Quando uma porta se fechar, várias janelas se abrirão
André
O hospital Jorge Aguiar se encontrava em completo caos. Funcionários e pacientes se movimentando desorganizadamente para lá e para cá, de médico só havia ele disponível no momento, já que seu pai, Dr. Tobias Aguiar estava operando um parto. Mesmo sendo um hospital particular as pessoas não paravam de chegar, empapadas de sangue, sujeira, chorando, exigindo atendimento, pobres e ricos. Toda essa parafernália humana acontecia às quase quatro da manhã.
Mas isso não era o pior, ainda havia a UTI. Estava sobre vigília do exército, toda a ala selada e vigiada por homens de fuzil. Tentara dialogar com eles, mas foi infrutífero, não queriam saber do hospital ser propriedade privada e aparentemente estavam tratando e isolando pacientes portadores do novo vírus. Como médico, André se constrangia por não saber muito sobre a misteriosa patologia.
O grito agourento que outrora ecoou da UTI instigava tanto o seu medo quanto sua curiosidade, contudo, a única coisa que enxergava daquela ala era à entrada de portas duplas, feita em madeira rústica e guardada em ambos os lados por soldados de semblante inabalável.
Uma cacofonia começou a crescer lá fora, nas ruas da cidade. Tiros, gritos distantes, sirenes. O que estaria acontecendo?
Afastou os temores da sua mente, ou pelo menos os suprimiu. Foi até a salinha do térreo onde ficavam os estoques de medicamentos. Lá um policial estava aguardando atendimento e com todas as enfermeiras ocupadas o médico resolveu atende-lo pessoalmente ali dentro, um dos poucos espaços livres e reservados, tendo também esperança de acalma-lo com a privacidade e silêncio relativo, já que o policial estava transtornado.
Era o marido da mulher que estava dando a luz, um homem alto e escuro, com olhos astutos que juntos a cabeça raspada passavam uma impressão de austeridade plácida. Seu transtorno se devia ao fato do Dr. Tobias ser visceralmente contra sua presença na sala de parto, porque os cortes de profundidade considerável em seu abdômen ofereciam mais chances de infecção ao bebê ou mesmo à mãe. O homem insistiu que estava bem e não precisava de tratamento, que era seu filho nascendo ali e precisava presenciar. Porém, em quesito teimosia ninguém podia com Dr. Tobias. Acabou aceitando sua situação depois de uma extensa discussão.
—Boa noite, sargento... Leandro não é? Vim dar uma olhada nesses cortes.
—Opa, tudo bem, doutor? — Disse visivelmente triste.
Os cortes eram curiosos. O sargento havia dito que foi um arranhão, de um louco, André supôs então que tinha sido um portador agressivo. Esse infectado certamente sentia lascívia em ferir, para causar esse resultado. Não era profundo nem muito grave, só que se tratando de unhas humanas, era um dano assustador. Esterilizou com cuidado, com certeza infecionaria se não fosse bem tratado, tendo em vista que os infectados mais agressivos constantemente eram os mais imundos. Sentiu um arrepio ao recordar a quantidade de portadores que estavam bem ao lado, na UTI. Não julgou necessário dar pontos, apenas tampar com gazes e faixas, dando um bom tratamento céptico.
O policial retornou então para a presença de outro da corporação, que por sua vez estava com sua família, uma adorável menininha de pouca idade, cabelos longos e negros, magrinha e miúda, com feições amáveis, ao lado, uma mulher que deveria ser a esposa desse colega, loira e de cara não tão amável, parecia mal-humorada. Leandro e o outro conversavam como bons amigos. Não sabia se deveria se sentir tranquilizado pela presença de autoridades que não fossem os impassíveis soldados do exército naquele caos hospitalar ou se deveria se amedrontar com os uniformes deles sujos de sangue seco.
Os únicos trabalhando no hospital eram Dr.Tobias, Dr.André e o corpo de enfermeiros: Cyntia, Rebeca e Breno. E assim a madrugada seguiu de forma turbulenta, com os profissionais se esforçando para ajudar a multidão aquela multidão afoita. Mais pessoas começavam a chegar, várias a sair.
Cinco da manhã. Foi quando os barulhos externos ficaram assustadoramente próximos, de certeza o que fosse a causa dos disparos, urros e gritos desesperados, estava já na rua do hospital. A ausência do pai, dono do hospital e quem tomava as decisões mais difíceis, deixava André inseguro. E o filho já havia sido ousado demais ao estender o atendimento a aqueles que não podiam pagar, as multidões miseráveis tocaram seu coração e sabia que era o mais humano a ser feito. Felizmente não precisou tomar nenhuma decisão.
