Capítulo 1 - A descoberta de uma heroína
Para onde foram todas as pessoas boas? E onde está a providência divina? Os desafios encontrados nas ruas são crescentes, mas, definitivamente, não há ninguém disposto a combatê-los. Nenhum salvador das ruas, nenhum cavaleiro de armadura brilhante montado em seu cavalo branco, somente eu, com minha vontade de fogo!
Preciso de um herói, pois já estou cansada de testemunhar tantas injustiças empreendidas por pessoas más, estou cansada de me sentir tão impotente perante a tamanha impunidade! Por muito tempo eu esperei por um herói, até o fim da noite, até desejar um novo amanhecer.
Sendo assim, já que não existem heróis suficientes, decidi me tornar uma heroína, pois sou forte, sou rápida, tenho poderes mágicos e o mais importante, estou disposta a lutar e trazer uma nova luz da manhã.
Um beco escuro e fétido seria o local de estreia da minha atuação como heroína, pois uma mulher era arrastada contra a vontade por um homem até aquele lugar esquecido por todos, exceto pelos ratos oportunistas. Ela estava com um vestido preto parcialmente rasgado, a maquiagem totalmente borrada ao redor dos olhos, indicando suas lágrimas de desespero que vertiam intensamente. Seus gritos reverberaram pelas paredes indiferentes do beco, entusiasmando ainda mais o homem sádico que se sentia poderoso por subjugar uma pessoa mais fraca.
— Os gritos de uma safada! Por que não facilita um pouco as coisas, delicinha? — disse o homem, enquanto beijava o pescoço da mulher indefesa, fazendo-a sentir ainda mais asco por ele. — Até parece que você não queria isso, afinal, estava rebolando feito uma vadia na pista de dança da boate!
— Por favor, me deixe ir! — implorou a vítima, chorosa.
— Talvez eu faça isso, depois de me satisfazer plenamente com você! — respondeu o sujeito, com um sorriso malicioso estampado no rosto, possível de ser visto apenas em meia-luz naquele lugar com iluminação precária.
— Solta ela! — proferi de forma imperativa, trovejando a minha voz através de meus lábios. Havia me postado na entrada do beco para obstruir a única rota de fuga do homem mau, mantendo meus punhos cerrados e rangendo os dentes devido à fúria que ardia em meu âmago.
Ele olhou para trás, surpreso, notavelmente tendo dificuldades de enxergar através da penumbra.
— Quem é você? Outra safada que gostaria de fazer parte da nossa festinha particular? — indagou o agressor, com bastante desdém em sua voz. — Chegue mais perto, quero descobrir se você vale o meu tempo!
A mulher segurada pelo homem aproveitou o momento de distração de seu abusador para morder a mão dele, o que o fez soltá-la por reflexo. Aos tropeços, ela se afastou do agressor para o fundo do beco, apavorada por toda aquela situação.
— Desgraçada! — esbravejou o sujeito, enquanto urrava de dor e segurava sua mão ensanguentada.
Porém, antes que ele pudesse tomar qualquer iniciativa contra a vítima, movi o meu corpo numa investida retilínea, realizando ao encontro dele um chute giratório bastante rápido para não dar margem de reação. Meu pé acertou com grande velocidade a boca do abusador de mulheres, o que fez vários de seus dentes voarem pelo beco. Ele caiu pesadamente no chão, desmaiado.
Depois de abater a grande ameaça, voltei a minha atenção à mulher encolhida no fundo do beco que estava vomitando intensamente, impregnando o lugar com um odor etílico forte mesclado aos cheiros de enzimas digestivas e ácido clorídrico, sendo substâncias comuns de serem expelidas do estômago de alguém que bebeu muito e em seguida passou por uma situação de estresse. Ela olhou surpresa para mim, notando maiores detalhes com a minha proximidade. Meu cabelo liso e curto em estilo chanel — possuindo uma simetria perfeita para alongar o pescoço — que assumira a cor escarlate, emitindo uma luz bruxuleante rubra que se espalhou por todo o beco, o que formava sombras distorcidas. No entanto, apenas as duas mechas frontais que recobriam parcialmente o meu rosto fino possuíam um tom prateado reluzente característico. Em meus olhos, as íris também brilhavam magicamente, como se uma energia fluísse naturalmente num verde-esmeralda vívido. Por fim, minha pele alva também reluzia um tom rosáceo, sendo nítido que um poder místico percorria por todo o meu corpo.
