Por seus olhos
"A história velada do amor entre inimigos que jamais será contada, mas sussurrada entre os muros de pedra e o vento."
Inglaterra, meados do século XVIII
— Não fomos previamente avisados sobre sua chegada, senhor! Elas já foram encaminhadas para as celas — justificou o guarda robusto que vestia um uniforme surrado. O soldado, humildemente, procurava parecer eficiente e solicito diante do diretor recém-chegado, tentava minimizar o desconforto que sentia por seu precário desempenho, provocado pela falta de recursos e de boas acomodações. — Seguimos o protocolo.
— Irei acompanhar o carcereiro com a refeição, pessoalmente, Benjamin. Certifique-se de que sejam providenciadas acomodações mais adequadas. O mais breve possível — ordenou, calmamente, o recém-chegado, um homem jovem de estatura mediana com porte físico forte e bem vestido que vinha, nessa ocasião, em missão diplomática. Lamentava que elas tivessem sido trazidas para aquele lugar. Preferia tê-las poupado de aborrecimentos que viessem a prejudicar os termos que ele pretendia propor, por outro lado, sabia que ali, na prisão que dirigia, ele teria prioridade para acordos. Olhou para as duas bandejas dispostas à sua frente. Pão, azeite, um ensopado, com carne de ave e legumes, e vinho, trazido de sua reserva particular; o que melhor os guardas puderam providenciar com a chegada inesperada dele e daquelas duas mulheres. — Há suprimentos mais adequados que chegaram à minha despensa. Faça uso deles nas próximas refeições.
— Sim, senhor! — Concordou Benjamin prontamente.
Dois carcereiros pegaram as bandejas e seguiram o diretor.
Atravessaram o corredor ao lado do pátio maior e seguiram por passagens mais estreitas, subiram as escadas em caracol e seguiram até as celas. Os corredores daquela prisão eram úmidos e sombrios, constantemente se ouvia o uivo dos ventos, principalmente quando alguma tormenta se aproximava da ilha. Sean Spach se tornara o diretor daquela prisão assim que assumiu o comando de todas as Guardas; quando, então, o antigo capitão da Guarda se recusara a trabalhar para o Conselho. Era bastante jovem na época e já ocupava um alto cargo a serviço do Conselho Nemtsi. A chegada de Sean como diretor humanizou um pouco mais o lugar, sua disciplina era severa, mas justa. Presos políticos puderam receber um tratamento mais digno e criminosos muito perigosos foram afastados e levados a uma ala mais separada e segura.
Nesse momento, a posição que ocupava ali foi providencial para sua família que tinha interesse em abrigar as mulheres e usar de suas influências. Uma grande reviravolta se deu no mundo entre os Nemtsi e os Selvagens, onde, após uma série de batalhas bem arquitetadas, o lado mais forte, o dos Selvagens, pereceu. Os derrotados possuíam representantes bastante preciosas e, embora pertencessem ao lado inimigo, elas atraiam o interesse de todos; eram capazes de prever o futuro. Ele tinha certeza de que logo várias famílias estariam por ali para conquistar a simpatia delas. Cabia a ele, então, diplomaticamente desembaraçar qualquer sinal de inimizade e convencê-las a colaborar com eles.
Eram duas irmãs, ou meio irmãs mais precisamente, a mais velha, já viúva, era o alvo principal de negociações para Sean. Ele, então, decidiu entrar primeiro na cela da mais nova para se apresentar, deixar seu alimento, partindo em seguida para a cela da que detinha o poder de decisão e de escolha entre elas.
— Creio que armas não serão necessárias, senhores — argumentou dirigindo-se aos guardas.
Um dos carcereiros abriu a porta e Sean entrou seguido pelo ajudante que carregava a bandeja.
Assim que a porta se abriu a jovem, que se encontrava de pé, correu para o catre, pegou um enorme lenço de tecido delicado e se cobriu com ele. O lenço desceu elegante, desde a cabeça cobrindo seu corpo esguio e roupas de seda, até quase o chão, acobertando também o longo cabelo ruivo que descia solto em suaves ondas. Ela permaneceu em pé e virou-se para ele em silêncio. Havia qualquer coisa de misterioso e de solitário nela.
— Boa noite! — começou Sean. — Sou o diretor dessa prisão e ministro de todas as Guardas, Sean Spach. Espero que a viagem e a chegada de vocês tenha sido tranquila. — observou a figura longilínea que se apresentava imóvel e silenciosa à sua frente enquanto o criado colocava a bandeja sobre uma mesa de madeira velha próxima à parede. — Trouxe o seu jantar e já está sendo providenciado móveis mais adequados à sua estadia.
Ela permaneceu imóvel e silenciosa o observando através das tramas do tecido.
