Aluno Relutante

Fim de semana significava toda família Novaes em casa, mas não necessariamente unida nela. A mãe fazia as tarefas domésticas e comida, que ela acomodava no freezer da geladeira para consumirem na semana, antes de se perder nos livros para preparação de suas aulas. O padrasto revisava documentos no pequeno escritório ao lado da sala, com a porta fechada para não ser incomodado, e saia somente para comer ou alguma necessidade. Paulinho jogando vídeo game no quarto ou saindo para o futebol na rua com os amigos. E ela, Natasha, lendo um livro, ouvindo fitas cassete com suas músicas favoritas, que gravava do rádio ou saindo para passear com as amigas. Esse último foi sua escolha para o domingo, as amigas sendo Samantha e as gêmeas Val e Júlia.

Passear, significava andar na pracinha, bater pernas nas lojas da cidade ou parar na lanchonete Morae's, às vezes todas as opções, como foi o caso. Tinham passado a manhã andando, conversando e olhando bobagens nas prateleiras, e no fim da tarde terminaram na lanchonete, Sam e Naty de um lado da mesa, as gêmeas de frente para elas.

Rudá era uma cidade pequena, pacata e monótona, o que para Natasha era perfeito. Gostava da segurança, da falta de novidades e ter tudo sobre controle. Lógico que isso significava acostuma-se aos mesmos problemas, como, por exemplo, a estupidez dos projetos de homem da cidade.

— E ai, Fera! — saudou Pedro sentando ao seu lado, o braço envolvendo os ombros de Natasha. — Como anda a vida?

Enojada, tanto com a pessoa quanto com o toque inconveniente, Naty segurou com a ponta dos dedos as mãos dele e desfez o enlace.

— Estava boa até sua chegada — respondeu mordaz.

— Naty! — disse Julia com repreensão evidente no tom de voz e na expressão indignada, antes de volta-se hesitante para o namorado. — Desculpe-me!

Naty revirou os olhos. Não entendia a mania de Júlia de ser submissa ao babaca do namorado, sempre se desculpando e rastejando aos pés dele.

— Não se preocupe, amor, sei que sua amiga é indomável — ele disse com aquele sorrisinho debochado que causava ânsia de vômito em Naty, os olhos fitando-a intensamente. — Ou estou enganado? Alguém faz esse seu coração bater mais forte, Fera?

Era óbvio que o namorado de Júlia zombava dela, não tinha dúvida, assim como o motivo era a constante vontade de atormenta-la, de mostrar-se superior. Não entendia o que a amiga enxergara de bom nele, ela merecia alguém melhor. Qualquer garota merecia mais do que Pedro tinha a oferecer como namorado, até como ser humano. Por isso não titubeou ao responder sarcástica:

— Claro que sim — disse com falsa doçura, sustentando nos olhos verdes todo o desprezo que sentia por ele. — A vontade de esfregar a sua cara no chão.

— Naty! Por Deus! — indignou-se Júlia novamente. — Não pode falar assim com o meu namorado.

— Tanto posso que falei — revidou erguendo-se trêmula de raiva. — Sai da frente! — pediu para Pedro, desejando ir para casa antes que sua amizade com Júlia acabasse. Se ouvisse mais um "Fera" saindo dos lábios imundos do namorado dela não respondia por si.

Pedro se esticou no lugar, os lábios finos alargando-se em um sorriso abusado.

— Só se pedir com jeitinho, Fera.

O "jeitinho" saiu rápido, mas não do jeito que o rapaz queria. Natasha agarrou seu copo de refrigerante e jogou o resto da bebida na cabeça oca dele. Teria coberto Pedro de ainda mais bebida, mas Samantha, cujo copo estava próximo, prevendo sua intenção agarrou o refrigerante e o afastou.

Surpreso por ser atingido pela bebida gelada, Pedro ergueu-se sacudindo-se, as mãos afastando o líquido pegajoso dos olhos.

— Sua maldita maluca!

Ignorando a ofensa, Natasha aproveitou que Pedro saíra da sua frente e moveu-se para fora de seu lugar, apressando-se para sair da lanchonete. No entanto, após dois passos para longe da mesa que ocupava, seu braço foi agarrado com tamanha força que deixaria marcas na pele.

— Peça desculpas! — Pedro exigiu entredentes, os olhos castanhos faiscantes de raiva.

— Me solta, babaca! — mandou puxando o braço, o que fez o aperto aumentar e um grito de dor sair de seus lábios.

— Solta ela, Pedro! — pediram Val e Sam.

Para ajudar a amiga, Samantha levantando-se e agarrou o braço que prendia Naty na esperança de afasta-lo. Foi rudemente repelida e empurrada de volta ao lugar pela outra mão do rapaz.

— Primeiro a Fera vai ter que se desculpar — repetiu friamente, os dedos cravados no braço da ruiva, apertando-se ainda mais conforme a jovem debatia-se para se soltar.

— Nem que implore. Me solta agora.

— Ou o que? — ele desafiou.

— Amor...

— Cala a boca! — Pedro ordenou para Júlia, que imediatamente cerrou os lábios e abaixou a cabeça. — Peça desculpas, Fera!

Como resposta recebeu uma cusparada na cara.