— Por favor, ligue para a polícia e informe que o meliante derrubado tentou abusá-la. — Notei o olhar de preocupação dela voltado para o homem desmaiado mais adiante. — Ele não irá recobrar a consciência tão cedo! A senhorita entendeu a minha orientação? — Esperei a confirmação da mulher que apenas balançou a cabeça de maneira assertiva.
Auxiliei a vítima a se levantar, pois, devido ao nervosismo de quase ter sido estuprada, apresentava as pernas bastante bambas.
— Caso eles perguntem como o sujeito foi derrubado, pode informar que uma pessoa nova está na cidade e totalmente disposta a fazer a diferença! — informei para que a mensagem se difundisse através do boca a boca.
A mulher, ao me avaliar por inteiro, exibiu olhos arregalados e boca entreaberta numa expressão de perplexidade, afinal, eu estava vestida de forma bastante pitoresca: usando na região da cintura um saiote branco tendo detalhes de chamas vermelhas estilizadas em suas bordas recortadas — a peça era fixada em meu corpo por um cinto grosso com uma fivela grande, redonda e dourada com as iniciais "SV" cravadas. Nas pernas trajava uma calça legging preto-fosca bem confortável, joelheiras de couro, botas coturnos tratoradas e grevas com revestimento de placas metálicas dispostas verticalmente por toda a extensão das canelas e presas por uma tira de tecido rígido usada para envolver a parte posterior das pernas. Na parte superior de meu corpo, usava uma túnica branca com os mesmos detalhes de chamas estilizadas — sendo uma peça sem mangas para dar mobilidade aos meus braços, assim como também era aberta na frente, amarrada em um nó logo abaixo de meu busto e deixando desnuda a minha região abdominal. Por baixo da túnica vestia um bustiê branco em tecido com alta compressão e a modelagem de costas nadador, fornecendo firmeza e sustentação aos seios para práticas esportivas. Por fim, o mais peculiar em toda minha indumentária, eram minhas grandes luvas que se estendiam como manoplas pelos antebraços, apresentando filamentos e placas metálicas de revestimento na cor dourada e intercaladas por partes flexíveis que se assemelhavam ao couro, principalmente nas dobras dos dedos para ser possível fechar e abrir as mãos livremente. Tendo ainda na região do dorso da mão, nos nós dos dedos, protuberâncias rígidas que funcionavam como uma soqueira tática para causar danos contundentes aos inimigos.
— Q-quem é você? — ela perguntou, ainda ofegante.
— Eu sou alguém que estará sempre de olho de agora em diante, o meu objetivo é ajudar, como fiz aqui hoje. — Respondi, tacitamente.
— Mas você é tão... Jovem! — observou a mulher, tendo maior oportunidade de se ater aos detalhes de minhas características físicas.
Tentei me afastar para sair de cena, mas a vítima resgatada fez mais uma pergunta.
— Espera! Qual é o seu nome?
Hesitei por alguns segundos, ponderando se deveria responder ou não.
— O meu nome é Shayana Vivens! — respondi animada, apontando para as iniciais "SV" bem chamativas presentes na fivela de meu cinto.
Estava bastante orgulhosa do meu nome de herança alienígena que serviu perfeitamente como a minha alcunha de heroína.
— Sha... Shayana Vivens? — repetiu a mulher, franzindo a testa em clara dúvida se a sua pronúncia estava correta.
— Isso mesmo! — Confirmei.
Após isso, corri na direção oposta à vítima, passando pelo corpo desmaiado do criminoso abatido, para finalmente reunir meus poderes mágicos e decolar do chão com um impulso poderoso que gerou uma forte lufada de ar, seguida de um estampido semelhante a uma trovoada com o meu voo em alta velocidade.
Admito não ter calculado bem a força empreendida na minha decolagem, o que forçou o solo mais do que deveria, formando uma cratera, sendo uma forte evidência de que alguém sobre-humano esteve por ali.
****
Gosto de pensar que sou uma pessoa que projeta cuidados para a vida toda, antecipando situações perigosas, assim como evitar incorrer nos mesmos erros que no passado me trouxeram muito sofrimento. Além disso, eu não acredito em milagres, mas sim no poder do esforço e dedicação em se tornar um agente de mudanças significativas. Portanto, creio no trabalho duro voltado para a realização de um bem maior não egoísta. Realizar através de ações, ao invés de esperar acontecer o melhor, quando claramente tudo ao redor está ruindo moralmente. Tendo tudo isso em vista, dediquei a minha vida noturna aos atos heroicos por toda a cidade, ajudando aqueles que normalmente teriam suas vozes inaudíveis em soturna comunidade. O meu intuito passou a ser criar um símbolo de esperança para as pessoas desacreditadas de que ainda existia justiça no mundo.
