha atenção, procurando o que falar, dizendo o que o futuro o guardava; queria trabalhar com dinheiro, sempre fora bom com isso, em acumula-lo, em gasta-lo, seria alguém de sucesso, talvez entrasse para a política como o seu pai. E eu? Perguntava-me no fim, que faria eu no próximo dia, no próximo ano; quais eram minhas vontades, viajar, talvez? Seja lá quais fossem, ele poderia dar um jeito nelas, prometia, quem sabe não poderíamos ir ao Rio no verão, de certo nunca sem a autorização de mamãe, mas se ela cedesse, ele como um bom rapaz, iríamos; o Rio era bom e ensolarado, São Paulo nevoento e cimentado. Odeio sol, eu lhe dizia e tinha pena de me fazer tão amarga, mas Ernesto levava minhas respostas como mais um de meus caprichos que ele tinha que transpor para conquistar-me. Vamos a Petrópolis, então, as serras! Mas agora tenho que ir, vejo que logo me chamarão. Vejo a senhorita amanhã. Tchau, tchau! E seu tchau afogado num adeus naquela boca tão vibrante esperava instantes antes de se ir na verdade, aguardando por algo meu que lhe pedisse para ficar e despejar o tchau em minha própria boca; eu lhe dizia até. Dois dias antes da ida dele deixei que ele me beijasse, bastou uma leve contração em algum canto meu, talvez a bochecha ou a testa, e ele entendeu que eu concedia. Um leve raspar na ponta de nossos narizes e já estávamos longe um do outro, Ernesto ria vitorioso, exclamava que me escreveria! Escrever-me-ia todos os dias! E o que me contagiava não era sua empolgação, mas o deslumbre de ser apreciada mesmo que por alguém como aquele rapaz tão breve; eu poderia ser querida por uma parte, mesmo que ínfima, de pessoas, pessoas em sua maioria insignificantes e que não me agradavam, mas se de um jeito estranho elas me queriam, talvez ocorresse de G. enxergar-me em mesmo querer. Ernesto, naquela hora em que saia feliz por ter conseguido o que queria, fez-me crer que sim, eu conseguiria G. e não me importava em ser, dentre nós dois, a que amava mais e a que queria mais bem, bastava-me ser a figura que, como Ernesto, tem sua felicidade num beijo enquanto que para o outro a mesma coisa não tem nesga do mesmo êxtase. Baixei o olhar como que para procurar algo que me escapou das mãos e raspei o pé no cimento áspero, cada passo de minhas vontades me punha mais perto de um umbral; o que eu estava querendo senão ser feliz na base da infelicidade de outrem? Os olhos inundaram-se ardendo, eu seria incapaz de fazer qualquer pessoa feliz, eu nunca poderia ter a G. porque mais do que o querer eu o queria bem; ele não era uma coisa nem outra e eu não poderia salva-lo. Cedi os braços como que para deixa-lo ir e me dei por conta de que ele nunca estivera neles. Eu era brevíssima e tudo que um dia fosse meu também seria, a felicidade de ser desejada seria rápida como o beijo que se passara, o êxtase do outro e ter-me por perto seria momentâneo como um gozo exultado, sonoro, fácil como um adeus. Breve adeus que eu pisava naquela quarta sem saber que era ela a última, a última quarta da minha vida e eu a respirava com prazer, despreocupada porque sinal algum me dizia que era ela a última, que era o meu fim. Esquecível como o beijo de Ernesto no dia anterior eu deletava as construções prontas ou inacabadas da Rua Guajajaras que eu sabia que veria noutra quarta, e noutra, mal conhecendo que na volta eu aspiraria delas o último e primeiro pó de suas paredes e vigas porque era o meu adeus e eu jamais retornaria a vê-las; as ruas, as casas, aqueles pedregulhos irregulares, bastava que eu fosse até eles e eu os teria, mas não, naquela quarta deixaram de serem os mesmos, todo o propósito se acabara, eu estava decidida e eles mortos.
Expliquei a G. o porquê da falta de alguns trocados na mensalidade da aula e lhe disse com sutileza que talvez atrasasse o pagamento do mês que vinha, mas que não se preocupasse, eu estava ajeitando as coisas; ocultei-lhe os motivos, a recusa de Acádio em vender meus livros e minha falta de talentos em vende-los sozinha; ele pediu para que eu parasse de me desculpar e, tragando sua respiração, me aniquilou:
"Não, não, está tudo bem. Receio, Idalina, que no próximo mês não estarei mais por aqui. Irei para a Europa"
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