O que aconteceu em seguida foi uma sequência de surpresas para Naty. Primeiro Pedro soltou um palavrão, depois ergueu a mão para claramente esbofeteá-la. Naty fechou os olhos assustada, antevendo a dor que viria, mas no lugar disso os dedos dele por fim soltaram seu braço.

— Quando uma garota pede para solta-la, você a solta.

A voz indignada de William a fez abrir os olhos, arregalando-se ao vê-lo segurando Pedro pela camisa.

— Calma, Will! Só estávamos conversando — disse Pedro erguendo as mãos em defesa, o sorriso frio e cínico de volta.

Willi o largou com agressividade. Pedro bambeou alguns passos para trás, mas logo se endireitou sustentando o ar debochado.

Pela primeira vez, Naty observava tudo incerta de como agir. Pelo canto do olho percebeu que Fernando também entrara na lanchonete. Viu Júlia correr para o lado do namorado e ele a afastar antes de sair do Morae's, sendo seguido pela namorada dizendo mil desculpas sem sentido. Sam e Val foram para seu lado e perguntavam como estava, mas Naty não falava nada tamanho seu assombro. De todos os cenários inimagináveis, aquele era o mais absurdo de todos. E acontecera. William a defendera.

— Você está bem? — Willi lhe perguntou preocupado.

O olhar de piedade dele teve o efeito de desperta-la. Não precisava disso, nunca precisara. Sem responder, marchou para fora da lanchonete, como queria desde o principio.

Confuso com a atitude dela, Willi a seguiu.

— Ei, Naty...!

Antecipou-se e se colocou a frente da jovem. Surpresa, ela o encarou. Pela primeira vez desde que conhecia Naty, Willi ficou sem fala ao notar os olhos verdes úmidos, um instante antes dela abaixar a cabeça com vergonha.

Ele viu o restante dos amigos se aproximando e, imaginando que a última coisa que Naty desejava era que mais alguém percebesse que estava a ponto de chorar, fez um gesto para recuarem.

— Acompanharei a Naty até em casa — disse bem humorado. — Se divirtam sem a gente.

— Não preciso de acompanhantes — a ouviu resmungar afastando-se depressa.

— Vamos para o mesmo lado — justificou afundando as mãos no bolso e colocando-se ao lado dela.

— Não, não vamos. Sua casa é do outro lado.

— Digamos que gosto de fazer caminhadas longas, bem longas — brincou, mas ela não achou graça e apressou ainda mais o passo.

Andaram em silêncio até a metade da pracinha, então, certa de não serem seguidos pelos outros amigos, com poucas pessoas ao redor deles e refeita do quase ataque de choro, Naty voltou-se para Willi.

— Posso seguir sozinha.

— Eu sei.

Ela continuou a andar. Ele continuou a segui-la. E novamente ela parou, dessa vez plantando as mãos de cada lado da cintura.

— Não preciso de uma sombra, guarda-costas ou sei lá o que você pensa que é.

— Ótimo! Odiaria ser rebaixado a sombra; guarda-costas é um tanto perigoso; e "sei lá" impreciso.

Exasperada com as bobeiras de William, Naty revirou os olhos e seguiu em frente, embora com passo lento.

— Amigo — ele anunciou alto, andando de frente para ela, perigosamente de costas para o caminho que seguiam. — Considero-me seu amigo, e aluno relutante — acrescentou conseguindo um sorriso dela, mesmo que carregado de sarcasmo.

— Pelo menos admiti que não se concentra nas aulas.

— Eu tento... É que tenho outras coisas na cabeça — murmurou posicionando-se ao lado dela.

— As esqueça.

Willi bufou. Como se fosse fácil parar de pensar no dinheiro que daria adeus dali quatro meses.

— Esse projeto é muito importante pra você, né? — lamentou desanimado.

— É o início da minha carreira como professora de história.

— Esse é meu último ano escolar e ainda nem sei o que quero fazer ano que vem, mas você já tem uma carreira planejada — comentou colocando as mãos atrás da cabeça. — Queria ter tamanho foco.

— Sou filha de professora, enteada do diretor, cresci em meio aos livros — justificou.

— Minha mãe é dona de casa, meu pai dono de supermercado, mas não me vejo fazendo nenhuma dessas funções.

— E como você se vê daqui, digamos, cinco anos?

Willi pensou sobre o assunto por longos minutos, o tempo suficiente para Naty caminhar até um dos bancos e sentarem. Tinha desistido de ir direto para casa. Não por gostar da companhia, mas por estar um lindo dia, seria péssimo passar o resto dele trancada em casa.

Natasha decidiu refazer a pergunta.

— O que você gosta de fazer?

Dessa vez foi mais fácil para Willi responder.

— Esportes. Mas não quero ser jogador de basquete — acrescentou. — Me divirto com o grupo, mas não quero seguir nessa profissão.

— Pode ser professor também, de educação física, ou algo na área de esportes — indicou, logo acrescentando: — Para isso, terá de se empenhar nos estudos, entrar em uma faculdade, estudar ainda mais.

Willi jogou o corpo para trás no banco, pensativo fixou seus olhos por alguns instantes no topo da árvore acima deles e depois se voltou para Naty.

— Tendo você como professora creio que consigo estudar isso tudo.

Naty corou com o que considerava um elogio, ajeitou os óculos, respirou fundo - exigindo mentalmente para seu coração não se animar tanto - e então sorriu.

— Pode contar comigo.

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