No entanto, durante o dia eu tentava seguir com a vida normal e aborrecida de uma estudante que acabou de ingressar no terceiro ano do ensino médio num colégio estadual, sendo uma fachada para meus reais feitos. Mas a minha frenética rotina durante a noite pesava em meus ombros, assim como em minhas pálpebras, fazendo eu dormir durantes as aulas.
— Sasha! Sasha! Sasha Viana!
Os gritos me fizeram acordar de meu sono pesado, em meio a uma poça de saliva na minha carteira escolar e um filete de baba escorrendo pelo canto da boca. Os meus colegas de classe estavam rindo da minha cara amassada de sono e o professor esboçava um olhar furioso voltado para mim: a aluna dorminhoca.
— Presente, professor... — respondi com uma voz embolada, como a de uma pessoa bêbada, o que rendeu várias zombarias escandalosas por parte de meus colegas de classe.
— Sasha babona! Sasha babona! Sasha babona! — eles gritavam em uníssono.
— Ordem, turma! Ordem! — exigiu o professor, impostando a sua voz para toda a classe ouvi-lo bem, o que gradativamente foi cessando o burburinho na sala, mesmo que os olhares ainda recaíssem sobre mim.
— Novamente dormindo durante as aulas, Sasha! — ralhou o professor, lançando-me um olhar reprovador por cima de seus óculos quadrados.
— Desculpe, professor Evandro, eu prometo que isso não irá se repetir! — disse isso tentando parecer convicta, mas eu mesma não acreditava que seria capaz de cumprir com essa promessa.
— Bom, por favor, limpe a sua mesa e depois vá ao banheiro lavar o rosto. Talvez a água gelada a ajude a despertar um pouco! — sugeriu o professor, fechando os olhos e abaixando um pouco seus olhos para massagear as laterais do seu nariz com as pontas dos dedos polegar e indicador.
Limpei a poça de saliva presente em minha mesa com uma toalhinha que guardava na mochila e com a permissão do docente, saí da sala de aula para ir ao banheiro lavar o rosto.
Os corredores do colégio estavam vazios, pois os alunos ainda estavam em aula. Aproveitei aquele breve momento de tranquilidade, andando lentamente e dando um longo suspiro exasperado enquanto pensava na minha vida: Era nítido que eu não estava conseguindo dar conta da rotina escolar, devido à outra rotina noturna de super-heroína. Minha vontade era de abandonar o colégio e dedicar mais do meu tempo para realizar atos heroicos, porém, minha mãe jamais concordaria com isso, assim como a minha melhor — e única — amiga, Rebecca. Até consigo visualizar nitidamente em minha mente o olhar desaprovador delas ao descobrirem que dormi mais uma vez durante a aula.
Somente quando cheguei ao banheiro feminino, algo que fiz me arrastando, pude me observar no grande espelho e perceber o quanto eu estava patética: meu cabelo branco todo bagunçado de um lado, olheiras inchadas e escuras — o que se destacava muito em minha pele albina —, além de apresentar os lábios rachados; ou seja, estava como uma verdadeira zumbi.
Para completar o visual deplorável, minha camisa polo branca — sendo o uniforme do colégio — estava completamente amarrotada, com as golas do avesso e faltando um dos dois botões de fechamento. Esse é o outro lado da moeda de uma vida de super-herói, apresentando o desgaste físico e mental, eliminando qualquer resquício de preocupação com o amor-próprio.
— Parabéns! Tenho feito um ótimo trabalho como Shayana Vivens, a super-heroína noturna que derruba alguns assaltantes, traficantes e estupradores. Porém, como Sasha Viana, tenho feito esse papel deprimente como aluna do terceiro ano do ensino médio que dorme em todas as aulas! — comentei para o meu próprio reflexo com a cara bastante emburrada e espalmando as mãos para esfrega-las nas minhas bochechas e ver se o meu rosto cansado pelo menos ganhasse um pouco mais de cor.
Cor era um problema sério para mim, pois eu não possuía nenhuma devido ao meu distúrbio genético do albinismo, com ausência total de melanina, fazendo com que a minha pele fosse muito branca, assim como apresentar os olhos, cabelos, cílios e demais pelos do corpo extremamente claros. Eu só conseguia ganhar cores mais vívidas com a minha transformação especial.
Em todo caso, não poderia fazer milagres ali quanto ao meu estado deplorável, ao menos, molhei o rosto na pia do banheiro e tentei ajeitar o cabelo como foi possível usando um prendedor.
O som de descarga do vaso sanitário vindo de uma das cabines do banheiro fez eu perceber que não estava sozinha ali, será que a pessoa ouviu o meu desabafo em voz alta?
