@AllanaAraujo - Bonezinho Vermelho
- Hora da história, crianças! - foi o que eu disse pras pestes.
Ainda não entendia por que era eu quem deveria ficar de olho nos guris, considerando que a madrasta deles não tava fazendo absolutamente nada e Violeta poderia muito bem ficar amarrada ao pé da cama enquanto eu faria o meu "nada importante artigo científico que vale somente metade da nota do semestre". Sinta a ironia.
- Que história a senhora vai contar, tia? - perguntou a Peste Número 2, enquanto corria pra sentar no chão.
- A história da Chapeuzinho Vermelho! - respondi com um sorriso vitorioso. Que criança não gostava de contos de fadas?
- Avá, tia! - Peste Número 3 reclamou - A gente já conhece essa história. É história de menina... E sou menino!
Eu juro que não merecia isso. Vovó e mamãe deveriam me dar um prêmio por bancar a babá.
- Primeiro, não me chama de tia, pelo amor que tenho aos meus rins! Segundo, não tem dessa de história de menino e menina. História é história e ponto final. - fiz uma pausa dramática e encarei cada um deles. - Terceiro, vocês nunca ouviram a minha versão da história. Então todos quietinhos e sem dar um pio!
- Tu é muito chata, Rosa!
- Violeta, tu também deveria tá sentada. Tá me olhando com essa cara de tacho por quê? - perguntei, já irritada. Depois que as Pestes 1, 2 e 3 sentaram, respirei fundo e comecei. - Como eu já disse, vou contar a história da Chapeuzinho Vermelho, mas essa é uma versão diferente da dos Grimm ou da de Perrault...
- Quem? - as Pestes 1, 2 e 3 perguntaram em um coro irritante.
- Não importa! - revirei os olhos - Quietinhos! Muito bem! Chapeuzinho Vermelho era uma pequena bem da hora, conhecida assim por sempre usar um boné vermelho pra se proteger dos 30 sóis que a gente tem em São Luís...
- Mas então ela não deveria se chamar Bonezinho Vermelho? - Violeta perguntou, e eu tive que admitir que ela tinha razão.
- Beleza! Tu tá certa, a gente muda pra Bonezinho Vermelho... Continuando! Pelo menos uma vez por semana a mãe de Bonezinho Vermelho mandava a garota deixar quitutes pra Vó Jurema e...
- O que são quitutes? - Peste Número 3 perguntou.
- São guloseimas...- ele não sabia o que isso significava. - São comidas, normalmente doces, mas os da Vó Jurema eram bejú recheado com carne de sol, arroz de cuxá, torta de camarão, juçara etc etc etc. Além de todas essas coisas, a mãe de Bonezinho sempre dava dinheiro pra filha comprar mais coisas pela rua, como pastel de vento, guaraná, biscoito de polvilho... Só comida light, porque Vó Jurema era uma senhora de saúde muito frágil.
- Essa Vó Jurema era uma comilona... - Peste Número 2 reclamou e as outras duas Pestes concordaram.
- Sim, ela era. O problema era que Bonezinho também era uma gulosa da maior espécie, não era à toa que era gordinha. Ela sempre reclamava de ter que deixar comida pra Vó Jurema, porque achava a casa da velhinha longe e o seu nível de sedentarismo era gigantesco. A mãe de Bonezinho, sabendo disso, sempre dizia pra filha:
"Se tu comer alguma coisa dessa marmita, vai sentir os couros esquentando quando chegar em casa!"
"Mãe, eu posso ir de ônibus? Andar me deixa com fome!"
"Que ir de ônibus, pequena?! Tá achando que vou incentivar a tua preguiça? Ainda mais com a passagem custando os olhos da cara? Vai andando, sim! Faz bem pros cambitos e tu tá precisando fazer exercício físico!"
"Mas, mãe!"
"Engole o choro e vai ligeiro! E não dá trela pra ninguém no caminho, muito menos aceita comida de gente estranha."
