A Cavalaria

Miguel

Comboio militar, Minas Gerais, maio de 2019.

Por volta das duas da tarde o sol se mostrava tirano e impassível no céu azul-celeste acima do comboio. Miguel estava ensopado naquela farda, dentro daquele caminhão com cobertura de lona. A iluminação tinha um aspecto verde-forno dali de dentro. Seu cantil reabastecido com gelo há menos de meia hora estava novamente morno. O comboio havia parado brevemente em Uberaba, cidade próxima da divisa Minas com São Paulo, na BR-050. Estavam bem próximos depois de dias em movimento, finalmente... Quase havia esquecido o que estavam indo fazer.

Piadas eram trocadas com frequência ali, um dos únicos passatempos. E ele se mostrava bom nisso, o que era útil, pois poderia esquecer-se do calor contando algumas.

Após quase duas horas de estrada, o caminhão freou bruscamente e os soldados se espremeram e desequilibraram, mais uma vez a tropa diminuía o ritmo. Civis na rodovia novamente, com certeza.

Miguel viu o soldado branquelo de sotaque engraçado sair do transporte com a freada. O teto de lona era sustentado por hastes metálicas arqueadas, como um túnel verde, mas na entrada que também era saída não haviam portas ou bloqueios. Foi fácil simplesmente descer com a velocidade reduzida, mas por quê? A sua típica curiosidade inflamou, e ninguém parecia ter notado aquela deixa apressada, nem o sargento. Instintivamente, guiado pelo seu ímpeto natural e pelo tédio assombroso que a longa viagem lhe impôs, Miguel foi até a saída. Colocando a cabeça para fora pôde sentir o ar fresco e menos abafado beijar seu rosto, mas o sol também o abraçava com um calor febril.

Viu o misterioso homem de Aissur, ou seja lá de onde ele fosse, se deslocando rápida e precavidamente por entre o comboio agora parado. O jovem sergipano, como alguém perito em aprontar, reconheceu de imediato que aquele ali estava aprontando também só pelo jeito de andar. Desceu do caminhão e o sargento não reclamou, afinal era normal que alguns descessem nessas paradas para fazer suas necessidades. Agora, praticamente se jogar do caminhão enquanto ele ainda freia como o homem albino fez não era assim tão comum, pensou.

Prosseguia na perseguição, com o cuidado de não ser notado, o perseguido as vezes parava próximo a algum veículo e olhava por baixo dele, apalpava suas maquinarias, como se estivesse conferindo alguma coisa. Miguel dava risinhos internos só de imaginar o que o sujeito poderia estar tramando, ouvia cada história nos quartéis...

A diversão do momento o lembrou do seu irmão mais novo e do quanto aprontavam, os risos viraram sorrisos bobos de saudade. Ah, também tinha seu avô... Teria tanto o que conversar com ele sobre o exército, ele iria adorar saber de tudo, com certeza. Já que também havia servido ao exército em sua juventude e não poupava chances de relembrar a todos sobre suas histórias da época.

O intrigante estrangeiro subiu num dos caminhões de transporte que estava bem mais a retaguarda daquele em que os dois viajavam, e só agora Miguel notou como já haviam se afastado.

Ele parou do lado de fora do caminhão quando ouviu a voz arrastada:

—Estes motocicletas estão abasterrrcidas? — O que ele queria no caminhão de motos?

—Sim — Respondeu uma segunda voz hesitante — Por quê? O que você tá fazendo aqui?

Miguel ouviu passos bruscos. E depois um barulho similar ao som que ouvira quando sua avó golpeava carne suína com força, para separar as partes. Só que era mais breve e lânguido, o som foi acompanhado de um gemido sofrido e baixinho. E então, o barulho de algo caindo no chão da carroceria. Seu coração acelerou, o silêncio imperou. Era possível ouvir apenas murmúrios distantes e descontraídos, de soldados conversando e rindo de dentro dos incontáveis veículos.

Estava ao lado do transporte, próximo à lona, dando passos cautelosos para trás quando escutou novamente a voz arrastada, só que berrando altivamente e com mais agressividade:

Medved' prosnulsya! — Miguel nunca conseguiu compreender com clareza o que aquele homem disse.

