Capítulo 4

Cheguei à escola já preparada para ficar sozinha. No dia anterior Beatriz havia me dito que faltaria e até então ela era minha única companhia.

Entrei na sala da professora Odete e encontrei algumas pessoas lá. Ainda faltavam alguns minutos para a aula começar. Derick estava em seu típico lugar, distante como sempre.

Depois do que aconteceu no banheiro feminino, eu mantive certa distância dos lugares mais arejados da sala e, também, fiquei mais paranoica. Passei a sentir a sensação de estar sendo observada. No entanto, não encontrei um alguém suspeito.

Caminhei para os fundos e joguei a mochila perto da carteira encostada na segunda janela - onde havia uma garota sentada -, dois lugares a frente.

- Não vejo o desafiando mais. - Reconheci a voz.

- E , que eu saiba, não te conheço. - Sorri, sentando-me, ainda sem olhá-lo.

Para minha surpresa, o garoto dos olhos verdes gargalhou, o que me fez observar de esguelha.

- Ela é afiada. - Semicerrou os olhos.

Eu apenas dei um sorriso amarelo e endireitei-me no assento.

- Eu também não te conheço e, mesmo assim, estamos conversando. - Murmurou, seu hálito soprando em meu ouvido.

Aonde está essa professora que não chega?

- Eu sou a garota novata, enxerida. Me surpreende um pouco que não saiba meu nome. - Comentei, voltando a olhá-lo. Pelo que notei, ali eu era conhecida como a doida que inventou de se meter com quem não devia.

Um sorriso maroto foi a única resposta momentânea que consegui.

- Me chamo Nathan.

- Kiara. - Tentei soar amigável. Ele poderia ser legal.

Cortando qualquer tentativa de prolongar a conversa, a professora iniciou a aula. A todo momento Nathan cochichava algo sobre a aula, fazendo-me rir. Assim, num instante, a aula chegou ao fim.

- Ele te ameaçou ou o quê? - Brincou.

- Quem? - Indaguei.

- Frederick. - Apontou na direção dele.

Frederick?

Para minha surpresa, Derick não estava desligado, como costumeiramente ficava nas aulas. Ele olhava fixamente para algo à sua frente e parecia concentrado.

- Hmm...

- E então? - Nathan insistiu com um olhar de expectativa.

Sorri um pouco incomodada com sua persistência.

- Fizemos um acordo de paz.

- São amigos? - Indagou.

- Nathan. - Aquela voz me deixou tensa.

Algo soava estranho.

Com um caderno em mãos e o olhar mais inexpressivo que já vira, Derick estava parado ao meu lado.

- Davi quer falar contigo. - Suas palavras pareciam mais uma ordem que um recado.
Eu estava perdendo algo ali, tinha certeza daquilo. 

Os dois se encaravam, ambos sérios.

- Sobre o quê? - Nathan perguntou.

Derick arqueou uma sobrancelha. Ele aparentava estar impaciente.

Nathan suspirou.

- Okay. - Disse.

Pegando seu material, Nathan levantou e, com um último olhar retribuído por Derick, foi embora.

- Até mais Kiara. - Gritou, já na porta.

Um estranho silêncio se formou naquela sala. Não ousaria olhar para Derick, tinha receio de que ele descontasse sua impaciência em mim.

- Não vai para a aula? - Sua voz estava suave, completamente diferente de segundos atrás.

Arrisquei espiar. Ele estava normal. Não o Derick frio, mas um Derick relaxado.

- Ahn... - recuperei-me - não. É apenas Educação Física.

- Exato. - Ele pareceu refletir e, por fim, encarou-me com uma sobrancelha arqueada e um quase sorriso.

- Eu meio que tenho alergia à quadra. - Expliquei. Uma careta se formou em meu rosto.

Derick deixou escapar uma risada, mais natural que irônica.

- Claro que tem.

Abri a boca para protestar.

- Quero te mostrar um lugar. - Murmurou, com um aparente acanhamento.

Seus olhos transmitiam indecisão, brilhavam.

- Me levará para participar da conversa com esse tal de Davi? - Brinquei.

Ele apenas sorriu, relaxando, e balançou a cabeça.

Sem pedir permissão, Derick pegou minha mochila e pôs seu caderno dentro junto com meus materiais, fechou-a e ajustou ao ombro direito.

