Capítulo 3: Uma escapulida

Barulho.
Várias vozes ao mesmo tempo. Pisquei. Branco. Pisquei. Tudo branco. Senti-me leve como uma pluma. Ou uma pena. Pisquei mais algumas vezes. Onde estava?

— Dona Teresa! — focalizei um homem de branco me olhando. — A senhora consegue me ouvir? Entende o que digo?

A mão macia do homem segurou a minha, ela estava quente. A minha estava fria.

— Acho que... — comecei a responder quando recordei o que fazia antes. — Meu Deus! E o desfile? Caí em frente do jurado? Nós vamos perder ponto?

— Acalme-se, está tudo bem — pediu a enfermeira.

— A senhora caiu já na Praça da Apoteose — informou o maqueiro com a camisa laranja e a calça preta. Aquela combinação de roupas reconhecia de longe. Eles sempre acompanhavam a ala das baianas para socorrer quem se sentisse mal. Pelo jeito, dessa vez, havia sido eu.

— Fique tranquila, os maqueiros foram rápidos e a escola não deve ser prejudicada, ao contrário da senhora — finalizou, em tom sério, o médico.

— Desde quando o senhor entende de julgamento, doutor?

— Sua pressão está muito alta — o médico consultou a prancheta, ignorando minha pergunta —, a senhora é hipertensa, dona Teresa?

O maqueiro e a enfermeira saíram, percebendo o tom do doutor, com a desculpa de que atenderiam outra ocorrência.

— É claro que não! — Sentei na cama e vi o soro colocado no braço esquerdo. — Pode tirar isso aqui? Já estou ótima e preciso entregar minha fantasia.

Olhei para o pronto-socorro e estávamos nós dois na saleta de atendimento localizada dentro de um container. A mesa de madeira localizada à minha esquerda tinha o estetoscópio no centro. Outra maca encostada na parede e uma estante repleta de remédios completou o cenário. O que mais chamou atenção foi minha fantasia jogada ao chão com os panos vermelhos, brancos e dourados enrolados e a anágua aparente. Parecia tudo ali, exceto...

— Onde está minha cabeça? — questionei ao desviar do amontoado no chão e olhar o profissional de saúde.

— No mundo da lua, dona Teresa, pois a senhora não parece ter processado mais nada do que disse, não é? — Pisquei. Ele havia falado mais alguma coisa? — A senhora será transferida para o Souza Aguiar e ficará em observação por tempo indeterminado, já que não é hipertensa. Estamos entendidos?

Olhei para o moleque abusado querendo mudar meus planos de carnaval. Quem era aquele fedelho para falar assim comigo?

— Não, doutor, não estamos. — Tentei levantar e ele impediu, colocando a mão no meu ombro direito. — Desfilo mais tarde na Beija-Flor! — O médico levantou a sobrancelha. — Preciso ir pra casa descansar — supliquei.

— Graças a Deus! — Júlio entrou pela porta. — Resgatei sua cabeça novamente.

Sorri. Era bom ver um rosto familiar.

— Esse rapaz é seu parente?

— Afilhado, doutor. — Júlio encarou os próprios pés. — Ele me levará pra casa e prometo descansar até o próximo desfile. Por favor, doutor!

— Rapaz — o médico colocou a mão no ombro do "meu afilhado" —, coloque juízo na cabeça da sua madrinha e a convença que é preciso supervisão médica no caso dela. Vou pedir pra ambulância encostar aqui perto, com licença — concluiu o médico, nos deixando a sós.

O menino sentou na ponta da maca e me encarou, apreensivo.

— O que a senhora tem? Parecia tão bem quando conversamos. O que está fazendo? — berrou ele.

— Fique quieto! — devolvi, puxando o acesso do soro e do remédio. O sangue começou a jorrar e tapei com a mão mesmo. — Pegue o algodão e o esparadrapo na segunda prateleira. — Agora, Júlio, acorda! Antes que ele volte. — Estiquei-me para ver a movimentação do lado de fora. Ao que parecia, minha escola ainda desfilava, o ambiente não permitia ouvir muito os sons da Sapucaí. — Júlio, faça o que mandei!

Os meus pedidos foram atendidos e improvisei um curativo para estancar o sangue.

— Quanto tempo tem que desmaiei?

— Menos de dez minutos — calculou ele, após olhar o relógio de pulso. — Não acho prudente a senhora fugir, dona Teresa. Saúde é coisa séria!

— Carnaval também é, vamos embora! Preciso que me dê cobertura. Júlio — segurei a mão dele e levantei a cabeça —, foi apenas um mal-estar. Estou bem. De verdade.

Eu o puxei até a porta e vimos o médico conversando com um rapaz ao lado da ambulância, alguns metros de distância. O samba-enredo da minha escola encheu os ouvidos e tomou meu coração. No momento, precisava ignorar a emoção e pensar friamente. Olhei o relógio da pista de desfile, ainda tinha muito tempo de escola. O doutor levantava e abaixava as folhas presas na prancheta, mexendo a cabeça em negativa. Uma ala passou na nossa frente e fez com que a dupla de profissionais sumisse de vista. Perfeito, não poderiam me levar agora. Pensei em correr, mas vi a enfermeira um pouco à direita, fumando um cigarro.