- Quantos anos a Bonezinho Vermelho tinha? - Peste Número 2 perguntou - Ela parece muito lerda do jeito que tu tá contando. A minha mãe não precisa falar isso tudo pra mim.
- Bem, Bonezinho tinha uns quinze ou dezesseis anos... mas, como eu já disse, sem interrupções! Bonezinho pegou o rumo da casa da Vó Jurema, reclamando horrores por ter que ir andando.
"Que aziado, não posso pegar o busão e nem comer nada. Vovó nem vai perceber que tá faltando comida! Que injusto! E mamãe ainda comete gordofobia contra a minha pessoa!"
- Depois de andar um pouco e começar a resmungar que as pernas tavam cansadas, começou a cantar pra se distrair da fome e do cansaço.
"Que ilha bela, que linda tela conheci. Todo o molejo, todo o chamego, coisa de nego que mora ali. Se é salsa ou rumba, balança a bumba meu boi. Deus te conserve regado a reggae, oi-oi-oi-oi. Que a gente segue regado a reggae, oi-oi-oi-oi."
"Tu canta ruim pra caramba!"
- Esse foi Guilherme, mais conhecido como Lobo, porque comia tanto quanto Bonezinho. Ele era um cara que gostava de mangar dela também.
"Sai fora, Lobo! Não tô com paciência pra tu hoje!"
"O que tu tem aí nessa marmita? Passa pra cá, tu tá gorda, precisa fazer dieta."
"Vai plantar bananeira, capeta! Tu não vai pegar minha comida!"
- Bonezinho chutou a canela do Lobo e correu até a casa da Vó Jurema. Só que o sedentarismo logo fez com que Bonezinho precisasse pegar fôlego. Sabendo pra onde a garota iria, Lobo foi direto na fonte. Afinal, Vó Jurema não recusaria dar uma comidinha pro garoto. Enquanto isso, Bonezinho Vermelho ia quase morrendo até a casa da sua avó. Abriu a porta e entrou.
"Vó, trouxe o rango!"
- Ela estranhou o silêncio da casa, mas simplesmente ignorou, até que ouviu o grito da velhinha.
"Sai daqui, moleque! Quem tu pensa que é? Eu não sou uma velha indefesa, não! Casca! Rala! Cai fora! Tá doido? Eu tenho uma arma aqui, tá vendo?"
- Bonezinho correu desesperada em direção ao barulho. Quem será que invadiu a casa de uma senhora indefesa? Quando viu a cena, Bonezinho começou a rir de uma forma que fez a Vó Jurema parar com a histeria. Lobo tava chorando feito criança depois de ter levado vários golpes de guarda-chuva.
"Bonezinho, me ajuda!"
"Dá teus pulos, seu lesado. Ninguém mandou mexer com a comida da vovó. Ela é das que acham que comida é algo que não se divide."
- Bonezinho riu do Lobo, e Vó Jurema só não matou o coitado porque um policial passou por lá e perguntou o que tava acontecendo. Depois que o policial conseguiu aplacar a fúria da velhinha, Lobo fugiu. Vó Jurema enxotou Bonezinho de volta pra casa sem nem mesmo oferecer pelo menos um bejú. Ela quase desejou que o Lobo tivesse comido tudo. Foi pra casa reclamando de novo da vida, a pobrezinha. Fim.
Os guris me encararam sem nem mesmo piscar. Então Violeta se manifestou.
- Que história horrível. Bora, João e Maria! Rosa não sabe contar história.
Então as Pestes foram brincar em algum lugar, e eu fui fazer meu artigo.
- Tu tava contando aquela história, não era?
- Que susto, Guilherme! - encarei o infeliz, que ria da minha cara. - Tava sim, porque é divertido lembrar da vovó te batendo.
- Que maldade. - ele sorriu de modo debochado. - Tem comida aí?
- Cai fora! Te perdoei pelas coisas horríveis que tu dizia na adolescência, mas pedir comida é o cúmulo da cara de pau!
Guilherme foi embora, rindo da minha cara, e eu, finalmente, pude fazer o meu artigo.
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