Parte I - Capítulo IX
───※ ·1· ※───
Os talheres tilintavam sob a mesa de Palpehan naquela manhã. Era hora do café. Frutas de todas as espécies se distribuiam em cima do móvel madeirado e fazia qualquer um admirar a fartura que nem mesmo lorde Ansemund costumava desfrutar. Acompanhado de sua esposa, Adelaide, o banqueiro se deliciava de maneira detalhista, sempre dando foco ao seu paladar que era tão refinado. "Comer de qualquer jeito essa refeição é o mesmo que jogar meu dinheiro fora" pensava, assim, o homem. Para Palpehan, alimentar-se era mais do que uma necessidade humana. Era uma arte de prazer culinária. Sua mulher o observava mastigar um pedaço de pão que fora cortado em muídos. Sua expressão era de um âmino um pouco nervoso. Ela lança um sorriso de canto antes de falar com o seu marido.
- Estou pensado de ir com você até o banco hoje. - disse a mulher já sabendo a resposta de seu marido, mas querendo ouvi-la com seus próprios ouvidos. Ele pousa o garfo sob o prato levemente.
- Bem, você pode ir amanhã. O fluxo de clientes é menor. - os olhos de Palperhan fixam nos de Adelaide sem pestanejar. "Já imagino o que ela está planejando" pensou o banqueiro.
- Tem algum problema ir hoje, querido? - "querido" soou de sua boca com um pouco de sarcasmo. O homem suspira, fechando os olhos e alisando a testa com a mão esquerda de cotovelo sobre a mesa.
- Não teria se você ficasse no seu canto sem interferir nos meus negócios. - respondeu Palperhan. Seus olhos voltam para Adelaide novamente. Ele estava sério. - Toda vez que eu recolho os impostos anuais da província, você sempre fica observando para ver se não estou cobrando juros indevidos aos clientes. Meu trabalho eu sei como fazer!
- Sendo corrupto!? É assim que você sabe fazer seu trabalho!? Mostrando para o seu filho, que tanto desejou ser um cavaleiro da Armada Real, lutar pela honra, ser um banqueiro muquirana e ambicioso!? Tenha dó, senhor Vermander! - disse a mulher chamando-o pelo sobrenome. O banqueiro sabia que ela estava perdendo a paciência com aquilo, mas não queria sair como derrotado daquela discussão.
- Você tem todo esse casarão comprado com juros indevidos! A comida que você come, a cama que você dorme, a roupa que você veste... Ainda quer discutir comigo!? Não era isso que você sempre quis na sua vida!? Ter essas regalias!? Agora tem mais do que o suficiente! - disse Palperhan levantando-se bruscamente da cadeira, apoiando as duas mãos sob o móvel, encarando sua esposa franzindo o cenho.
- Nunca pedi que você me desse alguma coisa! Sempre vivi como uma florista nessa cidade mesmo depois de casada! Lembra de todos os presentes que você me deu quando me cortejava? Quantas das vezes aceitei algum? - disse Adelaide levantando-se e o encarando da mesma forma.
- Nenhuma. - o semblante do banqueiro começava a murchar, ficando mais envergonhado do que irritado.
- E você sempre achou que eu era orgulhosa demais para aceitar seus presentes. Mas o que foi que eu lhe disse quando você desabafou para mim tudo isso que sentia?
- Disse que quando recusava os meus presentes, não era porque me detestava, mas sim porque apenas o meu amor por você era importante. - disse Palperhan olhando para o copo de suco sob a mesa. Seu semblante mudou e ficou sereno. Ele estava corado e deu uma leve risada. - Você até me deu um presente.
- Só quero que pare com tudo isso, tudo bem!? - Adelaide toca no delicadamente no queixo de seu marido, inclinando-o levemente até ficarem face a face. - Não precisamos ter essas regalias todas para viver. Nunca pedi por isso. Ser honesto e mostrar para o nosso filho que seu pai é agora um bom homem já é muito. Mesmo que venhamos perder tudo, o que importa é o amor que você tem por mim e o amor que tenho por você. Promete que vai parar com isso?
- Tudo bem, querida. Eu prometo. - disse Palperhan encostando sua testa a de Adelaide. Os dois começaram a sorrir.
