@NataliaDonatto - A Bailarina e o Coração De Chumbo

Cecília e Jorge acabavam de ensaiar o Pas de deux do primeiro ato de O Quebra-Nozes e não podiam estar mais satisfeitos. A apresentação de final de ano da academia estava se aproximando e ambos estavam dando o melhor de si.

Os dois, que eram amigos há pelo menos três anos, pegaram suas bolsas esportivas e saíram da academia de dança. Combinaram de tomar um sorvete, pois fazia muito calor naquela noite, e também, porque Jorge disse que queria conversar com ela. Cecília imaginava - e torcia - que ele iria se declarar.

E era isso mesmo o que ele queria fazer.

Os dois estavam apaixonados havia algum tempo, porém, nenhum deles nunca fez nada a respeito.

Os dois caminharam até um quiosque e Jorge pediu sorvetes de casquinha de sabor misto. Ele pagou, depois, entregou o sorvete à Cecília e os dois se sentaram próximos à uma árvore.

Jorge tomava seu sorvete nervoso e falava sobre como eles tinham se saído bem no ensaio. Cecília estava ansiosa e queria logo que ele se declarasse.

- Cecília - começou ele, quando ambas acabaram o sorvete -, queria falar com você sobre uma coisa.

Ela elevou os cantos dos lábios num sorriso discreto e só conseguia pensar que finalmente Jorge se declararia.

- Pode falar.

Jorge tomou coragem para dizer o que havia em seu coração, mas, um vento forte e insistente desviou a sua atenção, assim como uma senhora com vestes estranhas e esfarrapadas que se aproximava deles, caminhando com o corpo curvado.

- Vocês são bailarinos? - Ela perguntou com a voz cansada e apontando para eles.

- Sim, somos. - Cecília respondeu após alguns segundos.

A senhora se aproximou ainda mais.

- Vão dançar ''O Quebra-Nozes''? - Ela olhou de Jorge para Cecília.

Os dois se entreolharam.

- Eu adoro esse balé - falou parecendo empolgada.

Jorge se levantou e ofereceu a mão a Cecília, que aceitou e também se levantou.

- A Clara e o Quebra-Nozes já vão? - Ela franziu a testa.

- Precisamos ir - Jorge falou.
Aquilo parecia estranho demais. Aquela senhora era estranha demais.

- Mas, vocês ficariam tão bonitinhos com os outros... - falou ela e Cecília estremeceu.

- Que outros? - Perguntou confusa.
- As outras Claras e os outros Quebra-Nozes.

- Hã...?

De repente, a praça foi envolvida na penumbra, o vento forte e insistente se intensificou. Nem Jorge, nem Cecília tiveram tempo de pensar ou fazer qualquer coisa, eles não conseguiam mexer nenhum membro do corpo.

Quando Jorge viu Cecília pelo canto do olho, ficou espantado. A garota de quem gostava trajava um vestido azul claro com detalhes em um tom mais escuro de azul, meia calça branca e sapatilhas de ponta. Era o figurino de Clara. Ela parecia petrificada e a expressão em seu rosto era também de espanto. Seus braços estavam erguidos em arco sobre a cabeça e uma das pernas estava dobrada para trás, mas tão dobrada, que ficou escondida pelo vestido.

Jorge quis correr até ela, mas não podia. Ele se sentia pesado, muito pesado...

Cecília queria gritar. Seu amado Jorge estava de frente para ela, estático, usando as roupas do Quebra Nozes - um uniforme em vermelho com detalhes em dourado e sapatilhas também vermelhas, sem o quepe do soldado. Mas não era isso que a deixava assustada, e sim, o fato de ele estar parecendo uma estátua. Uma estátua de chumbo.

Como num passe de mágica, os dois se viram em uma espécie de quarto. Eles não sabiam como tinham ido parar ali, mas ambos estavam cercados por estátuas de soldadinhos de chumbos e de bailarinas, com diferentes figurinos.

Jorge procurou por Cecília no meio de todas aquelas estátuas. Avistou-a perto de uma das janelas daquele quarto mal iluminado e poeirento. Aquilo era maluco demais.

