DOIS


GISELE


Abro os olhos e pisco um pouco tentando me adaptar a claridade que vem da janela sem cortinas, lá fora a chuva ainda cai faz três dias que está chovendo direto aqui na região e o clima de nostalgia e preguiça toma conta de mim, mas infelizmente ficar na cama curtindo o dia chuvoso não é uma opção para mim. Esfrego as mãos sobre o rosto tentando fazer com que minha mente e meu corpo se despertem totalmente, o relógio de cabeceira marca 7:30 e eu suspiro antes de finalmente colocar os pés no chão frio e levantar da cama. Como ontem não tomei banho para dormir, essa é a primeira coisa que eu faço para começar o meu dia. Suspiro antes de entrar embaixo do chuveiro, pois a água está mortalmente gelada. Entre pulinhos e pequenos gritinhos pelo efeito da água fria em minha pele eu termino rapidamente o banho, os próximos passos são escovar os dentes e dar um jeito de fazer os cachos rebeldes do meu cabelo se arrumarem em um coque baixo.

Saio do banheiro minúsculo que temos aqui no apartamento e volto para o meu quarto, me troco rapidamente colocando a blusa de uniforme da sorveteria a uma calça jeans que com toda certeza já viu dias melhores, calço meu único par de tênis e por fim uma grande blusa de moletom que eu já deveria ter jogado fora, mas simplesmente não consigo me livrar, quando termino de me vestir estou pronta para o trabalho.

Quando chego na sala o sofá está vazio com certeza meu pai está apagado no quarto depois de toda bebedeira de ontem, se bem conheço a peça ele não vai sair de lá antes do fim da tarde quando voltará a beber, olho para a cozinha e minha mãe está escorada no fogão, tomando uma xícara de café ela apenas olha pra mim sem demonstrar nenhuma emoção, eu não digo nada, nem mesmo um bom dia, amenidades como essa não fazem parte da rotina desta casa.

Nem me preocupo em tomar o café e saio para o corredor em direção as escadas, moramos no sexto andar e o prédio não tem elevadores por isso tenho que enfrentar o lance de escadas todos os dias, eu encaro isso como a minha dose de exercícios diários. Algumas crianças passam por mim descendo as escadas correndo e eu sorrio, durante o dia esse parece ser um prédio normal e feliz em nada lembra o lugar sinistro dominado pelo tráfico de drogas que isso se torna ao anoitecer.

Eu e minha família viemos parar aqui por obra do destino, quando o pai dele nos expulsou da fazenda meu pai Pedro procurou trabalho em todas as outras lavouras e fazendas da região, mas ninguém o quis contratar com certeza por influência dos Dionísio, então viemos para a capital em busca de oportunidade de emprego, mas a coisa ficou pior... não havia nada para um homem que sua única profissão havia sido capataz de fazenda no interior e que tinha estudos apenas ate a quarta serie, e assim acabamos nas ruas. Foi assim também que meu pai começou a beber, qualquer trocado que amássemos acabava sendo gasto em bebida e muitas vezes eu e mamãe passávamos vários dias com fome.

Quase seis meses depois uma assistente social nos achou e fomos para um abrigo e fizemos inscrição para entrarmos em um programa de moradia do governo. Algum tempo depois estamos aqui nesse conjunto habitacional, não era muito, mas comparado a viver na rua se tornou um palácio.

– Bom dia dona Ana -- Cumprimento a idosa de pele negra e cabelos totalmente grisalhos que está sentada em sua cadeira habitual na entrada do prédio, ela esta quase cega, mas segundo ela mesma gosta de ficar na porta sentindo o movimento.

– Bom dia minha filha, hoje pode ser de morango? – ela pergunta e eu sorrio, desde que comecei a trabalhar na sorveteria todos os dias no fim da tarde trago um picolé para ela.

– Vou separar o mais gostoso pra senhora, mas agora eu tenho que ir.

Chego à sorveteria o bairro faltando apenas cinco minutos para o horário de abrir, entro pela porta dos fundos e corro para dar conta de limpar tudo e organizar as coisas, dona Cora não gosta de atrasos mesmo nos dias chuvosos a soverteria é aberta no horario, sim a sorveteria e da dona Cora, ela vende sorvetes durante o dia e sexo anoite, uma mulher de visão é o que eu sempre digo a ela, mas no fundo sei eu a sorveteria e só fachada para justificar o dinheiro que ela ganha em suas atividades noturnas .

Quando eu comentei com ela há um ano atrás que precisava de mais dinheiro primeiro, como sempre, me ofereceu para fazer programas o que eu prontamente neguei, não que veja algo de errado com o que as meninas lá fazem, quem sou eu para julgar? Só que não é para mim, eu vejo todos os dias o que Amanda passa e sei que não daria conta de viver a metade de tudo aquilo. Com certeza eu conseguiria mais dinheiro do que venho ganhando, mas o desgaste emocional é muito alto. Então quando recusei ela me disse que a antiga atendente aqui da sorveteria estava roubando dinheiro do caixa então ela precisava de outra pessoa eu prontamente aceitei a oferta e nunca tirei um centavo sequer daqui nem tanto por eu ser honesta, mas sim porque depois de ser demitida nunca mais soubemos notícias da outra garota, dona cora tem alguns amigos muito perigosos e só uma pessoa sem amor a vida teria coragem de tentar enganar a senhora.