- Brendon está dormindo demais hoje. Melhor acordarmos ele. - disse a mulher. Seu marido assente positivamente. Ela pega sua mão direita e o guia pelas escadas. Palperhan olhava para a sua esposa e percebia seus lindos e longos cabelos negros semelhante a noite mexendo levemente. Seu belo sorriso e seus olhos azuis que combinavam com seus vestido sem manga de mesma cor e uma blusa branca por baixo o faziam lembrar da juventude e de como foi maravilhoso conhecer aquela linda florista que o conquistou com um simples olhar.
As juntas dos dedos de Adelaide se chocam na porta do jovem Brendon, porém não houve resposta, apenas um silêncio quebrado pelo assobiar dos pássaros que rodeavam próximo a casa. Ela e seu marido se entreolhavam. Palperhan começa a chamar o nome dele repetidas vezes, uma mais alta que a outra, mas o resultado era imutável. Aquela mudança de humor na noite anterior vinda do garoto que "desistiu" de seus sonhos sobrevinha sob a mente do banqueiro. Ele começa a cogitar algo errado e temia por sua conclusão estar certa. "Possivelmente, ele se foi com a caravana". Subitamente, o homem solta a mão de sua amada e corre em direção a parte de fora do casarão, indo em direção a janela do quarto de Brendon. Sua mulher o segue. Os dois param onde estava a janela e permanecem encarando-a.
- Ele fugiu. - disse Palperhan olhando para a janela que estava aberta. "O garoto é ousado, mas não muito inteligente" pensou. Logo em seguida, seus olhos começam a percorrer o lugar até encontrar uma abertura entre o jardim. Ele aponta para a direção do recinto violado e sua mulher acompanha. - Ele passou pelo seu jardim.
- Não acredito que isso esteja acontecendo! - disse a mulher começando a chorar. Talvez nunca mais veria seu filho. Seus abraços não seriam tangíveis. Seu amor não seria correspondido por palavras. Apenas o peso da saudade por uma que possivelmente não viveria muito.
- Não chore, meu amor. Irei atrás dele. - disse o homem abraçando sua esposa. Palperhan grita o nome de alguém: Giulia. - Mande o cavalariço preparar o equino mais rápido do estábulo! Com certeza ainda dá tempo de alcancá-los.
───※ ·2· ※───
De porta em porta, Lyanna seguia desesperadamente a procura de alguém que pudesse ajudá-la com aquela situação. Infelizmente, ninguém atendia seu clamor. Todos estavam ressacados das bebidas fortes em comemoração ao Festival da Primavera. Ela estava sem chão. Não sabia o que fazer. Já sem forças de gritar e de correr, a pobre mulher se encosta em uma das árvores da Praça Nobre, que estava vazia, e permanece lá, encarando a paisagem na sua frente com um olhar morto. De repente, a mulher começa a ouvir passos que ecoavam do seu lado direto. A cada segundo que se passava, o som de botas rangendo ao caminhar de alguém ficava mais alto. Lyanna tornou o rosto em direção do barulho e logo se dá conta que era Ginger Calhen. Com um chapéu de couro que possuía uma fina camada prateada em sua borda, o homem fica de frente para a mulher, que se levanta instantâneamente apoiando suas mãos contra o tronco onde antes estava apoiada.
- O que estava fazendo aqui, senhora Onorian? - disse o homem com uma voz rouca e grave. A mulher abraça o homem desesperadamente e as lágrimas começam a rolar de seu rosto. Ele não via as mesmas, mas dava para perceber pelo embargar de sua voz e o soluçar que ela transmitia.
- O senhor precisa me ajudar... Meu filho... Ele... Está morrendo! - disse a mulher encarando o homem com um olhar de choro. Ao ouvir essas palavras, Ginger segura em sua mão e a conduz para a residência da mesma.
Lyanna havia arrastado o corpo do marido até a sala e o colocou sob um pano azul. Ela era franzina e não tinha força suficiente para levar seu marido nos braços. Kevin tinha sido colocado sob os travesseiros das camas e os reservas formando um acolchoado improvisado.
