33º Capítulo
9 de janeiro – Uma última vez, a Prisão
Pude compreendê-la, vê-la no seu estado mais caótico, há tantas centenas de anos. Não só através das suas palavras pude perceber o horror que ela vivera, como também através das mudanças que ocorriam, lenta e macabramente, no seu corpo. Pude ver o rosado rugoso que habitou o seu braço e que lhe trepava pelo ombro, desfazendo também o seu cabelo negro. Mas, além dessa visão, Ela mostrou-me mais. Mostrou-me como foi arder, como foi estar colada à estaca de madeira e às chamas. E pude ver o seu rosto desfigurado, o nariz feito apenas de duas covas sob uma face de pele estalada. Pude ver os seus olhos que já não eram olhos, porque eram apenas pele colada a pele, sem um único vestígio de pálpebras. Pude ver o seu corpo queimar até às cinzas e, por fim, renascer até reencarnar a jovem bela que estivera diante de mim pouco tempo antes.
E era agora assim, esbelta e jovem, que Ela me falava, com todo o seu poder mas também com toda a sua confiança depositada em mim. Ironicamente depositada em mim.
- A minha tia fora considerada uma bruxa, e durante muito tempo eu estive tão distante de o perceber...- Fita-me de forma intensa, os olhos esbugalhados de uma forma estranha enquanto tenta, aos poucos, contar a sua sôfrega história.- Quando a minha tia me pedia para mexer a sopa que fervia no lume bravo, nunca sequer desconfiei que era uma receita, uma maldição saborosa. E quando ela percorria os traços que compunham a minha mão, nunca sequer desconfiei de que ela me estivesse a ler a sina. Ou melhor, sabia o que a minha tia fazia, mas tinha a capacidade de não ver maldade nas suas intenções. Aprendi todas essas coisas também, por inocência e curiosidade, tal e qual como uma criança aprende a cozinhar.- E, apesar de estar desde há muito tempo a olhar para mim, só agora ela me observa realmente. E os seus olhos escuros estão cada vez mais cor de mel, o que apenas salienta as suas pestanas compridas e as suas olheiras sob a pele pálida e doente do seu rosto. E esta aparência assusta-me, talvez porque sei o que acarreta: uma dor de quatro séculos.- Mas a minha tia não era má, e apenas a queimaram por crueldade. A procura pela paz foi apenas o pretexto que arranjaram para o justificar.
Repentinamente cala-se, observando-me de uma forma estranha o rosto. Consigo ouvir o meu engolir seco, e percebo que a minha mão gélida não tem a coragem que o meu coração anseia ter para lhe acariciar o cabelo, lhe reconfortar e dizer «está tudo bem agora, está tudo bem».
- E quando eles morreram?- Hesito, com medo de ver um aceso sentimento de raiva trespassar-lhe o rosto, ou pior: aquela dor forte e lancinante no peito, que a levará às lágrimas. E eu não quero ver a minha bela Morte chorar.- Recebeste-os aqui? Aos guardas, às pessoas... a todos os que te magoaram?- Pergunto, cada palavra saindo arrastada da minha boca.
E, para minha surpresa, o rosto dela mantém-se calmo, demonstrando uma maturidade antiga que vai muito para além da idade que ela aparenta. Porque, por entre a aparência jovem a que Ela nos induz, a sua postura, as suas palavras e, sobretudo, aquele brilho no seu olhar, desmascaram-na, provam a sua antiguidade.
- Sim, e vi que não eram tão maus quanto eu julgava. Porque, por entre a escuridão dos seus corações, um feixe de luz provinha dos seus interiores. E basta um feixe de luz para iluminar tudo o resto.- Humedece os lábios e, lentamente, volta o seu olhar para mim. Um olhar sério e pensativo.- Entendes o que estou a dizer?
E eu assinto, porque percebo o que ela está a dizer.
- Foi assim que percebi que todos merecem perdão, meu Anjo. Porque foi por pessoas como tu que eu morri, no entanto, quando aqui chegaram, percebi que eram apenas pessoas, almas frágeis tal como a minha, tal como a tua. E para todos nós há o perdão. Desde que haja aquele ponto de luz que ilumina o resto da escuridão. E sempre o houve, em todos os corações que por aqui passaram.
E, quando os lábios Dela se encerram novamente e o silêncio mortal de novo invade esta cela, percebo que consigo ouvir o mais ínfimo ruído: todos os meus sentidos dolorosamente despertos, alerta. E, de entre esses ínfimos ruídos, o que mais me perturba é o provocado pelo pestanejar dela – sim, o pestanejar.
Entretanto, a jovem bela à minha frente levanta-se gloriosamente, indiferente à sua própria beleza, com um ar nostálgico, como o de quem se está prestes a despedir de outro alguém.