— Irei verificar as instalações de sua irmã e espero que, por hora, possa descansar e se refazer da viagem — olhou para a mesa com a bandeja de alimentos e depois para a figura inerte à sua frente. — Boa noite. — Ele virou-se para sair da cela, mas antes ainda a olhou mais uma vez, depois seguiu para conhecer a irmã mais velha.
No dia seguinte, Sean se atarefou em seu escritório programando-se para ir visitá-las no final do dia, após as celas terem sido melhor equipadas. Eram mulheres aristocratas, acostumadas a serem servidas e a terem criadas a sua disposição e isso ele ainda não poderia providenciar naquele lugar que, de fato, era uma prisão. Dessa vez, fez questão de visitar Magda, a irmã mais velha, primeiro, verificar se estava mais arranjada ali e começar a discutir a proposta particular de sua família. Magda era articulada e não perdeu tempo com dissimulações indo direto ao assunto, que era o abrigo e proteção que a família Spach oferecia. Veio com tantas exigências que fez Sean se perguntar se ela tinha verdadeira noção da situação perigosa na qual ambas se encontravam.
Assim que deixou Magda, Sean se dirigiu para a cela da irmã mais jovem, acompanhado do criado que trazia uma bandeja com a sopa, o vinho e agora queijo, também. Quando entrou a encontrou sentada sobre o catre, já coberta pelo longo lenço e com as mãos alvas unidas sobre os joelhos. O vestido era o mesmo do dia anterior, seda, num modelo mais antigo do que o usado à moda Francesa da época, mas de cor clara, diferente do vestido da irmã mais velha que era escuro. No lugar, apenas a mesa havia sido substituída por uma maior com cadeiras de respaldo mais alto; o catre permanecia ali como cama e banco.
— Boa noite! Lady Elizabeth Ogilve, não?! — esperou por uma reposta afirmativa diante da menção ao seu nome, mas ela apenas se levantou. Ele prosseguiu solidário. — Eu realmente lamento toda a tragédia ocorrida em sua família..., e a situação em que se encontram. Por favor, sente-se — aproximou mais a bandeja sobre a mesa indicando o lugar que ela deveria se sentar.
Elizabeth virou o rosto para a mesa , mas não se sentou, nem disse mais nada.
— Estou articulando a saída de vocês daqui para um local mais apropriado. Sua irmã está ciente da situação. Quero abrigá-las na propriedade de minha família onde serão tratadas com respeito e terão acomodações como as que viviam em suas terras. Será bem melhor que deixá-las nas mãos do Conselho — olhou-a atentamente. — Há algo que eu possa fazer por você?
Ela nada respondeu. Virou o rosto para ele e o observou sob o tecido.
Ele queria entender por que ela se cobria com o véu. Sua irmã não o fazia e ele não sabia se era costume de Selvagens solteiras se esconder. Nunca ouvira nada a esse respeito e isso o aborreceu.
— Não precisa se esconder. Está segura aqui.
Ela permaneceu quieta dentro de seu abrigo.
— Imagino que esteja aborrecida com tudo o que aconteceu. Garanto que nada de ruim irá acontecer a você ou à sua irmã. Pode ficar tranquila.
Ela permaneceu em silêncio e imóvel.
— Não há o que temer de mim — suspirou profundamente, olhou para o chão por instantes e depois voltou a fita-la. — Vou deixá-la mais à vontade. — Sean, um pouco contrariado por seu insistente silêncio, se retirou
As negociações, tanto com Magda quanto com o Conselho, seguiram embaraçadas e sem sucesso pelas semanas seguintes. Apesar de todo o desconforto e das expectativas que pousavam sobre seus ombros, em determinado momento, e sem que notasse, passou a desejar que o acordo não se completasse e elas ficassem mais tempo ali. Negava a visita às celas de quem quer que fosse para, assim, evitar maiores entraves nas disputas por elas; a ganância por riquezas, poder e conhecimento pelo que ainda estava por vir atiçava o interesse de todos, inclusive os de sua família.
Todos os dias Sean as visitou e todos os dias Elizabeth o recebia coberta pelo véu; esguia, frágil e silenciosa, mas sempre atenta. Ele queria poder se aproximar dela, sabia que, apesar da aparência delicada, ela não tinha nada de frágil, mas ainda assim dispensou os guardas, passando a visitá-la sozinho.
Conversava com ela todos os dias, mesmo que ela não dissesse nada. Falou sobre sua infância no campo, sobre seus pais e que pessoas boas eles eram apesar de serem Nemtsi e riu sozinho do que dizia; falou do que achava sobre proibições que separavam seus povos e de que preferia que vivessem em paz. Estranhamente se sentia bem na presença dela, como com mais ninguém.