Ao entrar na casa, o homem se depara com aquela situação. Ele não se admirou, mas ficou se questionando sobre a brutalidade do ataque. Ele corre e se põe de joelhos próximo ao corpo de Hidengoyle, colocando seus dois dedos, o indicador e o médio, na têmpora do mesmo. Não havia pulsação. "Realmente, está morto" pensou Ginger. Subitamente, Kevin começa a tossir e sangue escorre pela sua boca. O velho se levanta bruscamente e se põe de joelhos novamente. As palavras "Visão Oculta" saem de sua boca como sussurro. Seus olhos ficam esverdeados e ele consegue ver através das roupas e pele do garoto.
- As costelas estão quebradas e parecem ter perfurado o pulmão esquerdo. Ele está tendo uma hemorragia interna. - disse o homem olhando para o peito do jovem. Lyanna se achega ao filho, ajoelhando-se e segurando sua mão. Ele estava quente e ver o sangue percorrendo seus lábios lentamente a deixava mais desesperada.
- Por favor, senhor Calhen! Salve meu filho! - disse ela olhando para o homem com medo e lamento. Ele corresponde de volta e balança sua cabeça negativamente.
- Nas circunstâncias que ele está, é quase inevitável. Mas ainda resta uma alternativa. - disse o homem serenamente. A mulher rapidamente se anima ao saber que seu filho ainda poderia sobreviver.
- Diga, senhor!
- Você tem Flores de Asenath no seu jardim? - disse o homem. A mulher assente positivamente. - Ótimo! Pegue uma flor, coloque-a dentro de um copo e esmague-a em pedaços. Misture com água, sal e corante do Monte Sola. Depois, traga para o seu filho beber.
- Agora mesmo! - disse Lyanna correndo rumo ao jardim que ficava no fundo do quintal.
A mulher colhe a flor e se dirige a cozinha, colocando-a em um copo, esmagando em miúdos. Logo após, Lyanna pega outro recipiente e colhe água de uma bacia que estava ao lado do balcão. Acima do mesmo, existia umas quatro portas do armário e, abrindo a terceira, da esquerda para a direita, ela retém um saco de sal e um frasco de corante do Monte Sola, colocando um pouco dos dois dentro do copo. Rapidamente, a mesma se dirige a sala, dando a bebida para Ginger, que põe sob os lábios do garoto, esperando que o mesmo beberique um pouco. Kevin tenta ingerir o líquido, mas o sangue começa a sair com mais uma tosse. Ginger aguarda a mesma passar, aproximando, em seguida, o copo do menino. Dessa vez, o mesmo consegue beber.
- Ele vai ficar bem, senhor? - perguntou a mulher bastante apreensiva.
- Sendo sincero, ele deveria ser levado ao Monte Sola para um tratamento melhor. Entretanto, é muito longe e, nessas condições, ele não vai sobreviver. - disse o homem, olhando para o chão envergonhado por não poder fazer nada quando a isso. As palavras de Ginger foram como flechadas no coração de Lyanna que começa a chorar. Subitamente, a mão de Kevin começa a se erguer em direção da mãe debilmente até encostar no rosto dela. Um leve sussurro sai dos lábios do jovem: "não chore, mamãe". - O remédio... Ele... Serviu apenas para eliminar a dor dele. Era o mínimo que eu poderia fazer...
As mãos do garoto iam se enfraquecendo e seus batimentos cardíacos desacelerando. Sua visão começava a ficar bastante turva e já não conseguia sentir mais nada. Kevin se foi, apenas deixando seu corpo, agora, sem vida. Lyanna começa a chorar e abraça Ginger que tenta consolá-la, sabendo que nem ele mesmo conseguia se perdoar por não poder fazer nada. "Me sinto inútil frente a dor de uma mãe" pensou.
───※ ·3· ※───
Uma pá dada pelo destino a um inocente e indefeso garoto. A ferramenta se chocava com a terra de maneira débil e sem precisão. Ela era grande demais para Oliver maneja-la decentemente. Mesmo assim, o pequeno cavou ora com o instrumento, ora com as próprias mãos. Ele continuou seu labor fúnebre até fazer dois buracos consideravelmente fundos o bastante para caber os dois corpos. Porém, antes de enterra-los, o pequeno lembra do dinheiro que o pai tinha recebido de Garen e vasculha nos bolsos do mesmo para ver se estavam lá. Nada encontrado. O olhar triste toma o rosto do garoto quando ele conclui que os soldados saquearam tudo dele e, com certeza, o de Garen também. Entretanto, o garoto ainda mantinha esperança de encontrar algo na casa do vizinho. Como uma flecha, veio a sua memória uma pessoa: Estrith.