— Não tem como a gente escapar, olha — ele apontou para a esquerda e uma equipe de maqueiros conversava na outra rota de fuga.

Voltamos para dentro da sala de atendimento e uma luz dourada surgiu na mente. Júlio estava perto da porta vigiando os inimigos.

— Vamos nos inspirar no passado, Júlio.

— Sabe, acho melhor mesmo a senhora se internar e... O que disse? — Ele me encarou.

Mostrei a roupa no chão.

— A senhora não vai colocar essa tortura de novo. Eu a proíbo! — sentenciou ele.

---***---

— A roupa caiu muito bem em você.

— Isso é ridículo, dona Teresa! — falou, com a vestimenta no corpo. — Fique de olho na porta. Ninguém resolveu a voltar?

Neguei enquanto gesticulava para que Júlio viesse até a entrada.

— Vamos aproveitar quando a próxima ala passar por aqui e vamos, ok? — Com a afirmativa dele, me enfiei por debaixo da saia. — Me avise quando for.

— Isso não vai dar certo! Estou muito chamativo com essa roupa.

Dei um tapa na perna dele.

— Querido, acredite — precisava convencê-lo de que tudo daria certo —, você nem será visto quando a ala sair, todos os olhares estarão na Avenida. Onde está a enfermeira? Junto com os maqueiros?

— Sim, conversando com os maqueiros. A ala foi liberada.

Nossos passos foram sincronizados. Uma pessoa mais atenta perceberia que havia quatro pés debaixo daquela saia, um pouco mais curta devido à estatura mais alta de Júlio. Não tinha ideia de onde estávamos, eu só via o chão cinza da Sapucaí e os calçados de outros componentes. Minhas costas doíam por estarem muito curvadas e o calor, grande, mas nada que não pudesse aguentar.

O chão se tornou asfalto. Estávamos na dispersão. Demos alguns passos, pisei em algumas poças, deviam ser de gelo derretido. Os ambulantes berravam as promoções de bebidas. Júlio parou. O que havia acontecido?

— O caminhão das baianas — ouvi Júlio dizer perto de mim — acabou de fechar.

Saí debaixo da saia. Aparentemente, ninguém percebeu. Respirei fundo algumas vezes e me acostumei ao ambiente, ainda via tudo cinza. Tomei a direção do local de entrega das fantasias, berrando o nome da presidente das baianas.

— Ainda bem que você está bem, Teresa — disse Dona Marta, com a mão no peito. — Avisei ao Osvaldo do ocorrido e ele ia te pegar após o desfile. Eles te liberaram rápido!

— Eles não me liberaram, eu me liberei, Martinha. Vem, Júlio!

O rapaz veio, constrangido com o olhar da presidente.

— Não acredito! — Marta riu. — Abram o caminhão — ela bateu na parte traseira do veículo —, temos mais uma baiana para alojar. Ou seria baiano?

Júlio despiu-se em questão de segundos.

— Dona Teresa, vamos embora, não vou deixar a senhora por aí. Deve ir pra casa e descansar.

— Poxa, Teresa, acabei de receber uma ligação pedindo reforço lá em Intendente. Meu rapaz, que tal uma passada lá no Campinho?

— A senhora não vai, dona Teresa! Onde está com a cabeça?

— No momento? — questionei.

— Sim — retorquiu ele —, isso é muito sério!

— Na sua mão. — Apontei o adorno esmagador de cérebros seguro nos braços do garoto. — Só coloco no lugar depois do carnaval. Vamos, Júlio — joguei o chapéu dentro do caminhão —, perca um pouco a cabeça também!

Júlio seguiu meu conselho. Afinal, era carnaval. Ainda bem que fomos para Intendente Magalhães, a escola de samba de Jacarepaguá precisou de um rapaz no estilo do "meu afilhado" para vir em cima do único carro alegórico da agremiação. De apoio de destaque para destaque principal foi o resumo da noite de Júlio. Depois daquele dia, nos tornamos inseparáveis. Além de sermos muito sortudos, nossas escolas foram campeãs. Quando nos perguntavam como nos conhecemos, era simples dizer que nós procurávamos uma cabeça perdida e encontramos uma amizade para toda vida.

FIM

Total de palavras (Microsoft Word): 4.978  

Chegamos ao fim de mais uma aventura carnavalesca. Espero que tenham gostado.

Vamos apertar a estrelinha mais uma vez e alegrar o dia dessa aqui que adora escrever sobre carnaval? Obrigada pela leitura!

No próximo capítulo, são alguns esclarecimentos sobre carnaval e curiosidades sobre o conto.

Quer saber como foi o restante do Carnaval do Júlio? Basta visitar "Segura o Santo Antônio!" no meu perfil.

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