Parte II - Capítulo II
───※ ·1· ※───
Um dia depois do incidente, Oliver havia encontrado o lenço vermelho que Estrith colocará na cabeça uma última vez. Estava no meio da estrada e estava rasgado, empoeirado, parecendo mais marrom do que vermelho.
Havia dias que o garoto só fazia sopa para ele e seu avô comerem. Era só isso que o pai lhe ensinara aquela altura. Normalmente, o garoto fazia uma sopa de nabo quando seu pai demorava voltar da cidade. A fome apertava e ele sempre usava o prato para enganar o estômago. Só que dessa vez, seu pai não voltaria a fazer algo descente para digerir. Seu corpo infantil pedia algo mais fortificante, que oferecesse nutrientes que uma criança precisaria. A sopa não estava mais sustentando os dois depois da primeira semana.
O garoto conseguia ver uma diferença significativa no semblante de seu avô. Estava mais abatido que antes. Talvez fosse a sopa, ou a inexperiência de Oliver em cuidar de alguém naquele estado. O pequeno sabia que tinha que fazer algo. Seu avô não falava, mas seu rosto clamava por algo que estava faltando. Toda vez que Oliver dava a sopa para seu avô, ele não suportava olhar aquele rosto mais abatido do que antes. Às vezes, virava para o lado enquanto direcionava a colher na boca do idoso. Sempre acabava sujando seu avô com aquele gesto.
Uma dia, acordou com a motivação de fazer algo novo para comer. Aproveitou a oportunidade de tentar degolar um dos porcos que Garen tinha no curral. Entretanto, ele não conseguiu erguer a faca para um animal tão indefeso que olhava inocentemente.
Era uma agonia viver naquele lugar. Uma criança que tinha sua memória inválida pela cena de seu pai morto e a ideia de como suas mãos não pareciam tão úteis para sobreviver, cansavam o pequeno a cada labuta diária. Já não conseguia mais sorrir, brincar ou ter uma vida normalmente infantil. Era um homem pela escolha do destino, não por sua própria vontade. Sua vontade era de sumir daquele lugar. Seja para outra cidade ou província, ou sumir da sua própria vida (mesmo que isso não tenha vindo a memória dele naquele instante).
No oitavo dia de verão, o sol caía sobre a cabeça do garoto enquanto o mesmo arava a terra para plantar. Era castigante e ardente, fazendo o pequeno suar mesmo antes de pegar na enxada. De repente, ele avista um homem e uma mulher, os dois em carroças diferentes seguindo na mesma direção. Rapidamente lhe veio a ideia: "preciso sair desse lugar". Ele corre em direção a estrada e se põe na frente dos cavalos. Os animais se assustam e começam a relichar alto, um deles chega até a tentar se erguer em duas patas. As duas pessoas eram naturais de Adalina (cidade que ficava na fronteira da província de Estera com Firdharen) e tentavam acalmar os animais.
- Isso é jeito de entrar na frente dos cavalos, garoto! - disse o homem. Ele possuía a pele clara, os olhos azuis e cabelos castanho-escuros. O mesmo puxava os arreios do seu equino para dominá-lo. Sua mulher fazia o mesmo.
- Quanto quer por um dos cavalos? - disse Oliver olhando para o homem de maneira séria, porém seus olhos estavam brilhantes e dava uma impressão de que o pequeno estaria prestes a chorar.
- Que conversa é essa, menino!? - disse a mulher olhando para o garoto e percebendo a tristeza em seu olhar. Ele apenas repete a mesma coisa de antes. A mulher desce da carroça e anda em direção ao pequeno. A mesma se agacha, ficando na mesma altura que Oliver. Ela olha cada um seus olhos de maneira compassada como se suas iris e pupilas fossem o pêndulo de um relógio. A expressão do garoto começa a mudar para algo mais inocente e tristonho. Voltava ao olhar infantil que outrora havia perdido. - Onde está o seu pai, pequeno?
- Meu pai... - o garoto engole em seco, acompanhando uma torrente de amargura e dor tomando seu coração. Os olhos dele já não aguentavam segurar as lágrimas que se dispersaram como se fosse uma fera liberta de uma jaula. - ... Está morto!
- Pobre garoto... Quem está cuidando de você? - perguntou a mulher com um olhar sereno. Seus olhos também estavam brilhando, pois, como mãe, imaginava empaticamente como aquela situação deveria ser horrível.
- Apenas eu... Somente eu cuido de mim e meu avô. - disse Oliver aos soluços. - Não queremos mais ficar aqui! Aqui tem memórias ruins! Só quero ir para longe de tudo isso! Por isso eu perguntei quanto vocês querem pelo cavalo! Podem ficar com tudo isso, só não quero mais ver esse lugar, nunca mais!