Dois corpos na cova. Oliver começa enterrar os dois empurrando a terra com a pá. Não demorou muito até que a terra escondesse os dois no seu lençol amarronzado. O pequeno encara o chão com tristeza e as lágrimas começam a sair de seus olhos, escorrendo lenta e delicadamente pelo rosto do garoto até um gota dela cair grosseiramente no solo.
Oliver vai até o outro lado do cercado e percebe que a porta de Garen não estava ali. Lentamente, ele se aproxima da casa, vendo, pela entrada, a porta destruída e seus pedaços perto da mesa que estava de igual modo. "O que aconteceu aqui?" se perguntou o garoto. Ele entra na casa e olha para ambos os lados. Apenas o silêncio falava aos seus ouvidos e uma brisa suave o acompanhava. O pequeno olha a porta do corredor ao lado direito e segue por ali. Seus passos eram suaves e cuidadosos, e eram seguidos pelo nervosismo. Ele não sabia o que iria presenciar no quarto de Estrith, mas sentia, quase que com certeza, que não seria algo bom. A porta estava aberta. Oliver põe sua cabeça na entrada da porta esperando uma surpresa desagradável. Porém, apenas encontra o quarto arrumado e em seu devido lugar. "Ela foi levada" concluiu o pequeno. A criança se encosta na parede próximo a porta e encara a cômoda. Não podia acreditar que perdeu todos que amava. Porém, não havia nada que poderia ser feito. O pequeno camponês iria aprender a ser homem mais cedo.
───※ ·4· ※───
A sala do mestre Hakudo era bastante extensa, sendo totalmente feita de pedra polida e sustentada por seis colunas enormes que eram dispostas paralelamente em um par de três colunas. No fim do caminho, existia uma estátua de quatro metros da deusa Ashya que ficava no topo de uma pequena escadaria de quatro degraus. Havia vários incensos e pétalas de rosas nas escalações e o perfume que eles emanavam entrava nas narinas de Tamaki suavemente. Era agradável.
A garota acabara de entrar no recinto silenciosamente, pois já era por volta das três horas da tarde e seu mestre estava no momento de meditação. Ela começa a andar em direção do idoso monge que estava a sua frente com as pernas cruzadas e sentado sob um tatame pequeno. Mau se deu conta que esquecera de por seu calçado no genkan que estava na entrada. Rapidamente, Hakudo ouviu o pisoteio do geta compassadamente.
- Coloque o geta no genkan, Tamaki. Desorganização não é o tipo de ideologia que pregamos nesse templo. - disse Hakudo com seus olhos ainda fechados, mas com o ouvido atento ao andar retrógrado da moça em direção a entrada.
- Desculpe pela minha imprudência, mestre. - disse a jovem o reverenciando.
- Veio aqui em uma hora incoveniente. Presumo que seja algo que merece atenção.
- Sim, mestre. É algo sobre... Aquela garota. - os olhos do monge se abriram e ele observa Tamaki parada frente a porta. O velho faz sinal para que ela se aproxime. A moça o obedece.
- Sente-se e me conte o ocorrido. - disse o idoso apontando para o tatame a sua frente. Ela põe os joelhos e senta sob a panturrilha.
- Senhor, creio que aquela moça não é como os cidadãos comuns. - disse a moça olhando para Hakudo.
- Com "cidadãos comuns" você quer dizer "sem poderes". - disse o monge. - Depois que Erick começou uma série de inquisições, tudo o que era normal passou a ser anormal. Não me admira que até nossos termos mudaram.
- Sim, mestre. Mas, essa não é a questão. O real fato que presenciei foi a força exacerbada dela.
- Pode ter puxado o pai ou a mãe. Tem várias crianças que nascem com esse tipo de força, principalmente aqueles que despertam acidentalmente ligações temporárias com as Linhas de Magia.
- Entendo. Mas... Os olhos dela... Mestre... O senhor deveria tê-los visto. - disse a moça olhando para um jarro florido que separava os dois. Sua mente vagava pelas memórias daquele momento. - Eram brilhantes e azuis. Mas, não era um brilho comum. Era reluzente. Como uma tocha.