—..., então eu disse que aceitaria a promoção, mas nada que fosse menos que um ministro! Estava brincando, claro, mas levaram a sério e foram obrigados a criar um novo cargo para mim! — Sean riu do que contava. Estava sentado em uma cadeira diante dela e por um instante acreditou ter ouvido um suspiro, como uma pequena risada por baixo do véu que a cobria. — Gostaria de poder ouvir sua voz ao menos uma vez.
Ela permaneceu em silencio, mas a declaração inesperada dele a fez se levantar e ligeiramente caminhar até a janela. Essa foi a primeira vez que ela reagiu a algo e ele se espantou. Também se levantou e foi até ela.
— Estarei sempre aqui, esperando que possa confiar em mim. Não sou seu inimigo, mesmo sendo um Nemtsi.
Ela permaneceu em silêncio olhando o mar através das tramas do tecido e das grades da janela, incrustadas nas grossas paredes de pedra.
Hoje, em vez de visitá-la mais tarde, como sempre, levou sua refeição. Colocou a bandeja sobre a mesa e deu alguns passos para observar o mar através da pequena janela.
— O mundo é cruel e mesquinho — disse decepcionado. — Tantas batalhas e tantos acordos para nada... Nossos povos continuam sendo inimigos e os Selvagens irão perecer. — Olhou para ela sentada em seu catre. — Desculpe-me minha franqueza, mas é a realidade — suspirou. — Realidade... O que é a realidade a não ser o que queremos que seja... Nós criamos essa sociedade intolerante e desordenada; os Nemtsi, os Selvagens e os humanos. E não temos mais como fugir de nós mesmos. Somos nossos próprios árbitros dentro de nossas sentenças e aprendemos a nos mover conforme as necessidades surgem. — Passou os dedos pelos cabelos castanhos e lisos ajeitando-os para trás, virou o corpo para ela e deu um passo à frente. — Vocês eram fortes e livres. Aceitar os acordos para se adaptar a nossa sociedade os enfraqueceu permitindo que fossem destruídos. Vejo, agora, como tudo isso que aconteceu. — Olhou para baixo, depois ergueu a cabeça de lado para o teto e voltou a fitá-la. — Desculpe-me se estou aborrecendo você com minhas frustrações — lamentou. — Estou preso a convenções e a culpas. Não virei hoje mais tarde... Tenho uma reunião que não pude evitar. Só vim ver você, volto amanhã. — Tinha pressa e virou-se para sair sem esperar por uma palavra dela.
— Obrigada! — disse ela erguendo-se.
Ele, que já estava de costas, se virou e a observou com atenção.
— Sei que está tentando nos ajudar.
— Então a senhorita fala! — sorriu e deu alguns passos à frente.
Ela não se afastou e seu véu resvalou na mão dele. Ela fez um movimento para se sentar à mesa. Quando pousou a mão no respaldo da cadeira, ele, que tinha passado às suas costas e também quis puxar a cadeira para ela, pousou a mão sobre a dela. Ficaram imóveis por alguns instantes antes que ela retirasse a mão alva debaixo da dele.
Ele puxou a cadeira e ela se sentou. Sean deu a volta na mesa, mas não se sentou.
— Por que usa o véu? — perguntou sorrindo esquecendo-se do que o estava aborrecendo.
— Tenho olhos sensíveis à luz — respondeu.
— Mas está escuro aqui. Está quase anoitecendo e nem acendemos as velas.
— Prefiro assim. Não vai me achar bonita.
— Não é verdade — ele havia visto seu perfil no primeiro dia e, para ele, era bastante bonito.
— Preciso te contar algo... Algo que minha irmã não deve ter contado. Não sou tão poderosa quanto ela..., minhas previsões são fracas. Ela me protege. Não serei útil à sua família. Arh... — esboçou dizer mais alguma coisa, mas apenas soltou um grunhido e se calou.
— Ótimo! — disse eufórico. — Isso não tem nenhuma importância para mim — Ele sorriu. — Guardarei segredo. Ninguém precisa saber. — Olhou novamente para a porta. Justo agora não poderia ficar.
— Estive aqui ouvindo toda a sua história e sobre a sua família. Nemtsi...Todos tão equilibrados e lúcidos. Eu não te contei nada sobre a minha, sobre os perigos que representamos e preciso te avisar sobre o que eu posso ver e minha irmã não contou... Não é só sobre ver o futuro. É sobre ver outras realidades possíveis em mundos que não estão aqui. Posso ver o futuro dos espíritos e nosso mundo original. Eu caminho sobre trilhas que margeiam a loucura e muitas vezes sinto que posso me perder e nunca mais voltar. Tenho receio de que um dia não consiga mais saber o que é a realidade.