Como ela está prestes a fazer agora.
* * *
E ali está ela, tão próxima, mas tão distante; tão bela, mas tão nostálgica; tão imponente, mas tão carinhosa; tão viva, mas tão mortal. E quando, de costas para a pouca luz que adentra nesta cela, ela se endireita de forma tão bizarra, baixa a sua cabeça, olhando para os seus próprios pés despidos, e estende os seus dois braços lentamente, como um corvo faz antes de se lançar num voo livre, eu sei o que ela fará. E controlo um soluço por isso: porque não posso impedi-la, mas porque também não o posso aceitar.
E agora, a pouca distância de mim, encontra-se ela, ofuscada pela luz pálida que lhe ampara as costas, com dois terços estendidos diante de mim: um dos terços enrola-se-lhe, em voltas irregulares e estranhas, a partir do ombro direito, prosseguindo pelo braço firme, jovem, acriançado, e caindo por fim pela mão de unhas arredondadas e infantis, deixando uma cruz pendente, que baloiça no ar, apenas segura pelos seus dedos firmes. E, do lado esquerdo, um outro terço igual enrola-se-lhe no braço esquerdo e mergulha a sua cruz no ar, mesmo abaixo da sua mão. Mas, nesse seu lado esquerdo, o ombro está levemente mais descaído, e o braço é rugoso e flácido, e a mão é encarquilhada e de unhas longas e amareladas. Tudo isto se me é apresentado, com a sua cabeça baixa para o chão, e o seu emaranhado de cabelos pretos tapando o seu hipnotizante rosto.
E eu sei o que tudo isto significa, mas mesmo assim fico surpreso quando ela me diz, não estremecendo uma única vez naquela estranha posição:
- Escolhe uma das mãos, escolhe o teu destino.
Ela disse que apenas havia paz, mas mesmo assim apresenta-me a juvenil mão com passe livre para o Céu, e a velha mão com passe direto para o Inferno. E eu sei que tudo isto é apenas um teste, mas também sei que, qualquer destino que escolha, me levará para longe Dela.
E, se qualquer destino que escolha me levará para longe Dela, prefiro então não escolher nenhum, perder-me no mundo onde por tanto tempo habitei, com esperanças de um dia voltar a encontrá-la.
Por isso, aproximo-me, lentamente, passo a passo, fixando o meu olhar na sua nuca, pois ela não me fita diretamente. E os meus passos ecoam pela sala, tão lentos, tão perdidos, mas, a poucos metros dela, tornam-se estranhamente firmes.
Porque por fim percebi o que escolho.
* * *
Num movimento rápido, ergo os braços e puxo, ao mesmo tempo, os seus dois pulsos, deixando cair no chão frio e duro aqueles dois terços outrora pendentes. Puxo-a para mim e abraço-a, sentindo a textura suave do seu vestido, e o seu corpo magro. Sinto o seu cheiro adocicado de criança, e o seu cheiro amargo de velha. E sinto-a, toda ela sem disfarces.
- Escolho-te a ti, minha bela Morte, escolho-te a ti.
E o seu corpo, que durante todo este tempo se encontrava flácido, como um peso morto, envolveu-se por fim no meu, as suas mãos apertando os meus ombros.
- Não me podes escolher, meu Anjo.- Diz ela, hesitante, e afasta-se o suficiente para que eu consiga ver nas suas maçãs do rosto aquele tom rosado tão maravilhoso.
- Porquê? Outrora escolheste-me tu como teu Anjo. Deixa-me agora escolher-te como meu Destino.
Por momentos, ela hesita, porque também ela é uma alma sempre em tumulto, mas depois sorri, lágrimas de alívio escorrendo pelo seu rosto.
- Tens razão, meu Anjo.
E, por entre a frieza daquela cela, o seu beijo aquece-me, e por entre o escuro dos seus olhos, algo se ilumina quando encontram os meus. E é tudo um sonho, uma mistura de sons, cores, toques, até que, lentamente, o nosso beijo termina, e ela diz:
- Vamos.
Hesito, não querendo estilhaçar talvez a minha única oportunidade de ser feliz, mas sem deixar de pensar nas outras almas tumultuosas que anseiam a paz.
- E as almas, minha bela Morte?
- Ficarão bem. Serão aguardadas no mais magnífico jardim de perfumes e cores, e colhidas por alguém que as guiará magnificamente. Serão guiadas por uma alma pura que, apesar de todos os erros que cometeu, é apaixonada por rosas... vermelhas como o sangue.
Ela agarra na minha mão, entrelaçando os seus dedos finos nos meus, e dirigimo-nos em direção à luz. Mas, desta vez, ela não me guia, pois está a meu lado, confiando em mim e na luz à nossa frente.
Para onde quer que ela nos leve.
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