Depois de limpar a sorveteria em tempo recorde abro as portas, hoje é sábado é normalmente é um dia de movimentado, mas quando levanto a porta de alumínio vejo que o mundo está desabando em chuva, ela aumentou muito desde o momento que sai de casa, o dia está totalmente cinza e tem poucas pessoas pela rua a dona Cora não vai ficar feliz hoje.

Em um piscar de olhos já é meio dia e minha barriga ronca de fome, pego algumas bolachas que trouxe na minha mochila e esse vai ser meu almoço, pois nem deu tempo de fazer uma marmita para trazer, quando estou terminando meu lanche vejo o professor entrando e já fico animada.

– Boa tarde Gisele – ele comprimenta colocando o guarda chuva de lado e retirando o casaco grosso que usa para se proteger da chuva.

– Boa tarde professor João, eu amei o livro, o final me deixou triste, não acredito que no final ela morreu, eu torci tanto por ela – vou logo falando sem parar sobre o livro que ele me emprestou no início da semana. Eu usei cada minuto do meu tempo livre para ler as páginas que contava sobre a jovem menina que estava se escondendo com sua família.

– O Diário de Anne Frank é mesmo um livro impactante, vamos aproveitar o embalo e hoje falaremos sobre o holocausto.

O professor João vem sendo uma luz na escuridão em que minha vida se encontra, eu o conheci no prédio onde eu morro ele é um professor de história aposentado que ao se separar da esposa acabou alugando um apartamento em frente ao meu, um dia conversando contei a ele que não havia terminado ensino médio, mas que meu grande sonho era fazer uma faculdade e então ele se ofereceu para me dar aulas para que quando eu tivesse a oportunidade de voltar a estudar não estivesse tão atrasada em relação as outras pessoas.

"Eu sou um apaixonado por educar, fiz isso durante quarenta anos da minha vida e consigo perceber quando um jovem tem potencial e o mais importante: interesse e eu vejo isso em você Gisele." Foi o que ele me disse quando questionei por que ele queria me ajudar, na minha breve vida sobre a terra eu aprendi que ninguém liga muito para mim ou para o meu futuro. Mas como ele estava disposto a me ajudar eu agarrei a oportunidade com unhas e dentes, pois eu quero ser alguém na vida me recuso a passar o resto dos meus dias fadada a trabalhar como garçonete num prostíbulo.

Então todos os dias ele me dá aulas sobre assuntos variados e me empresta vários livros, eu ainda não sou boa com matemática nem com língua portuguesa, mas a biologia e história me encantam. Como não tem cliente algum na sorveteria consigo duas horas de aula tranquila com o professor João, ao final devolvo a ele o livro da Anne Frank e ele me entrega um exemplar de "A revolução dos bichos".

– É um livro para crianças? – Pergunto confusa pelo nome e pela capa que tem alguns porquinhos ilustrados

– Longe disso, mas não vou falar mais nada, pois quero que você tenha a experiência completa, agora vou pra casa pois está quase na hora do jogo e meu Atlético vai jogar.

– É vai perder, nunca será o maior de Minas como o meu Cruzeiro – falo provocando, pois sei o quanto ele é apaixonado pelo Atlético Mineiro.

– Não seja abusada Gisele porque senão não te empresto mais meus livros. – Ele fala e eu o olho horrorizada enquanto ele me dá as costas e vai saindo abrindo seu guarda-chuva de cor preta.

O resto da tarde se arrasta, eu reclamo dos dias movimentados porque me fazem ficar extremamente cansada, mas dias como esse são piores pois, o tempo parece não passar e só não estou mais entediada porque o livro que o professor João me deu mais cedo faz o papel de me entreter.

De repente um barulho estrondoso toma conta de todo o ambiente, é tão alto que dói nos meus ouvidos e faz as paredes da sorveteria tremer ao ponto que várias taças vão ao chão se transformando em vários cacos de vidro. Em um impulso puramente instintivo eu me jogo no chão e me escondo embaixo do balcão, tapando os ouvidos com as mãos.

Depois de alguns segundos tudo se acalma e quando estou prestes a levantar para ver o que aconteceu outra vez um som estrondoso toma conta de tudo, dessa vez as paredes e até o chão embaixo de mim treme e imagino que ou é um terremoto ou o fim do mundo chegou, e como eu acho impossível um terremoto em Belo horizonte Minas gerais acho que a segunda opção é bem mais provável.

Mal sabia que o mundo todo não estava acabando, mas o meu mundo sim chegou ao fim. Tudo que eu tinha literalmente desabou me deixando mais desamparada e sozinha do que jamais estive em toda minha vida. 

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