- Vamos lá, princesinha aventureira.

Naquele dia Derick parecia estar de bom humor. Isso até chegarmos ao corredor.

Novamente lá estava o garoto-icebarg...

- Por quê você é assim?

Parecendo se desligar de qualquer linha de pensamento, ele encarou-me de canto de olho.

- Assim como?

- Tão... - hesitei - bipolar.

Seus risos ecoaram pelo corredor, chamando atenção dos poucos alunos que tentavam chegar às suas aulas a tempo.

Eu gostava disso: ele relaxado. Era diferente, um diferente bom. Ele praticamente se tornava outra pessoa.

- Não sou bipolar. - Defendeu-se, de repente seu sorriso murchando.

E mais uma vez lá estava ele: cara amarrada, postura ereta, tenso.

- Derick.

Sobressaltei.

Não notei a aproximação de alguém. Devia ter o notado, principalmente por tê-lo visto segundos antes.

- Tomás. - Cumprimentou.

Parei um pouco mais atrás e percebi que, discretamente, Derick tentou prostrar-se a minha frente.

- Resolveu? - Perguntou.

Cruzei os braços e passei a encarar o chão, sentindo-me estranha por ouvir conversas alheias.

- Sim, está quase tudo resolvido. - O tal do Tomás murmurou.

- E o que ainda falta? - Derick protestou.

- Isso não é mais conosco cara. - Escutei uns barulhos, briga, e protestos da parte de Derick. - Relaxa.

O silêncio que instalou-se me fez balançar entre os calcanhares e pontas dos pés.

- Kiara? - Sua voz estava mais suave, encorajei-me a finalmente levantar a cabeça.

Seu cabelo foi a primeira coisa a qual reparei. Ele estava bagunçado, porém mais natural.

Esperei ele se pronunciar, mas ele ficou calado.

Meu olhar foi para o seu amigo, Tomás, antes de voltar para ele novamente. Tomei coragem para falar algo.

- Precisa ir? - Indaguei. Minha voz saiu dengosa.

Derick riu. Uma risada que sacudiu até seu amigo que o abraçava de lado. Era gostosa de ouvir.

- Não. Continuarei carregando sua mochila cheia de chumbo, não se preocupe. - Brincou.

Tomás pigarreou e Derick revirou os olhos.

- Kiara, esse é Tomás - ele prostrou-se entre mim e o rapaz, sem bloquear a visão um do outro. - Tomás, está é Kiara.

- É ela. - Seu sorriso foi um tanto malicioso. - Nome interessante.

Eu apenas lancei um sorriso envergonhado, olhando para Derick rapidamente em busca de respostas para aquele comentário.

- Ahn... Nós estávamos indo lá em cima. - Derick explicou.

- Ah... - o sorriso de Tomás foi claramente malicioso. - Tudo bem então.

Com um aceno, Tomás tomou o caminho que fizemos.

- Qualquer coisa me chama. - Derick solicitou.

Em silêncio, esperamos Tomás sumir ao virar o primeiro corredor à direita para retornarmos nosso caminho.

- E então? Qual o problema? - Perguntei.

- Estamos fazendo um trabalho. Seminário, na verdade. - Explicou.

- Me refiro à conversa antes do Tomás. - Tentei esclarecer.

Por um momento ele ficou confuso, numa carranca fechada. Torci para que recuperasse o assunto no qual estávamos falando, queria aquela resposta, entendê-lo. Mas graças ao bom Deus ele se lembrou.

- Ah, sim... - murmurou - é preciso.

Seu sorriso se fechou, mas ele ainda estava relaxado. 

Isso era bom. Eu ainda não tinha cruzado o limite.

Parecendo um pouco pensativo, Derick jogou alguns fios que atrapalhavam sua visão, no entanto eles voltaram.

- Está bonito. - Murmurei.

Ele bufou.

- Estou parecendo um g...

- Qual o problema? - Interrompi, meu tom saiu com um toque de ofensa.

- Nada. Não tenho problema com isso, nem... - engoliu em seco - nada do tipo. Eu só... - Hesitando em falar, Derick passou novamente a mão livre pelos cabelos que, dessa vez, ficaram onde ele deixara. - Estava me referindo ao corte e... Sei lá Kiara. - Bufou.