—Fechem as portas e janelas, RÁPIDO! — Ordenou o policial amigo do Leandro, o que era branco e carrancudo e não estava tão em forma como o parceiro.
André foi ajudar, depois de hesitar alguns momentos. As pessoas demoraram em perceber que estavam em risco, avagarando em fechar as dezenas de janelas quadradas do local, e o que é pior, quando perceberam começaram a fazer muito barulho e a gritar, correr e pisotear uns aos outros.
No meio da bagunça, um estrondo fez o doutor dar um pulinho. Eram as portas da UTI, haviam sido escancaradas, praticamente no mesmo tempo em que as do hospital haviam finalmente sido fechadas.
Os soldados que outrora as guardavam parecendo estátuas pareciam bem vivos agora. Adquiriam a posição de sentido num estrondo intimidador. Todo o barulho na sala cessou quase que de imediato. Da ala vinha um militar seguido de mais soldados, e, aparentemente era um oficial de mais autoridade, a julgar pela sua farda e quepe. Caminhava a passos bruscos e olhando fixamente para os dois policiais.
Sentiu-se confortado, o exército faria alguma coisa afinal.
O oficial foi saudado com uma continência pelos policiais, depois de retribuir disse:
—Boa noite senhores, sou o Primeiro Tenente Bezoa — Dizia meio exasperado, talvez por hábito militar, talvez apressado pelo terror de lá de fora — Abram as portas.
O que? Ele só podia estar brincando...
Cerca de doze soldados já se punham a postos logo atrás do tenente com os fuzis recostados nos peitos.
—Você sabe o que tá rolando lá fora? — Disse Leandro, incrédulo.
—Melhor do que vocês, sim. Temos ordem de proteger o perímetro na rua do hospital. Agora, abram.
Os dois amigos ainda continuavam na frente da porta fechada trocando olhares significativos enquanto o tenente os encarava, o clima ficou tenso. De repente os rugidos se tornaram tão próximos que não podiam ser ignorados, e então pessoas, infectados agressivos pelo aspecto imundo e irado, começaram a surgir nas janelas que tinham sido esquecidas abertas pondo suas mãos para dentro e se jogando na sala. As aberturas eram estreitas, mas não o bastante para impedir a entrada daquelas criaturas.
E então tudo aconteceu ao mesmo tempo: Os pacientes começaram a gritar como se dependessem disso para respirar, e a correr para todo o canto. Todos que tinham uma arma a sacaram. Infectados dando gritos guturais corriam atacando as pessoas mais próximas e mordiam-nas vividamente fazendo o sangue vindo do pescoço de uma mãe tocar o teto tamanha era a brutalidade. André não conseguiu se mexer, não sentiu nada além do gelar de sua transpiração e um nó na garganta que se tornava cada vez mais apertado.
—ENTRAR EM POSIÇÃO, PRESERVEM OS CIVIS! — A voz do tenente se sobrepôs aos gritos.
—FOGO!
Agora sim a cacofonia era insuportável. Os fuzis eram tão escandalosos em sua imponência sonora que faziam seu corpo vibrar inteiro, isso o tirou do transe. Piscou repetidas vezes, e cada vez que seus olhos se abriam via um corpo diferente caindo e borrifando sangue na atmosfera e percebeu que as ordens do oficial não foram o bastante para evitar que algumas pessoas saudáveis morressem fuziladas. Eram rajadas descompassadas, alguns soldados ajoelhados e todos os civis correndo para as escadas ou para a UTI. André foi em direção às escadas, seu pai estava lá em cima, ainda estaria operando o parto com o barulho dessa confusão?
Na sua caminhada afoita pisou em alguns cadáveres, os cadáveres em si não o assustavam, já tinha se habituado à profissão, os tiros em si também não, como um morador do Rio já havia os escutado mais do que gostaria. Mas cadáveres metralhados, queimados, mordidos, e que em alguns casos ainda se mexiam caçando pessoas para atacar eram outra coisa. E presenciar tiros de fuzil incessantes e os seus resultados, pintando o ambiente de vermelho, era diferente de apenas ouvir disparos.
Finalmente chegou à escadaria, se segurou firmemente para não cair, viu uma moça sendo pisoteada, esboçou alguma reação, mas novos rugidos raivosos na sua retaguarda e empurrões o fizeram seguir na subida o mais rápido que pôde.
A última coisa que escutou foi alguém gritando "A COMPANHIA CHEGOU!"...
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