• Instinto Assassino •


Fazem dois dias desde a invasão Orc. Trynie está em puro alvoroço com a reconstrução dos distritos. Claro que os moradores daqui sendo seres mágicos, facilita bastante a vida, tanto que nesses dois dias as obras já estão na metade. E durante todo esse tempo não vimos sequer a cara de Yedryn, nem mesmo durante as refeições.

Obviamente ele tem muito que resolver, mas tenho certeza que está aproveitando disto pra me evitar. Não importa, logo logo ele vai ter que aparecer. Eu, Elly, meu tio e Lucian, estamos nos recuperando dos ferimentos e aproveitando a estadia, até encurralarmos o elfo e fazer nossa aliança.

Ellyna machucou seriamente o braço, não o quebrou, mas deve manter um certo repouso e cuidado com ele. Meu tio se curou de seus cortes facilmente com magia branca, e ajudou no que pôde com os nossos, tanto que muitos dos meus não passam de apenas mais algumas cicatrizes.

Já faz algum tempo desde o almoço, estou a caminhar pela cidade, aproveitando um pouco do tempo. Engraçado como a palavra "aproveitar" soa tão distante. Resolvi vir um pouco a Kellen, os Faunos, Centauros e alguns lobos renegados, trabalham nas residências enquanto as fadas das árvores e as dríades, no florestamento do distrito.

Observo algumas delas fazendo mudas novas de plantas nascerem, outras florescerem, e árvores  brotarem e se elevarem aos céus num passe de mágica. Literalmente. Outras fadinhas, cobrem os telhados das novas casas com uma relva fofa, e as decoram com raízes e flores silvestres.

Algo me chama a atenção vindo de uma área não atingida pela luta. Alguns vagalumes piscam no ar, quase que fazendo uma trilha guia. Não quero ir, mas algo me puxa fortemente, uma sensação estranha me leva como se eu devesse ir até lá. Um arrepio corre meu corpo, minhas pernas parecem mais trêmulas e meu coração acelera.

- Eu só espero que não seja mais problemas.

Escuto um farfalhar entre folhas e meus sentidos aguçam. Seja lá o que for foi pra direita! Corro seguindo o barulho e ele foge de mim. Pra esquerda, pra direita, tenta me enganar ziguezagueando, mas um instinto predatório me domina e não me deixa perder o ruído. O mesmo instinto de quando luto. Mas é mais forte, muito mais forte, e me afunda em si, fazendo-me esquecer a tudo e prestar atenção apenas em meu alvo.

Era como se eu não pudesse perder aquilo de jeito algum e tivesse que fazer o impossível pra conseguir alcançar.

Me conecto com o ar. Posso sentir sua movimentação junto a todos os outros animais. Mas ele é grande e rápido e está conseguindo fugir. Vou atrás. A adrenalina da caçada em minhas veias faz meu corpo arder em êxtase. Graças ao campo fechado que é Kellen, em meio as árvores, ele não pode correr muito. Aos poucos perde terreno e eu consigo me aproximar cada vez mais.

- Samhara!

Escuto o som ao longe, como que se estivesse embaixo d'agua. Ignoro e continuo correndo.

- Samhara!

Droga! Quem será que está gritando desse jeito e porque não cala a boca? Espero que vá embora. Ainda mantendo a conexão, consigo saber pra onde minha presa foi. Mas tem algo atrás de mim. Tem alguém me seguindo. Esse último para e sem me importar continuo. Tudo a minha volta passa a não me interessar, exceto a linha imaginária que se faz em minha visão me guiando ao meu alvo. Graças a isso, não escuto nem sinto nada.

Só sinto quando sou derrubada no chão e com um ruído estranho, quase que um rosnado pra quem me prende, tento me soltar. Mas ele me bloqueia, está em cima de mim e com um braço de cada lado de meu corpo. Seu cabelo negro cai pela lateral do rosto.

- Me solta! Me solta! - me debato.

- Samhara! Samhara! Acorda!

- Sam...o que? - esse som me é familiar...

- Sa-mha-ra. Samhara Faringray. Feiticeira elementar, exímia arqueira, guerreira, e minha baixinha irritada preferida.