- Curioso... - disse o Hakudo levantando-se lentamente, erguendo e apoiando-se no cajado que estava do lado direito. Tamaki o ajuda a levantar até ele se manter totalmente sob os pés. - Me leve até o lugar onde ela está.
- Sim, mestre. - disse a moça, guiando-o cuidadosamente.
Em um ritmo lento e delicado a jovem Tamaki guia o velho Hakudo pelos corredores do monastério. Alguns monges se surpreendiam por seu mestre não estar meditando naquela hora do dia, então, decidiram acompanhar o mesmo em sua procissão rumo ao quarto onde Estrith estava. A garota coloca a mão esquerda em um dos fusumas e o desliza para o lado, dando a todos que seguiam-nos a visão da camponesa com os cabelos mau cortados deitada sob a cama, em sono profundo.
- Aí está ela... - disse Hakudo aproximando-se do móvel, apoiando-se sob seu cajado. Ele observa os cabelos da moça com uma certa desconfiança. - O que houve com ela?
- Mestre, ela jogou o copo que lhe dei com água contra o espelho e usou os estilhaços para cortar seus cabelos. Ela se sente culpada pelo que acontece. - disse Tamaki, olhando para o chão enquanto relatava o fato. o velho apenas assente.
- Pobre garota... Deve ter sido difícil para ela. - disse o monge.
Ao chegar próximo da jovem, o idoso ergue sua mão direita em direção, esticando o dedo indicador e o anelar para a cabeça da moça. Seus olhos se fecham. Ele parecia concentrado, como se estivesse buscando alguma coisa escondida no fundo de uma caixa. Gradativamente, seus dedos começam a brilhar com um azul emanando algo que parecia uma fumaça reluzente. De repente, os olhos de Estrith se abrem, revelando aquilo que o monge esperava. Mesmo com os olhos abertos, a garota ainda permanecia inconsciente. Hakudo abre seus olhos lentamente e vê o resultado de sua boca.
- Então, ela é uma Sarizaya... - disse o monge, admirado. - Pensei que eles foram extintos de Garfinia a muitos anos! Como é possível!?
- Mestre, eu não sei como isso é possível. Normalmente, os Sarizayas tendem a ter características predominantes em relação a miscigenação. - disse Hideki que estava varrendo os cabelos da jovem espalhados pelo chão. - Seus cabelos são brancos, mas ela não tem a pele...
- Negra? - complementou Hakudo. - Sim. Entretanto, se o pai ou a mãe Sarizaya forem mestiços também, ela pode nascer com com a coloração de pele distinta.
- De qualquer forma, sinto que isso é uma benção de Ashya. - disse Tamaki com um sorriso. - No momento em que vivemos, ter uma mestiça Sarizaya entre nós pode nos ajudar com a revolução contra a Coroa.
- Realmente, isso é uma boa ideia. - disse o velho monge, se dirigindo para a saída do quarto. - Embora, não é o que queremos, pequena Tamaki, mas o que ela quer.
- Rezo para que Ashya tenha mandado esse sinal para a nossa salvação. - disse Hideki.
- Eu também, filho. Eu também. - disse o velho, andando rumo ao seu altar de Ashya, enquanto os monges davam espaço para que ele passasse.
───※ ·5· ※───
- Ei, Kimberly! Uma coruja se aproxima! Acorda! - disse Perrylin cutucando a colega que estava sentada em uma cadeira de madeira e com os braços cruzados sob o peitoril da janela, repousando neles. O sono era profundo. Era de se esperar, já que a Torre da Coruja da cidade de Tarenia não tinha muito movimento e o que restava para os Domadores era sentar e fingir ter um dia interessante.
A coruja se aproximava rapidamente e a garota ainda estava imóvel. De repente, a mesma é atingida com as garras da ave em sua cabeça que acabam cortando sua bandana alviceleste. De súbito, a moça acaba caindo para trás com a cadeira. O animal ainda se debatia sobre ela piando sem parar.
- Tira essa criatura daqui! - disse Kimberly, levantando-se rapidamente, tentando tirar a coruja com as mãos. O rapaz apenas ria da situação. - Não fique dando risadas! Me ajuda!
- Calma. - disse o garoto se aproximando lentamente dela. - Apenas fique parada e não se agite. Quanto mais você se desespera, mais afoita a coruja fica.
