Que eles se explodam


O ar lhe escapava junto da tristeza, aos poucos. À sua frente, apenas a imensidão alaranjada. Um respiro potente, súbito, esganou o pulmão e lançou o jato vermelho que lhe pintou o sorriso. A sinfonia de explosões invadia o tímpano que ainda funcionava. Nébula negra céu acima. O clarão das chamas refletido na fumaça. Poesia. Felicidade. Satisfação.

- Esse filho da puta tá rindo? Bate mais nesse terroristazinho do caralho!

O martelo mental, repetitivo, parecia tolo. Impraticável! "Essas coisas não têm jeito!". Juntou fios de esperança, depositando as sobras da carvoaria na lata vazia. Dia após dia. Saía o feijão com carne de galinha, direto para o estômago fraco, entravam os detritos negros da promessa falsa de prgresso.

- Tira ele do gramado! Leva pro camburão!

Vez por vez, abandonava a penumbra do subsolo e se via nas trevas da superfície. Uma vida entre as lâmpadas das profundezas e o cinismo da lua, refletindo traços de um astro que já não via mais.

Dor. Sono. Cansaço. Na velha barraca, esmagou os pequenos pedaços no pilão, refinando o fruto do desvio. Mais um depósito. Mais uma sacola. A contar, pelo menos, já havia aprendido. Orgulhoso, repetiu o total de sacos algumas vezes para não esquecer. Mais cansaço. Esvaziou bexiga e intestino na vala que cultivava com afinco. "Valiosa!". Lampião na mão. Espiou a massa formada pela decomposição. Pombos, patos, cavalos, capivaras, quatis, bois, gambás, mijo e bosta. Mais mijo. Muita bosta.

- O bicho tá morrendo, mas antes vai pintar meu cassetete de marrom! Arranca as calças desse bosta!

Da dinamite, desistiu. Muito controle na mina. Já o resto, excede, ninguém dá falta. Na ida sem epitáfio do velho moribundo, o sábio do canteiro, a luz se fez na mente, graças à memória trazida pela comoção. O ancião não era muito amigo, mas a visão do cadáver não lhe saía da mente. Todos ao redor do defunto. Capacetes nas mãos. Rostos negros, em pó de cansaço, cobertos pelo negro pó que invadia seus peitos. Viu a espuma enegrecida secando no canto dos lábios murchos. Recordou de quando aquela abertura desdentada dividiu as histórias com todos. Falou do que é possível fazer com esses malditos e poeirentos detritos negros. Além de matar o pulmão, faz muito mais. O velho era um dos poucos que sabia ler. Impunha respeito e ninguém o desafiava, mesmo quando provocador, sob efeito de uma coragem que só a cachaça lhe daria. "Coragem!". Só enchendo a cara pra encarar aquele lugar!

- Agora não tá rindo mais, né? Preto safado! Segura a madeirada!

Proporção. Percentual. Fração. Nada dessas palavras era entendido, mas sabia contar. Forçou-se a aprender. Se contasse desse até tal, tinha tanto. Era o que bastava para a mistura. "Como o velho disse!".

- Ta respirando ainda? Tem que virar presunto logo! Bate mais nesse puto! Vai virar notinha fora do jogo, já já! Sem caixão! Sem obituário!

Vala. Putrefação. Urina. Adubo. Salitre! Em caixas, o composto foi sendo acumulado. Mais uma vez o sorriso orgulhoso de quem visitou o mundo dos números. Lembrou do velho e tentou recordar da palavra. Era "proporção", mas em sua cabeça virou "monte". De monte em monte, daqui até tanto já tinha tal.

As amarguras necessárias para o terceiro item não lhe deram orgulho. Cristão que era, caiu na ironia de pedir perdão a Deus pelo que ainda faria, usando a própria escritura sagrada de referência para não se esquecer o nome do composto: "Então o Senhor fez chover enxofre e fogo, do Senhor desde os céus". A esse, já denominou "material de trabalho do Altíssimo", santificando sua própria cruzada. Recitava o trecho da Gênese para não esquecer. O verbo era o início e, logo, de onde vinha sua memória. "Enxofre!".

De início, justificou para si mesmo o meio contraventor da investida, mentalmente se convencendo de que o mal que lhe cercava também era o mal dos outros. Após muitos respiros amaldiçoados pela sílica mortal, sua mente transou com a inconsequência, dando luz à anarquia, sem mais arranjar desculpas para seu Senhor. Sentiu-se impactado demais pela vida. Da vida lhe restou o pacto com o inominável. "Pros diabos com essa merda! Vou pegar essa bagaça na força!".