Minha respiração vai desacelerando. Perco a conexão com a atmosfera. Meus sentidos diminuem seu alcance e minha consciência começa a querer voltar. Vagamente me lembro de quem sou.

- O...o que houve comigo? - vasculho os olhos de quem agora lembro ser Lucian, tentando encontrar ali alguma explicação.

- Não sei direito, mas não foi nada bom. - acabo me perdendo em seus olhos esmeralda. Sua respiração ofegante mescla com a minha devido a proximidade.

Ainda estou meio confusa, é como se ainda estivesse caminhando para minha completa sanidade. Minhas veias pulsam de adrenalina, meu corpo está quente com o exercício. Involuntariamente desço os olhos para a boca de Lucian. Ele percebe e só me dou conta do que está acontecendo quando sinto seus lábios contra os meus, num beijo calmo e sem pressa. Diferente da vez do telhado.

Isso praticamente me traz de volta a realidade, mas ainda estou fisicamente desequilibrada e assim que ele para pela falta de fôlego eu rapidamente retomo o meu, ponho a mão em sua nuca e o trago pra mim outra vez, iniciando um novo beijo desta vez mais quente e desejoso. Mas algo em minha cabeça grita em advertência. Como que "Hey! É o Lucian! O que está fazendo!". Interrompo imediatamente, me afastando do garoto lobo.

Passo as duas mãos no rosto tentando recobrar meu juízo perfeito.

- Porque parou? - ele me olha intrigado - algo de errado?

- Porque eu não sei o que estava fazendo. Não seria justo com você.

- Mas no telhado você também retribuiu.

- Retribuição e iniciativa, são coisas bem diferentes. Por falar nisso o que te deu aquela noite? - nós não tocamos no assunto desde então.

- Não sei... - ele olha um ponto fixo qualquer. - Mas criaturas da noite ficam meio diferentes durante uma lua cheia - ele olha pra mim embaraçado coçando a nuca. - desculpa.

- Não tem do que se desculpar nós apenas aproveitamos o momento certo? - dou um sorriso cúmplice.

- Certo. - ele me de devolve um sorriso ladino.

Nos levantamos e pegamos o caminho de volta. Mas eu precisava saber o que houve comigo.

- Lucian, o que aconteceu? - ele suspira antes de responder.

- Não sei te explicar, mas estava indo te procurar e quando te vi, você saiu andando floresta adentro, tentei te alcançar, então você começou a correr. Olhava de um lado a outro, parecendo um caçador, virava a cabeça na direção de algum ruído a todo instante, estava seguindo alguma coisa. Gritei seu nome várias vezes, mas você não me ouvia...

- Várias? Me lembro de ouvir apenas duas vezes. - o interrompo.

- Eu te chamei várias. Mas só vi você dar algum sinal de ter ouvido nas duas últimas. Foi ai que vi que você estava fora de controle, não reconheceu o próprio nome! Então fui atrás e te parei a força. Ainda assim, você não estava nem mesmo se lembrando de mim e praticamente rosnou pra mim Sam. Mas afinal, você foi atrás de que?

Boa pergunta. Também quero saber.

- Não sei. Eu simplesmente fui atraída pra cá. E então ouvi um ruído e de repente tudo me escapou. Eu só sabia que tinha que ir atrás, que tinha que chegar até meu alvo. Eu não sei o que faria quando chegasse, apenas meu corpo se empenhou completamente em chegar até ele. Nada mais importava. Eu perdi a consciência pro puro instinto que eu nem sequer sei o que é. - concluo com um suspiro frustrado.

Terminamos o caminho em silêncio, chegando ao palácio e nos encontrando com meu tio e Elly jogando xadrez em um dos pátios com fonte.

- Ah ai estão vocês. Querem jogar? - fez um gesto pro tabuleiro.

- Não tio obrigada.

- Onde vocês estavam? - Ellyna pergunta maliciosamente.

- Não interessa. - Respondo de mal humor.

- Oras, que bicho te mordeu?