Permaneci calada. Já ele olhava para o teto esperando uma luz mágica aparecer para clarear sua mente.

- Desculpe se te ofendi de qualquer modo. - Suas palavras saíram baixas e lentas. Ele estava escolhendo as palavras. - Eu não tenho nada contra os homossexuais, quer dizer... - suspirou - eu não sou homofóbico, Kiara. E me desculpe se eu passei essa impressão.

Suspirei, ainda estava um pouco decepcionada com sua atitude. Eu não esperava esse tipo de atitude dele.

Se é que eu posso esperar algo...

Esse é um assunto complicado de se abordar hoje em dia. Um campo minado. Talvez não pelo assunto ou pessoas, mas pela tolerância.

Pelo menos não disse que não era homofóbico por ter amigos gays.

- Seu cabelo não está feio e nem te deixa com uma imagem afeminada, se é essa sua preocupação. - Observei-lhe rapidamente de rabo-de-olho. Ele estava um pouco tenso. - Talvez se deixar ele crescer um pouco mais... - sorri e dei de ombros.

Derick olhou-me, surpreso pela minha mudança repentina de humor, e sorriu.

- Por que não corta? - Perguntei. Eu podia perguntar isso, não é?

Ele suspirou, seus ombros relaxando.

- Eu tenho uma relação de amor e ódio com esse cabelo. As vezes quero deixar crescer, outras quero raspar de vez. - Ele me observou rapidamente de rabo de olho e voltou a olhar para frente. - Era bem mais fácil quando ele era curto.

Tentei imaginá-lo com o cabelo curto, mas nenhuma imagem concreta me veio à mente.

- Vem, vamos. - Inclinou a cabeça e virou a direita.

Imediatamente reconheci o lugar e fiquei estancada ao pé das escadas. Ele também parou, dois degraus acima.

- Não te levarei para participar da tal conversa, Kiara. - Assegurou-me. - Calma.

- Estou calma. - Afirmei enquanto, lentamente, subia os degraus, passando a sua frente. - Apenas não gosto dessas escadas.

Ainda ouvi o barulho de alguns risos dele até que, pouco a pouco, o silêncio se fez presente e até o som de seus tênis batendo no chão ficaram mais silenciosos em meio ao eco. No alto da escadaria novamente havia murmúrios de conversas, porém não deu tempo de distinguir de onde vinha.

Puxei uma quantidade excessiva de ar quando senti algo agarrar no meu pulso. Era apenas Derick: com os olhos arregalados e a outra mão estendida, como se estivesse preparado para tentar me calar.

Com um aceno de cabeça, ele guiou-me para o corredor à direita. Soltou-me apenas quando subimos mais alguns degraus que estavam atrás de uma porta escondida.
Me vi em uma espécie de terraço, uma laje, não sei. Lá de cima podíamos ver até a minha casa. A roda gigante do parque que haviam montado perto do centro da cidade, a oeste; e, a leste, - fiquei boquiaberta com aquilo - a rodovia e, mais atrás, várias montanhas completavam a paisagem.

- Acho que você gostou. - Derick comentou, me puxando para nos sentarmos em cima de um tipo de caixa de concreto feito para a ventilação do ar-condicionado.

Mais uma vez passei a observar as casas lá embaixo e novamente achei a minha.

- Está vendo aquela casa ali? - Apontei, meu dedo quase cobrindo-a. - Onde o carteiro está.

- É a sua casa?

Balancei a cabeça.

- A verde ao lado que é. - Sorri.

As sobrancelhas de Derick franziram, porém, ele acabou sorrindo enquanto olhava o local apontado.

- A que tem um balanço no quintal?

Olhei-o espantada.

- Tem uma boa visão. - Elogiei.

- Ele parece não ser usado há um tempão. - Comentou.

De fato, não era. Há quase dois anos aquele balanço não vê gente.

- É... - Murmurei.

- E por que não vende? - Perguntou, ainda distraído. - Daria um bom dinheiro.

- Ele é uma boa lembrança. - Sorri, a umidade em meus olhos embaçando minha visão.

Pus a cabeça entre os joelhos e esperei a sensação passar. Porém, apenas piorou. 

As lágrimas que eu tanto lutava para segurar saíram, silenciosas e quentes em contato com minha pele resfriada do vento gélido que batia. 