Olhei apreensiva para a porta fechada da cabine, até ela se abrir e a jovem que estava lá dentro sair furiosa comigo.
— É assim que protege a sua identidade secreta, branquinha, explanando em voz alta no banheiro sobre a sua vida noturna combatendo o crime?
— Ainda bem que é você, Becca! — respondi aliviada para a minha melhor amiga, afinal, ela era a única no colégio que sabia sobre o meu segredo.
— Eu também escutei você falar que anda dormindo em todas as aulas e vendo a sua cara pude constatar que a sua aparência está um lixo! — exclamou Rebecca, fazendo uma expressão exagerada, arregalando bem os olhos e rangendo seus dentes, sendo uma mistura de espanto e raiva, talvez. Ela era bem caricata em suas reações, ao ponto de eu já estar acostumada com as suas caras e bocas.
— Pois é, a transformação rubra está desgastando o meu corpo muito mais do que eu imaginei, além disso, eu quase não estou dormindo ultimamente. O resultado é esse que está vendo com seus olhos esbugalhados, Bequinha! — disse de forma descontraída, ironizando a minha própria desgraça e dando uma voltinha e rebolando os quadris enquanto andava, como se estivesse desfilando para a minha amiga.
— Eu tive todo aquele trabalho para costurar a sua roupa e compor o seu look de heroína com os restos daquela armadura alienígena esquisita, tudo isso para te deixar com uma aparência bem empoderada! Mas é dessa forma que você se apresenta na escola? Assim você joga todo o meu trabalho no lixo! — ralhou minha amiga, com uma nova expressão exagerada franzindo forte a testa e crispando os lábios ao ponto de ficar com um biquinho.
— Eu sei, eu sei, Bequinha, você tem razão, eu sinto muito! — exclamei, enquanto me aproximava o suficiente dela para segurar suas mãos. — Mas podemos conversar melhor sobre isso lá em casa, aqui no banheiro do colégio não é uma boa ideia continuarmos falando sobre nossos segredos heroicos!
Ela subitamente levou a mão direita na própria boca, no intuito de silenciar a si mesma, sendo o seu modo de demonstrar que também falou mais do que deveria.
— Tem razão, Sasha, como a sua preciosa ajudante sou responsável também por resguardar sua identidade secreta! — ela prestou continência para mim, como se eu fosse sua superiora.
— Ai ai, Becca, eu já te disse que não precisa agir assim! — comentei, não conseguindo segurar o riso, pois ela tinha o superpoder de me fazer sorrir à toa. — Você não existe, garota!
— Existo sim, sou bem real! — disse Rebecca, cruzando os braços, fechando os olhos e balançando a cabeça de maneira assertiva por um breve momento. Após isso, abriu rapidamente os olhos e descruzou os braços para apoiar as mãos em meus ombros, exibindo um sorriso malicioso. — O que me faz lembrar que além de ser a sua amiga e ajudante de heroína, também sou a sua conselheira amorosa! Portanto, escute com atenção... — Ela aproximou a boca de meu ouvido para sussurrar. — Se continuar indo para a escola com essa aparência de derrotada, irá afastar todos os garotos de você e será mais um ano na solteirice!
— Eu não ligo para isso! — exclamei, revirando os olhos. — Para mim já é o bastante ter você ao meu lado... — Hesitei em continuar falando, pois comecei a sentir meu rosto ficar muito quente, principalmente com a proximidade de Rebecca. Só conseguia me concentrar no quanto seus longos cabelos castanho-claros e ondulados estavam cheirosos, também observando admirada com o quanto a pele parda bronzeada dela apresentava um aspecto dourado lindo na iluminação daquele banheiro. Ela era o total oposto de mim: tinha tanta cor!
— Eu sou o bastante? — Ela me encarou com um olhar confuso.
— Érr... Não é nada demais, somos grandes amigas e isso é bem natural! — respondi de forma acelerada, quase atropelando as palavras.
Como resultado de minha resposta, Rebecca apenas me devolveu um olhar penetrante que senti que poderia ler o âmago do meu ser. Além disso, com a sua grande proximidade, seus olhos cor de mel e vívidos me deixavam hipnotizada. Fiquei tão nervosa que desviei o olhar dela e a puxei pela mão para fora do banheiro com bastante urgência.
— Ei! Ficou doida? — indagou Rebecca, revoltada.
— Vamos! Vamos retornar para as nossas salas, caso contrário, levaremos uma advertência! — exclamei, sentindo a minha mão extremamente suada deslizando na dela.
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