- Eu é que quase mordi o bicho - dou um suspiro cansado - preciso do meu quarto. - Saí em direção aos meus aposentos.

- Ela teve um momento difícil...  - ouço Lucian dizer, antes de eu virar no corredor.

Após chegar no meu quarto, me joguei na cama olhando pro teto. Fechei os olhos me lembrando de quando quase espanquei um garoto. Eu estava com o mesmo instinto assassino de agora a pouco. Descontrolada. Com um longo suspiro me levantei indo até a tina e tomei um bom banho, deixando a água relaxar meus músculos e levar a tensão embora. Ao sair, me coloquei atrás de Yedryn. Tentei seu escritório, mas ele não estava. Fui atrás de informações com os guardas e acabei por o encontrar com um pelotão pronto pra partida, apenas recebendo suas últimas instruções.

Me aproximei devagar sem interrompê-lo. Ele me viu e se dirigiu a mim.

- Samhara. A quanto tempo. Infelizmente andei muito atarefad...

- Deixe de desculpas não estou interessada. Apenas temos algo a acertar e vim saber como fica, não posso esperar pra sempre. - corto sua fala apressando o processo.

- Eu sei. Salvas-te minha vida, e de toda Trynie. Graças a você os dragões foram libertos e pudemos nos defender. Estamos em eterna dívida com sua pessoa. - apesar de sua cordialidade, e do tom enveludado de sua voz, vejo a decepção desse fato em seus olhos.

- Todos sabemos a forma de quitar essa dívida. Não vamos ficar com floreios.

- Sim, sim, mas antes feiticeira, refleti sobre o que me disse durante a batalha e investiguei - ele estala os dedos e dois guardas aparecem, trazendo um elfo amarrado e algemado com eles. - Este é o traidor. Seu pai era um vendedor do mercado clandestino. Por vender ilegalmente artefatos de magia élfica foi banido de Trynie, e amaldiçoado à vida humana comum sem seus poderes. O filho e a esposa ficaram, mas parece que o pivete revoltado cresceu e resolveu se vingar da coroa.

O elfo loiro olhava para Yedryn com ódio. Sua respiração ofegante reforçava seu olhar mortal em direção ao lord.

- Ele estava como guarda da muralha. Havia feito uma aliança com os Orcs. Envenenou a comida que era enviada aos soldados da ronda noturna, desfez a magia de camuflagem, abriu os portões e os fez passar. O pai do cretino, o exilado, foi quem fez as carroças que dominaram os dragões.

- Ainda sim, quem capturou os dragões? Um elfo exilado, sem magia alguma, não seria capaz.

- Não, mas desconfiamos que alguma bruxa de Mégara possa ter feito isso. Trynie é bem almejada por elas. Mas não são párias pra nossa magia.

- Mais um motivo pra me apoiar. Assim acaba de vez com essa ameaça afinal antes prevenir que remediar.

- Correto minha cara. Mas antes tenho que eliminar uma ameaça mais próxima. Depois da perda da invasão os Orcs estão fracos. Se atacarmos agora acabamos com eles. E é isso que vou fazer. Troquei a vida desse miserável, pela informação do covil. Assim eu tenho minha rota, e ele a vida.  Após nos levar até lá, receberá o mesmo exilamento que o pai.

- Mas...

- Não existe "mas" feiticeira. Antes de seus problemas vem os meus. Não pedi pra salvar minha cidade. Não pedi pra salvar minha vida. Fez porque quiz na esperança de ter meu exército junto ao se...

Antes que terminasse eu agarrei seu pescoço com uma mão, com uma força que nunca tive antes e o joguei de costas no chão, enquanto com a outra afastei os guardas que prontamente tentaram vir até mim. Ainda com minha mão a apertar sua garganta, me agachei para falar-lhe.

- Eu e meu grupo não arriscamos nossa vida a toa. Isso não é um pedido. Isso é uma ordem. Você agora é meu aliado e não há nada que possa fazer a respeito. Sua cidade e sua vida devem a mim e eu estou cobrando. E se eu suspeitar de traição é melhor correr, e pra bem longe. Porque se eu te achar você não vai ter pra onde fugir.