Minha garganta doía, não queria chorar.

O vento bateu em meus cabelos e um feixe de luz entrou em meu pequeno esconderijo. Logo percebi que não havia sido apenas o vento.

Ele me olhava com os olhos arregalados, como uma criança que vê alguém chorar e não sabe o que fazer. Tinham um estranho brilho e, quando percebeu que eu realmente chorava, olhou para algum ponto acima, fechou os olhos e, quando os abriu, estava mais delicados que nunca. Derick descruzou os meus braços e, delicadamente, tombou minha cabeça - até encostar em seu ombro -, passando o braço por minhas costas.

- Desculpe. - Sussurrou.

Eu apenas me encolhi para mais perto dele e deixei as lágrimas rolarem. Alguns soluços escapavam de minha boca, mas Derick não pareceu se importar.

Ele esticou minhas pernas, as apoiou em sua perna direita e me abraçou. Sua mão acariciava meus cabelos e ele se mantinha calado.

Havia um tempo que não tocava nesse assunto, nem nada relacionado a ele. Era algo que eu considerava recente. Dói muito ainda. 

O escape da minha mãe foi o trabalho, o meu foi a comida. Descontava tudo em comida e engordei, porém no fim do ano passado resolvi tentar me sentir bonita. Tentei emagrecer. Mas, ainda me vejo feia e gorda. Por mais que eu não coma a minha imagem continua a mesma.

Desencostei minha cabeça de seu ombro - lá havia uma mancha molhada -, mas mantive a cabeça baixa.

- É aqui que venho na maior parte das vezes que não estou nas aulas. - Murmurou

Levantei a cabeça e vi que ele encarava algum ponto no horizonte. Seu braço ainda se mantinha em volta de mim e ele não aparentou notar ou se preocupar com tal ato. 

- É um lugar bom para pensar e relaxar um pouco.

Suspirei.

Era mesmo...

- Desculpe por ter feito você chorar. Não foi minha intenção.

Eu balancei a cabeça.

- Eu quem peço desculpas. Molhei sua camisa toda.

Eu sorri, ainda com algumas lágrimas rolando, e tentei diminuir a mancha que tinha se formado em sua camisa.

A mancha ao invés de diminuir se espalhou mais. Isso me deixou nervosa e o nervosismo causou mais choro.

Me virei para procurar em minha mochila os lenços de papel que eu sabia que tinha.

- Kiara...

- Um minuto. Eu vou te ajudar a tirar essa mancha. - Funguei.

- Kiara, não precisa.

- Cadê? Está por aqui. - Minha voz saiu num chiado. - Está por aqui.

- Kiara!

Parei.

Por quê eu estava tão abalada? 

Minha fase de luto já passou. Não há mais porque estar assim.

Mas, apesar desses pensamentos, lá estava eu chorando por não estar conseguindo encontrar lenços de papel para limpar a mancha que eu mesma criei.

- Me desculpe. - Murmurei.

- Não se desculpe. - Ele respondeu rapidamente.

Senti sua mão em meu maxilar e me virei um tanto surpresa. Derick agora estava em pé ao meu lado. Com uma mão, segurou meu maxilar próximo a ele e com outra limpou o rastros que as novas lágrimas formaram.

- Não chore, hm? - Derick limpou novamente com as costas das mãos as lágrimas. - Não chore. - Sussurrou.

Passamos um tempo assim: Derick vez ou outra mexia em meu cabelo, ou então passava os polegares em minhas bochechas, se certificando que não estavam mais molhadas. Certa hora, ele se afastou e manteve distante.

Respirei fundo, encarando-o.

- Por que me trouxe aqui? - Perguntei.

Ele se virou e me encarou. Seu rosto estava sério.

- Você é  - ele olhou para algum ponto aleatório, parecendo estar sem jeito - uma das poucas pessoas que me deixa à vontade. - Sorriu, um sorriso duro.

Virei o rosto, olhando para o parque, longe de seus olhos.

Seria isso mesmo?

Apesar de suas palavras me deixarem um tanto abalada, sabia que tinha algo. Não era possível que eu estava lá somente por aquilo.

Então, finalmente, Derick soltou uma forte lufada de ar.

- Preciso que se afaste de Nathan.

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