O som de disparos arrebatou a paz do local, tiros isolados, mas sem dúvida, tiros. Seu coração saltava, não sabia o que fazer. Ouvia gritos e vozes aflitas por todas as partes do comboio parado... Mais tiros e o som de moto acelerando romperam o ar.  De repente vislumbrou o homem que a pouco seguia saindo do caminhão num salto, pilotando uma robusta moto verde. Voava veloz e ruidosa.

Novos disparos, não eram muitos, mas eram frequentes. Perguntou-se o que o seu avô faria. Já suava frio, o calor não existia mais. A garganta secou. E como se sua pergunta recebesse resposta, se jogou para baixo da carroceria do caminhão, deitando no chão e rolando com agilidade. Não soube dizer de onde surgiu essa reação.

Retomou alguns dos seus sentidos quando seu corpo rolou pelo asfalto fervente. Embaixo daquele porta-motos ele pôde analisar melhor a situação. O soldado estranho se afastava do pelotão e da rodovia, seguindo para as pastagens ao redor em alta velocidade. Percebeu algo incomum na carroceria, próximo as rodas: Um piscar discreto de um brilhosinho vermelho. Depois de alguns segundos reconheceu que aquilo parecia ser algum tipo de explosivo bem escondido. Enregelou. Já havia feito algum estudo teórico sobre explosivos, mas não fazia ideia de como desarmar um. Proibiu-se de ficar paralisado e começou a rolar. Saiu do outro lado do caminhão, próximo ao fim da rodovia com o mesmo movimento com que entrou ali.

Sentia-se exposto. Havia deixado o fuzil e o elmo de guerra no veículo. Idiota, estúpido, vou mor... — Mais disparos, agora em maior quantidade, atrapalhavam seus pensamentos. — O que está havendo? 

Como se uma fagulha de lucidez nascesse em sua mente, recordou da aparência do explosivo, e analisou que deveria ser detonado remotamente. Em um acesso de coragem, ou de estupidez —  não saberia dizer qual deles até o seu último suspiro — Subiu no porta-motos e montou numa das motocicletas, imitou os movimentos do traidor. A motocicleta era veloz e em nada se parecia com a humilde vespa que possuía em Sergipe. Rapidamente saltou do caminhão decidido a ir atrás daquele branquelo. O vento fresco o envolvia no percurso de segui-lo, e a cacofonia do comboio às suas costas o lembrava constantemente do porquê não deveria simplesmente ir embora... Não era o que seu avô faria, simplesmente abandonar seus companheiros...

Quando recobrou o juízo percebeu que estava a pelo menos cem metros da caravana bélica. Principalmente quando explosões irromperam  na caravana a pouco deixada para trás. O medo voltou a apalpar seus nervos quando ouviu e sentiu aquelas explosões. Olhou para trás por cima dos ombros, enquanto pilotava a moto perseguindo o homem. As incontáveis erupções explosivas lembravam cogumelos de fogo e ungiam o comboio de fuligem e pânico, de destroços e impactos assombrosos. Não pôde perceber, mas as explosões se concentravam nos veículos de suprimentos e de infantaria. Os carros de combate pareciam fortalezas em meio aquelas cataratas de chamas, mal se abalavam.

O terrorista, ou seja lá o que fosse, ainda não havia lhe notado, graças a tantos ruídos grotescos e impressionantes. Estava a uns cinquenta metros dele agora. O suficiente.

Freou a moto num movimento brusco. Desceu e tirou a pistola do coldre. Apontava para o terrorista que, a essa distância parecia problematicamente menor. Fechou um dos olhos para mirar, nunca tinha feito isso antes. Não em alguém. Suspirou fundo. O som do disparo pareceu para Miguel um estalo veloz, o recuo foi considerável, mas não abalou seu braço. A moto do homem de repente começou a desequilibrar e capotar, dali onde estava só via poeira e terra em meio a figura disforme dela capotando com seu cavaleiro.

Sentiu o suor frio numa farta poça na suas costas. Sentiu novamente o vento. O sol mineiro.