- Escuta, garoto... - disse o homem para Oliver mansamente. - ... Seu avô não está conseguindo cuidar de você?
- Ele está em estado... Estado... - o pequeno não conseguia lembrar o nome. Palavras como com sufixo "tivo" vinham a memória, mas ele sentia que todas estavam erradas. O garoto desiste. - Quando uma pessoa não consegue fazer nada nem se movimentar ou pensar... No me lembro a palavra.
- Vegetativo! - disse a mulher como se estivesse admirada ou espantada em saber que a situação do garoto era pior do que aparentava. - Querido, eles não podem ficar aqui!
- Querida, temos três filhos e quase não paramos em casa, pois trabalhamos na capital e a viagem é longa. Como eu e você teremos tempo para cuidar dos dois? Principalmente do avô desse menino!
- Janira pode cuidar dele! Ela é a mais velha e se consegue cuidar dos dois irmãos consegue cuidar de um idoso! Eu acredito que minha filha possa fazer isso. - disse a mulher com uma expressão séria, mas com os olhos vermelhos e o rosto molhado de lágrimas. Ela torna para o pequeno e enxuga seu rosto com seus dedos delicadamente. - Arrume suas coisas. Vamos levar vocês para a nossa casa!
───※ ·2· ※───
Lyanna havia se mudado a um mês atrás para a cidade de Hazentorn que ficava em Firdharen ao Sul da capital. Ela já não era mais a mesma. Todos os dias andava pela cidade como se não houvesse amanhã. Se embreagava nas tabernas da cidade e sempre causava confusões quando estava bêbada. Xingava até seus próprios vizinhos quando passava pela rua. De amada, passou a ser odiada. Para ela, o mundo não era seu amigo, mas aquele que queria sua morte, sua cabeça. Ouvira um boato quando chegou em uma das muitas tabernas que existiam na cidade: um soldado havia dito que seu irmão, cavaleiro de Estera, havia ouvido os lordes falarem sobre um possível ato de rebelião depois que um garoto e um homem foram torturados e assassinados na masmorra do castelo. Ela havia entendido que Estera poderia estar atrás dela. Mas, àquela altura, quem desconfiaria de uma bêbada irritante?
Era verão mas, de vez em quando, uma chuva ou um sereno ainda caía sobre Garfinia. O clima veraneio logo dava espaço ao cinzento tom de inverno com suas torrentes de água vinda das nuvens mais sombrias. Todos procuravam abrigo ou já estavam abrigados, pois alguns olhavam para o céu todas as manhãs para ver se o dia estava bom para sair, mesmo que tivesem de trabalhar forçadamente. "É melhor chegar atrasado do que ensopado" diziam os cidadãos. Um forasteiro nem sempre tinha essa sorte de encontrar algum lugar para se encostar e esperar a chuva passar. Só existiam abrigos nas cidades, mas no meio do caminho o máximo que poderiam encontrar era uma caverna cheia de morcegos. Essa era a realidade de Tina.
A pequena tinha apenas sete anos quando perdeu os pais, que eram adoradores sacerdotes de Ashya na colina de Qatkandar, ao Norte de Firdharen. Os soldados haviam saqueado a cidade e eliminado cada homem, mulher e criança que adorava Ashya. A mãe de Tina a escondeu em um poço vazio e jogou a corda para dentro dele. "Suba quando não ouvir mais nenhum barulho" dizia a mulher enquanto abraçava a garota. A garota ficou dentro do buraco por dois dias, até que a fome não tivesse como ser contida e isso a obrigou a sair. Estava sozinha, apenas com um colar antigo que seu pai havia lhe dado de aniversário. Não havia mais corpos aquela altura, mas o cheiro de sangue pairava no ar como se fosse fresco e isso a fez chorar bastante. Agora, não restava mais dúvidas que ela também foi rejeitada pelo destino.
Antes mesmo da chuva cair naquele dia, Tina saía para encontrar comida na cidade. Infelizmente, a garota não havia encontrado nada. Apenas um pedaço de pão que um padeiro deu a ela (o restante, o miserável deu ao seu cachorro que nem fez questão de comer). Ela comera o pão e bebeu um pouco de água que tinha em um poço no meio da praça. A garota estava tão faminta que nem se deu conta do céu nublado sob sua cabeça. As gotas densas começavam a despencar no céu como se formassem uma cachoeira. Tina começou a correr rapidamente pela cidade até encontrar uma cobertura grande o suficiente para acolhê-la. Pelo menos, era o que ela pensava. A água começava a respingar em seus pés que, aos poucos, se encolhiam contra a porta do estabelecimento. Seu corpo fez barulho ao se chocar com o madeirado. A pequena ao perceber o que tinha feito, começou a prestar atenção no vozerio que vinha de dentro. Um deles se sobrepujava aos demais, parecendo se aproximar da porta a cada segundo. A porta abre.