Sean caminhou para perto dela enquanto ela falava. A alegria de poder ouvi-la impulsionava o desejo de ampará-la.
— Estou aqui para te ajudar — completou ele quase a interrompendo. — Conte-me tudo que te aflige e eu a protegerei.
— Não pode... Estou além de qualquer ajuda.
Ouviu-se sons vindos do corredor e Sean temeu que sua demora tivesse impacientado os membros do Conselho que vieram a seu encontro.
— Não posso lhe fazer companhia, hoje. Há membros do Conselho aqui. Não posso ficar, mas se me permitir, posso lhe acompanhar em um jantar amanhã. — Ele se aproximou dela, tomou sua mão e inclinou-se beijando-lhe os dedos.
Ela consentiu com a cabeça. Ele sorriu como um rapazinho, virou as costas e saiu.
No dia seguinte, após se desembaraçar dos compromissos oficiais, Sean foi até a cela dela. A encontrou novamente coberta pelo véu, mas o vestido que Elizabeth usava era mais exuberante, mais dentro do padrão dos vestidos usados pelas damas da época. Uma criada da prisão a havia ajudado com o espartilho e com a roupa costurada ao corpo. Ele não esperava por essa preocupação por parte dela. Colocou uma bandeja sobre a mesa enquanto o carcereiro colocava a outra.
— Obrigado, Benjamin — disse ao soldado de rosto rechonchudo e sorridente que logo saiu e fechou a porta atrás de si. Sean deu alguns passos para perto dela e lhe estendeu a mão para dirigi-la à mesa que estava a poucos passos deles. Ela observou a mão que lhe era estendida e colocou a sua mão fina dentro da dele.
Caminharam três passos e pararam. Ele se virou de frente a ela e disse:
— Não pode comer com esse véu! — Observou a silhueta do rosto que podia ver pela pouca transparência que o tecido permitia. Ainda segurando a sua mão prosseguiu — Posso ver o seu rosto?
— Meus olhos podem te assustar — afirmou ela. — Não olhe para mim — pediu e ia virando o rosto para o lado.
Ele que ainda segurava a mão dela, com a mão livre segurou seu queixo sobre o tecido virando o rosto para ele.
— Tire esse véu, quero ver seus olhos — sussurrou.
Ela fez os movimentos para retirar o tecido e ele a ajudou a se livrar do véu deixando-o cair livre às costas dela. Os cabelos ruivos levemente ondulados e soltos ficaram totalmente visíveis e Elizabeth baixou os olhos e o rosto.
Sean observou por um instante sua silhueta emoldurada pelos longos cabelos vermelhos e depois, com a mão sob o queixo dela tentou erguer o seu rosto. Ela lhe virou as costas e se afastou.
— O que teme? — Sean estendeu sua mão novamente puxando a dela para que se virasse de frente para ele.
Os cílios, muito longos e claros, se ergueram após alguns momentos revelando os olhos que, naquela pouca claridade, mostravam uma íris totalmente branca. Albina. Dependendo da claridade seu olhar adquiria uma cor avermelhada, mas naquele momento ele só viu olhos luminosos fitando os dele.
De súbito, os olhos dela começaram um movimento rápido e incontrolado de um lado ao outro e não conseguindo focar nele, ela baixou a cabeça.
— O que foi? — perguntou agora com ambas as mãos no rosto delicado dela tentando ergue-lo novamente.
— Não me olhe... Quando fico nervosa meus olhos não param. Não consigo focar em nada.
— É porque sou Nemtsi? Não sou seu inimigo. Não fique nervosa... Olhe para mim — disse ele aguardando.
Elizabeth ergueu os olhos novamente e se esforçou em mantê-los nos dele, mas lhe foi impossível, o nistagmo a impedia de focar, ela voltou seu rosto para baixo e para o lado se afastando dele.
— Sempre fui assim. Assusto a todos... Ninguém tem coragem de olhar para mim.
— Você é linda! — Sean aproximou seu rosto do dela e selou seus lábios em um beijo longo e suave. Uma de suas mãos desceu até sua cintura e a outra escorregou para a nuca dela a prendendo em um beijo ardente. Ela a princípio manteve os braços abertos enquanto ele a apertava contra si, depois, lentamente, baixou os braços muito brancos pousando-os sobre os dele. Em seguida foi tomada por uma chama ardente a qual jamais pensou que se entregaria. Sentiu os lábios dele descer por seu pescoço e foi um pouco erguida do chão.
Após essa noite nada mais importava para Sean. Nenhuma decisão do Conselho contrária à permanência delas em sua família seria aceita por ele. Faria o que fosse possível e usaria de toda a sua influência para manter Elizabeth consigo, consumando um amor proibido e velado que levaria séculos para ser descoberto e terminaria onde começou, naquela prisão.
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