Abaixou a arma e começou a caminhar em direção ao local do "acidente". A moto estava entortada e suja, a poeira rala flutuava no ar dando uma visão nublada do corpo do piloto, que estava estirado próximo à moto.

Quando ficou a menos de trinta metros do corpo o jovem mudou de ideia, decidindo que não queria ver o produto cadavérico de seu primeiro assassinato. Deu meia volta e viu soldados por toda parte lá longe, na rodovia, correndo em meio às chamas. Viu também o rastro de veículos que deixaram o comboio e seguiram pelas pastagens, veículos carregados de soldados, provavelmente traidores, infiltrados, terroristas, malucos, quem poderia saber? Haviam destroçado um majestoso comboio com apenas uma dúzia de homens, uma ação de implosão usando infiltrados. Levaria horas, dias, para remover as carcaças dos veículos detonados e para contar e tratar dos mortos e feridos. A cavalaria fronteira continuava irresoluta, os helicópteros no céu intactos, e os tanques da retaguarda também, mas do que isso servia? Sem provisões e com metade da infantaria carbonizada... Não precisava de uma patente alta ou de experiência para perceber o que aquilo significava. A impossibilidade do comboio seguir em frente. Um desastre.

Aproximava-se de sua moto quando um impacto o fez dar um passo para trás, um impacto precedido do som de disparo. Sentiu um liquido escorrendo na sua coxa. O infiltrado outrora derrubado estava de pé, à sua retaguarda, e quase recomposto. Não fosse pela mão livre apertando o o ombro do braço que empunhava a pistola ninguém poderia dizer que fora ferido.

Mas foi justamente aquele ferimento à bala próximo ao ombro, resultado de uma surpreendente mira contra um alvo em movimento que salvara o jovem sergipano. O homem quase albino de olhos negros tinha uma mira ainda mais impressionante, era um agente de elite, contudo, de nada lhe servia se não conseguia erguer muito o braço dominante. A bala próxima ao ombro o privava desse e de vários outros movimentos. Não fosse isso, a cabeça teria sido o seu alvo primário. E não o cantil do soldado brasileiro, que agora inundava a coxa dele de água.

Miguel ficou paralisado por quase um segundo, e depois empunhou sua pistola calibre 9 mm. O desespero tomou conta e ele disparou repetidas vezes contra aquele fantasma. O fantasma revidou.

O revide quase o fez gritar quando perfurou sua outra coxa, a que estava seca, o obrigando a ficar de joelhos, sentiu uma onda de dor se alastrando por toda a perna como se toda a coxa tivesse sido retalhada. Um de seus disparos tinha atingido o fantasma na barriga, e, parecia mesmo um fantasma... branco como polvilho. Mas ele voltou a atirar. Miguel quase desmaiou, e por alguma força inumana voltou a disparar também. Assim, ambos trocaram tiros de maneira assombrosa, cada qual lutando para permanecer de pé e revidar, um total de quase doze tiros pôde ser ouvido daquele duelo faroestiano nas redondezas inóspitas da rodovia. No fim, ambos jaziam inertes no chão, o Aissurano morto e Miguel quase inconsciente de dor.

Não saberia dizer onde ou quantas vezes fora atingido, alguns disparos foram suavizados pelo colete, mas ainda assim, era difícil fazer qualquer movimento ou sequer respirar. Não conseguia tampouco falar e sentia o gosto férreo e a textura do sangue na sua boca. Até agora não saberia dizer se agiu com coragem ou estupidez. O que teria feito seu avô? Voltou a se indagar... De certo ele compartilharia o ocorrido com todos aqueles com quem conversasse, mas agora que vivia aquilo, pouco prazer sentia do momento. Era terrível, terrível e dolorido. Mal sabia ele que não precisava se preocupar com isso, pois nunca mais compartilharia nada com ninguém. Mal sabia Miguel que, se vivesse para ver o que viria a seguir em seu país, talvez até desejasse aquele momento. E assim, estirado e sangrando debaixo do sol, o jovem sergipano encontrou seu fim.

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