Larguei seu pescoço e ele puxou uma enorme quantidade de ar. Seu pescoço tinha a marca de minha mão em um forte tom de vermelho. Seu exército me olhava boquiaberto.

- Escutem todos! Vários de vocês me viram em ação na invasão vocês se lembram?! - fiz minha voz se elevar para chegar a todos os ouvidos.

- Sim! - responderam em coro.

- Ótimo! Mas vocês não me viram em pleno combate como um de vocês. Apenas agindo com o propósito de acabar com a arma adversária. Certo?

- Certo!

- Infelizmente isso não lhes dá motivos pra confiar em mim como líder, ou mesmo como uma de suas companheiras em batalha. Portanto, eu irei convosco pra essa luta. Eu irei convosco pra ganhar seu respeito! Porque confiança é algo que se conquista, e eu quero um exército que confie em mim, e não que me veja como uma fedelha metida a heroína! A partir de hoje, sou um de vocês, e com vocês estarei pelo bem da cidade. Por Trynie!

- Por Trynie! - eles gritaram e levantaram as lanças e espadas.

O general do exército disse que sairiam dentro de meia hora. Encontrei meu grupo e comecei a me preparar pra partida enquanto eles falavam em meus ouvidos.

- O que você foi fazer? Deveríamos ter ido embora daqui! - raymond passava a mão no cabelo aflito.

- Acha que eu fiz tudo isso a toa tio? Toda essa viagem, toda essa batalha, pra ele dizer que nós salvamos a cidade porque quisemos, e não nos devia nada? Eu não sai da vila dos lobos pra cá pra ser feita de otária.

- Mesmo assim Sam! Deveria saber quando se perde. Você havia perdido essa e a gente não pode ganhar todas.

- Lucian não me diga o que você acha ou não acha que eu deveria fazer. Eu faço a droga que eu quiser. - o encaro desafiante, ele se mantém irredutível.

- A menos que coloque a própria vida em risco. - ele me responde segurando meus braços.

- A vida é minha e eu arrisco ela quantas vezes quiser. - me desvencilho de suas mãos.

- Ele tem razão Sam! Isso é loucura! Deixe-os, vamos usar o que temos, os lobos, e seguir com eles.

- NÃO! Caramba eu não coloquei vocês nisso. Fiquem aqui, desfrutem do palácio. Mas eu não nasci pra viver com medo. Eu vou ter a confiança e o respeito de meus soldados. Mesmo que isso me custe mais algumas cicatrizes. - termino de pegar meu armamento.

- Então nós também vamos!

- Não vão não. Preciso que caso tudo dê errado vocês assumam o controle. Comigo morta, não há como ressuscitar Agnes, mas os ataques já começaram, e duvido que parem, mesmo com minha morte.

Eles assentem e com um ar derrotado saem do quarto, menos Lucian, que me barra quando estou pra sair.

- Sai da frente Lucian.

- Não. Não posso deixar você fazer isso.

- Você não tem que deixar nada. Você não manda em mim. - Novamente nossos olhares se cruzam, desafiando um ao outro.

- Isso é quase suicida.

- Eu vou enfrentar um exército de bruxas negras e vampiros que é bem maior por sinal do que um covil Orc.

- Mas...

- Não tem mas. Não faz nem sentido seu argumento. - tento o empurrar pra passar, mas ele sugura meus braços, me virando e me prendendo de costas na parede.

- Ah faz sim. O sentido é que eu não quero te perder. - ele sussurra.

- Nós não temos nada. Não tem que se angustiar com isso.

- Temos sim temos nossa amizade. Mesmo que um tanto estranha e com uma certa peculiaridade. E eu não quero perder minha amiga.

- E quem disse que vai? Eu sei me cuidar.

- Não tenho dúvidas disso. Mas só por garantia, eu também vou - abro a boca pra protestar, mas ele me impede colando a sua na minha. Empurro ele pra longe que me olha com um sorriso esperto - E não há nada que me faça ficar aqui. Vamos?

Sabendo que perdi, apenas suspiro contrariada e seguimos para perto dos soldados.


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