O jumento foi amarrado à árvore. Facão na mão. Pelos fundos, tascou a lâmina no cadeado por três vezes, sem sucesso. Não soube se por medo ou raiva, mas na quarta peixeirada o ímpeto pesou na mão, faiscando no metal e lascando a tranca. Nos olhos, já se via uma chama de boas intenções malignas, vislumbrando o acesso para o recurso que lhe faltava. "Que eles se explodam!".

- Capitão! O que está acontecendo nesse camburão? Pára com essa sangueira toda, seu doente. Que lambança é essa? Trás o infrator para a ambulância. A tevê está aqui, retardado!

Foi tomado pelas lágrimas muitas vezes, se autoflagelando até sangrar a testa. "Burro! Sou burro! Cabra burro!". Mistura após mistura, não conseguia ao menos uma pequena explosão ou uma chama significativa. Reviveu a dor da infância todas as vezes, a cada insucesso. Viu a sombra de seu progenitor sobre si. "Não sou burro, pai...". Prantos. "Pai... Seu filho de rapariga...". Ainda coçava o calcanhar, por impulso, na altura onde a corrente lhe magoava. Seu sono era sempre breve, muitas vezes desperto pela memória do couro lhe estalando nas costas. "Moleque maldito!". O passado ecoava os insultos, mas não sem recebê-los de volta. "Cabra maldito... Véio maldito".

- Cadê o pé do sujeito? Trás essa porra aqui! Como vou explicar isso? Some, capitão! Vaza daqui!

Num broto de acalanto profundo, veio o dia da medida certa. "Eita, lasqueira!". O pavio conduziu o lamento para longe e explodiu junto com o que conseguiu. "É pólvora!". Emborcou as latas enferrujadas, uma a uma, espalhando o esforço quase mortal ao chão. Aquilo não virou moradia, comida boa, hora com puta, peixeira nova e nem carro velho. O fruto de tanto esforço ficou ali, inflacionando apenas sua vontade de jogar tudo pelos ares. Não era muito, mas de pronto sabia que dava pra negociar uns dias de uso do caminhão. O dono não veria mais seu veículo, mas não sabia e, a essa altura, o sujeito obstinado não se imaginava guardando remorsos. Inclusive, guardaria nada mais na vida.

- O desgraçado acordou!

Para se misturar, foi fácil, embora sua pele preta fosse a única no local. Bastou uma camisa verde e amarela. Cartaz ele não soube fazer, mas falou que na caçamba tinha um presente para o líder maior. Olhou para o alto e viu as duas torres altas. "Pro chorume essa merda! Eu quero é que se exploda!".

- Que filho da puta! O puto me acertou na cabeça...

O sorriso bem intencionado e maligno acompanhou o acender do pavio.

- Corre ali! O capitão foi abatido!

O seu tímpano direito, ainda bom, ouviu o motor rugindo. Alguns se assustaram. O caminhão arrancou. "Vai, desgraça!".

- Nesse momento, nossa equipe de reportagem está se afastando ainda mais das chamas, pois o autor do atentado conseguiu se desvencilhar da polícia e está começando um tiroteio. O momento é de muita tensão.

Prestes a colidir, abandonou o veículo. Um projétil de nove milímetros se alojou em seu ombro. A reação dos seguranças não foi rápida o suficiente para salvar o alvo. Os disparos apenas adiantaram a explosão da carga que lotava a carroceria.

- Ele tá ali, fugindo! Tá pulando num pé só! Saci dos infernos! Cuidado que ele tá armado!

Parachoque. Lataria. Vidro. Muito vidro. Sangue, tripas e terno azul. O impacto, somado à explosão, implodiu as grandes torres, bem como as grandes semi-esferas dos seus lados. Caos. "Quem é o pretinho burro agora, pai? Filho da moléstia!".

Fogo. Fumaça. Mortes. Deitado no gramado, os cassetetes começaram a bater.

- Olha isso, Brasil! A polícia continua procurando o autor do atentado...

Deitado na grama, esvaindo-se na poça vermelha, disparou a voz para o céu. "Me espera aí, velho. Já to chegando e nem o cão vai te proteger...".

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