- Está bem. Vou tentar me acalmar. - disse a jovem, com os cabelos castanho-escuros desarrumados e o rosto arranhado. A coruja tentava se colocar em uma posição estável na cabeça dela. Finalmente, a ave consegue.
- Isso... - Perrylin ergue o antebraço para que a coruja pudesse pousar. Lentamente ele se aproxima do pássaro que o encarava fixamente. Para ela, o jovem não transparecia medo, mas uma calma serena e confortável que a fez pular para seu braço. - Viu!? Simples.
- Fale por você. - disse a garota indo em direção a um pequeno espelho que ficava em uma prateleira de madeira. Ela começa a arrumar seus cachos, penteando-os. - Se não fosse pelo meu pai, eu não tinha aceitado entrar nessa ordem.
- Ser filha de uma família de Domadores deve ser difícil. - disse Perrylin colocando a ave sob um cabideiro de madeira. Suas mãos começam a desamarrar a carta presa aos pés do animal. - Essa pressão familiar de você ter que seguir o destino traçado por outra pessoa... Eu acho isso ridículo.
- E você ainda continua aqui. Por quê? - perguntou Kimberly com uma leve risada. O garoto torna sua cabeça na direção dela, e a olha com um sorriso.
- Bem, diferente de você, eu estou aqui por necessidade. - ele toma a carta para si e a abre involuntariamente, não se preocupando com o conteúdo dela. - Se eu não arrumar algo para ganhar dinheiro, eu morro de fome. Essa é a desvantagem de nascer entre a plebe.
- Não irei discordar. - disse Kimberly rindo. Ela torna para a direção de seu colega e observa a carta. - O que tem escrito aí?
- Aqui diz: "Para Sotrena". - Perrylin enrola a carta rapidamente e amarra na corda, indo em direção a saída.
- Espera! Você não vai ler? - perguntou a moça.
- É uma carta direcionada a um nobre. Não pode ser lida por completo. É dever do Domador saber apenas o destinatário e o remetente. - respondeu o jovem.
- Pelo menos, me diz quem mandou?
- O conde Algrin. - Perrylin abre a porta e, como se estivesse esquecido de algo, volta um passo atrás. - Fique aqui, caso apareça mais uma carta.
- E se uma coruja cair em cima de mim de novo?
- É só não ficar na janela dormindo. Elas pousam nela. O resto, você me viu fazendo. - o moço sai do recinto e fecha a porta.
O palácio de Tocerya era contornado por um muro de pedras grandes e brancas. Existiam seis torres na barreira: duas ficavam nos lados da entrada, e as demais dispostas entre os cantos. Todas possuíam telhados azul-claros e uma bandeira com três coroas douradas bordadas nela. O local também dispunha de dois guardas com armaduras alvicelestes e espadas em suas bainhas, guardando a entrada.
Perrylin estava vindo a passos rápidos rumo aos soldados, mas não chegou a correr. Quando os alcançou, o mesmo abre uma bolsa de couro que estava prendida sob uma alça transversal e retira a carta de Algrin dando-a a um dos militares.
- Essa carta foi enviada pelo conde Algrin Toceris. - disse o Domador olhando para os dois guardas, alternando a vista. Não bastou mais uma palavra para que os soldados exercessem o pedido do emissário. O militar que pegou a carta assente positivamente e torna para trás, colocando a mão próxima dos lábios e bradando: "troca da guarda!" bem alto. Imediatamente, dois soldados se prontificaram para proteger a entrada do palácio, deixando os dois livres para ir em direção ao Salão da Triarquia.
O Salão da Triarquia era o local onde as duas irmãs do conde e o conde consorte, Vandalard comandavam o Condado de Tocerya. O recinto possuía seis pilares que o sustentavam feitos de mármore branco. Os mesmos eram dispostos na vertical divididos igualmente em duas filas de três colunas. Nos lados direito e esquerdo do salão, existiam vinte tribunas baixas onde os homens e as mulheres mais importantes do território eram convocadas para participar de questões econômicas, sociais e militares. No final do local, existia uma escada que levava ao trono do conde que, no momento, era ocupado por Vandalard. No meio da escadaria tinha um degrau mais comprido, e era passagem para as irmãs do conde tomarem tronos menores, um a esquerda e outro, a direita, pois eram as irmãs mais novas do conde Algrin.