Nenhum deles sabia dizer quanto tempo havia se passado desde que foram transformados em estátuas. Eles nunca saíram dali e nunca mais viram a tal senhora. Eles também não retornaram a vida como acontece na ficção. Eles até esperaram por isso, mas, quando isso não aconteceu com eles e nem com os outros, eles apenas aceitaram o destino cruel que, por algum motivo, lhes fora imposto. Ao menos eles ainda podiam olhar um para o outro.

***

Muito tempo depois, Jorge viu quando Cecília foi levada do quarto por dois homens. Cecília queria protestar, Jorge também quis, mas, como fazer aquilo?

Cecília foi levada a uma escola de dança, e permaneceu como decoração da recepção, e, ao longo do tempo que ficou ali, viu passar inúmeras garotas e garotos com o mesmo sonho que ela e Jorge tinham: de se tornarem grandes bailarinos. Cecília pôder sentir também, o coração apertar a cada vez que pensava nele. Ela com certeza nunca mais o veria.

Jorge também sentia o coração de chumbo apertar por estar longe de sua amada e queria a todo custo encontrar uma maneira de vê-la outra vez, mas, como? Ele era uma maldita estátua de chumbo.

***

Sem entender como, Cecília foi retirada da recepção da escola e voltou para o quartinho cheio de outras estátuas. Ela quis sorrir e correr até Jorge quando o encontrou ali, em meio a tantas outras estátuas de soldados de chumbo. Jorge também quis correr até sua amada quando a viu sendo trazida de volta. Ela estava perto dele novamente.

Ouviu-se um burburinho do lado de fora do quarto e em seguida, o cômodo começou a ficar quente. Do lado de fora do quarto, alguns gritos.

Jorge olhou para Cecília, e ele podia jurar que ela estava com medo de algo. Ele tinha razão, ela estava amedrontada, pois, ali de onde estava, ela podia ver que o lado de fora do quarto estava em chamas. E elas estavam chegando até ali rapidamente. Foi tudo muito rápido.

Em questão de segundos, o quarto foi todo consumido pelas chamas. As estátuas começaram a ser queimadas, mas, não sem antes algumas delas deixarem de ser estátuas, e se transformarem em humanos novamente. Foi possível ouvir os gritos de agonia.

Cecília procurou por Jorge, e soltou um grito ao vê-lo sendo devorado pelas chamas. Grito, sim. Ela olhou para suas próprias mãos e as mexeu. Ela tinha voltado a ser humana novamente. Correu em meio as chamas até Jorge. Ele não tinha voltado a forma humana e estava derretendo. Um choro descontrolado tomou conta dela e a menina caiu de joelhos com os olhos fechados.

Quando abriu os olhos pouco tempo depois, viu um pequeno coração feito de chumbo, e ela não pôde deixar de pensar que aquilo representava o próprio coração de Jorge.
Ao se ver rodeada por chamas, chumbo derretido e corpos, Cecília juntou forças e se levantou, com o objeto frio nas mãos. Precisava sair dali. Então, ela rasgou um pedaço do vestido e o enrolou na outra mão, quebrou o vidro da janela que já estava rachado e pulou para fora. Estava sem ar e sentia que iria desmaiar. As lágrimas ainda rolavam pela face, e ela não conseguia acreditar que Jorge estava morto. Ela caiu de joelhos outra vez e sussurrou nome do amado, várias e várias vezes...

- Cecília, acorde. - Pediu uma voz gentilmente.

Ela abriu os olhos sobressaltada e se deparou com alguém fitando-a.

- Pesadelo outra vez?

Ela não respondeu, apenas olhou ao redor, constatando que estava em seu quarto.

- Você está bem?

Com muita dificuldade, ela assentiu.

- Vou preparar o café, da manhã, então. - Ele anunciou e saiu do quarto.

Cecília se sentou, recostando-se a cabeceira da cama e respirou fundo. Sentiu os olhos marejarem e agarrou imediatamente o pequeno colar com um pingente em formato de coração, de chumbo, que ela carregava consigo. Ela nunca soube como o chumbo havia tomado aquela forma, e talvez nem quisesse saber. Ela respirou fundo outra vez, desejando com todo o seu coração que aquilo tivesse sido apenas um pesadelo.

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