- ...Eu falei que vou pagar, seu corno! - disse Lyanna abrindo a porta enquanto olhava para trás aos xingamentos. - Põe na conta aí! - Ao tornar para frente, a mulher repara que há uma criança na entrada, ou melhor, na saída, olhando para ela com uma expressão de medo e surpresa misturadas ao cabelo castanho-claro molhado. - O que você está fazendo aqui, menina! Vai para casa! Está chovendo!
- Eu não tenho casa, senhora. - disse Tina olhando para a mulher com um olhar penoso e tristonho. Ela olha instintiva e rapidamente para dentro do estabelecimento: era uma taberna.
- Deve está fugindo dos pais. Vem que eu vou te levar para casa. - disse Lyanna andando para frente bastante cambaleante. A mesma tropeça em uma pedra e cai no meio da chuva. A garota prontamente se dirige a mulher e ajuda ela a se levantar.
- Não perda tempo com essa trambiqueira! Procure um lugar para se abrigar, menina! - disse o taberneiro que era quase completamente calvo. Ele já conhecia Tina de algumas ocasiões anteriores e sabia que ela era uma pedinte. Um dia, chegara a taberna procurando trabalho, porém o homem recusou dizendo que "tabernas não eram para crianças".
- Obrigada, menina. - disse Lyanna se erguendo e tornando na direção do homem. - Vai se danar, seu desgraçado!
- Desde que você chegou nessa cidade, só tem me dado calote! - gritou o homem com a mulher que seguia seu rumo apoiada levemente sob a garota e, para sua surpresa, ergueu o antebraço esquerdo, mostrando-lhe o dedo médio como resposta. - Ela ainda me paga!
A casa onde Lyanna estava morando atualmente era simples. Ficava no final de uma rua sem saída, o que a destacava em comparação as outras. Existiam apenas dois cômodos: um quarto e uma cozinha. A última se via logo que entrava na casa: três prateleiras cheias de especiarias ficavam frente a porta. Quando se abria a mesma em um horário avançado da manhã, dava para ver os frascos de vidro brilhando com o reflexo do Sol. No lado direito das prateleiras, porém um pouco mais afastado, existia um fogão a lenha que também servia de lareira nos dias de frio. O quarto da mulher ficava em um cômodo a esquerda da prateleira e não tinha muitas coisas a não ser uma cama e um velho criado mudo que já não tinha uma das bases e era sustentado por um pedaço de madeira do mesmo tamanho.
- Cheguei! - disse a mulher apoiada sob a menina. Como era de se esperar, ninguém responde.
Lyanna resmunga algumas palavras inaudíveis e aponta para a direção do seu quarto. Tina ajuda a mulher a chegar no lugar que era queria. Ao se deparar com o quarto, Lyanna apenas se joga de bruscos sob a cama como um corpo morto. A coberta começa a ficar encharcada, o que incomodou um pouco a mulher, mas logo deixou de se importar com isso.
- Pelo menos, está melhor que lá fora. - disse a mulher aos risos. Tina apenas observa Lyanna alisando e esfregando o rosto sob a cama como se o móvel tivesse a salvo de uma enrascada (embora, pegar uma chuva é uma enrascada). Mansamente, a menina torna os pés para fora do quarto, um pouco cabisbaixa, lembrando que a chuva estava lá fora e que teria que encará-la até chegar ao seu "lar". Lyanna vira o rosto lentamente para Tina e retorna ele para a posição de antes da mesma forma. Seu braço se ergue subitamente e balança como galhos de árvores levemente secos (a mulher deixará de se alimentar bem desde "àquele" dia). - Ei, volta aqui! Quem disse que é para você ir embora!
- Sim, senhora. - disse a menina retornando. Seu semblante parecia esperançoso, mas receoso por estar dando atenção a uma estranha bêbada encharcada que mais parecia uma bruxa de contos infantis.
- Hoje você dorme aqui comigo! - seu braço se abaixa bruscamente batendo sob a cama. A mulher dá duas palmadinhas no móveis fazendo sinal para que a garota se aproximar. - Deita aqui, menina!
- Sim, senhora. - disse a garota, com um leve sorriso no rosto. Fazia um bom tempo que Tina não deitara sob uma cama. Ela faz o que a mulher disse. As duas ficam juntas. Lyanna se deita de lado e olha para a menina. A mesma, sentindo que estava sendo observada pela mulher, vira seu rosto na direção dela. A mulher sorri.
- É confortável, não é? - disse a mulher caindo em gargalhadas sem razão.
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