Os dois soldados chegam aos portões do Salão da Triarquia. Eles se entreolhavam rapidamente antes de abrir os portões barulhentos que tinham um rangido desconfortante. Logo em seguida, os dois abrem as ombreiras, um de cada lado, e se ajoelham perante a Triarquia fazendo o cumprimento da Armada Real.
- Condessas, viemos aqui entregar uma carta do próprio conde Algrin que chegou agora pouco na Torre da Coruja. - um dos guardas ergue a mão com a missiva ainda amarrada. Uma das irmãs, faz um sinal para que o mesmo se aproxime. Ele obedece. Segundo a tradição toceryana, por mais que um conde consorte ficasse no lugar do titular, nenhum soldado poderia dirigir palavras diretamente para ele no Salão da Triarquia, mas somente ao restante dela. O militar sobe as escadas e, logo em seguida, se desvia para a esquerda, entregando a carta a Sotrena. A mesma examina o documento olhando por ambos os lados. Depois, começa a lê-lo em silêncio. Todos os nobres ali presentes estavam apreensivos, querendo saber do que se tratava a carta, porém nada saía dos lábios da condessa, apenas, de vez em quando, um leve balbuciar que não era perceptível ao longe.
Quando terminou a leitura, a mulher faz um gesto para que o homem se aproxime mais. O mesmo fica com os ouvidos próximos aos lábios dela que apenas sussurra uma mensagem. O soldado assente com a cabeça positivamente e, afastando-se em seguida, o militar cumprimenta as três autoridades maiores e, logo após, os nobres ali presentes e segue rigidamente em direção do seu companheiro que, erguendo-se, o acompanha até a saída do Salão da Triarquia.
- Como somos nobres dessa assembleia, apelamos pela transparência das informações que o conde Algrin Toceris trouxe ao condado. - disse Demond Glinth, um senhor calvo com uma barba bastante volumosa, mas não comprida. Ele se levanta ao pronunciar essas palavras.
- Não precisa se preocupar com o que a carta diz, senhor Demond. Sabe que não toleramos sair das rédeas de nossa lei. - disse Sotrena apenas empinando seu nariz e mantendo um olhar calmo na direção do idoso. O homem, envergonhado, toma seu assento. A irmã de Sotrena, Merina, olha para ela com preocupação.
- O que diz a carta... - disse Merina sendo interrompida pela palma da mão de sua irmã do meio que estava voltada para ela. Sotrena se levanta e, antes de pronunciar algo, olha para todos que estão presentes no recinto.
- Nobres de Tocerya. Como é de conhecimento de todos aqui presente, nosso conde, Algrin Toceris, foi para a Estera tratar de negócios no Festival da Primavera. E, segundo essa carta, lorde Ansemund solicitou mais soldados para reforçar a segurança na capital. Presumo que estejam satisfeitos. - disse Sotrena, sentando-se logo em seguida.
- Ele não especificou o motivo de um pedido repentino desses? - perguntou Odalessa Qamanda, uma mulher franzina, de cabelos castanhos com um vestido verde de bordados dourados.
- Assuntos delicados como esse, senhora Qamanda, são tratados da maneira mais sútil possível. - disse Sotrena.
- Imagine se, porventura, alguém abatesse uma de nossas corujas e obtivesse essa informação!? - disse Merina.
- Com isso, a condessa deduz que possam haver insurgentes em nossa província? - perguntou Odalessa.
- Vejo uma falta de lógica em seu argumento, senhora Qamanda. Sabe que apoiamos secretamente os insurgentes em Vadária e que não teríamos desavenças com os mesmos. - respondeu a condessa. Sotrena olha para a sua irmã com uma expressão de decepção. Em seguida, a mesma se volta para Odalessa.
- Não sabemos qual o real motivo da convocação de nossos soldados a capital. Mas, devemos obedecer a ordem do lorde. - Sotrena se levanta e, erguendo a cabeça, olha para todos ali presentes. - Está encerrada a assembleia.
As condessas e o conde consorte se dirigiram a uma porta que ficava a direita deles enquanto os nobres saíam pelos portões principais. Cheios de dúvidas e possibilidades instáveis em suas cabeças, o colegiado questionava tudo. Até a instabilidade da província e uma possível pressão do rei que, como era de conhecimento de todos, estava no festival. Será que a inquisição aos insurgentes iria acontecer na pacífica província?
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