31º Capítulo

9 de janeiro – Uma última vez, a Prisão

- Eu não te mereço.- Murmuro.- Eu não te mereço.- Sibilo.- Eu não te mereço.- E, desta vez, a vergonha abafa a minha voz, e as minhas palavras misturam-se com o silêncio.

Em resposta, apenas um silêncio mortal e a arrogância do chão frio e áspero onde me encontro agora, encolhido sobre mim próprio. Esforço-me por não chorar, mas a verdade é que o meu rosto já está molhado pelas lágrimas anteriores, pelo que não faz mal se eu chorar mais um pouco.

E a bela Morte não passou de uma ilusão, certo? O silêncio mudo é apenas mais uma prova disso. E o vazio alastra-se, mas não muito, porque eu já sabia que a minha imaginação era uma traidora.

- Ó meu Anjo...- Sinto, repentinamente, uma mão a roçar na minha nuca, e a frieza da sua pele desperta-me. Depois, percebo que a mão não está a roçar na minha nuca e sim a afagar o meu cabelo.- Meu doce Anjo...

Tento erguer o meu olhar até àquela voz tão familiar, mas a dor é mais forte e eu apenas agarro a minha barriga com mais força. Oiço algo a roçar o chão e um tecido branco preenche o chão que eu fixo, ofegante.

Sinto-a ajoelhar-se diante de mim e, num movimento delicado mas rápido, Ela estende o seu braço e pousa a sua mão na minha barriga, tocando na minha ferida. Misteriosamente, a minha dor não se intensifica.

- Essa dor que tu sentes, meu Anjo, não é real, e tu sabe-lo.- Ela envolve o meu rosto com as suas mãos, levando-me a erguer o olhar até ela.- A culpa que tu sentes é real. E o medo e a solidão que te perseguem e que te embalam à noite, também são reais. Mas esse punhal não.

- Já foi.- A minha voz está tão trémula quanto os meus lábios, e o suor escorre por toda a minha pele esbranquiçada.

- Há três séculos.- Vinca.

As suas mãos abandonam o meu rosto e ela continua à minha frente, mas desta vez com as pernas debaixo do seu corpo, sustentando o seu peso leve; tão serena e aliviada como se tudo se tratasse apenas de um piquenique com amigos. Um piquenique com amigos, no meio de uma cela e com um idiota suado e ofegante a olhá-la com admiração mas, mesmo assim, um piquenique.

- Como um bom mensageiro, calculo que o Óscar te tenha entregue a minha mensagem.- A sua face, pálida e iluminada.

- Entregou.- Confirmo, como um garoto obediente.

Ela observa o meu rosto e os meus mínimos reflexos com uma astúcia que me surpreende, e só agora me dou conta do quão imundo, esfarrapado e desesperado me encontro.

Momentos tão inoportunos para nos encontrarmos sempre, Morte. Penso, mas depois reprimo esse pensamento, envergonhado. Tão poderosa que Ela é, quem me diz que não poderá ler os meus pensamentos como quem lê um livro? No entanto, apesar de afugentar esses meus pensamentos, não consigo afugentar o rosa-escuro que habita agora as minhas bochechas.

- Então sabes que tenho muito a agradecer-te.- Ela sorri, um sorriso sincero.- Obrigada por me teres ajudado, por me teres tirado este peso tão grande de cima. Salvaste tantas almas, e por isso sim te chamo com todo o meu orgulho de Anjo.- Num pequeno reflexo, abano a cabeça em discordo.- Lembra-te que não as salvaste apenas a elas, mas também a mim.

Agora o pequeno reflexo torna-se num grande reflexo, e eu não consigo parar de abanar a cabeça. Eu não sou um Anjo, não sou um Anjo. Monstro, covarde, mau. Mas não um Anjo, não um Anjo.

- Eu sou um monstro, não um Anjo.- Ela inclina a cabeça, deixando cair o seu longo cabelo preto em cascata, e a sua expressão... a expressão de quem, por mais que tente, não entende o que lhe é dito.- Eu matei uma pessoa.

- Tu não premeditaste o que aconteceu.- A sua voz melodiosa preenche todos os cantos desta cela, e todos os cantos da minha alma.- E, mesmo que fosses um ladrão egoísta, devo relembrar-te que passou muito tempo. E durante esse tempo tu salvaste almas e guiaste-as e redimiste-te. Isso só mostra como és uma alma pura e, por isso, como é que uma alma tão pura agora, seria outrora capaz de ser tão impura ao ponto de matar por querer?- Faz uma pausa. Depois, suaviza ainda mais a sua voz já suave.- Tu provaste-me quem és, Rafael, e isso é o mais importante: a pureza de cada alma.

- E agora, devo relembrar-te eu, minha...- Bela? Amada? Querida? Não, meu tolo apaixonado, um nome digno!- ... bondosa... devo relembra-te de como, passados tantos anos após a morte daquele pobre homem, persegui e infernizei a vida de uma pequena rapariga.- O punhal: está a voltar.- Eu ensinei o monstro que havia dentro dela a proclamar-se e, ao torná-la tão má e magoada quanto eu, criei também a maldade à minha volta. A maldade que se expande e expande até aos dias de hoje, criando...- assassinos, ladrões, malditos.-... assassinos, ladrões e malditos.

O silêncio volta e o punhal também. O olhar Dela é belo, as pestanas volumosas arrastando-se enquanto ela fecha e abre os olhos. O seu rosto começa a desfocar, perante os meus olhos repletos de lágrimas. Mas Ela continua uma Morte muda, com uma expressão neutra. Até que, por fim, fala.

- Engraçado.- Arqueia as sobrancelhas, numa expressão surpreendida, misturada com um pouco de assombro.

- Engraçado?

- Engraçado porque as almas, quando aqui chegam, encaram tudo isto como um julgamento. Esforçam-se por vincar a sua pureza, sempre com um pouco de desespero à mistura. «Eu sou bom, vê? Eu mereço voar até ao céu.» - Ela sorri, um sorriso meigo.- Porque elas ainda não sabem que o perdão nunca lhes será negado, então, sempre em defesa, tentam provar-me o quão boas são. Mas tu não. Tu reforças-me uma e outra vez o teu lado mau.- Suspira, agora outro minúsculo sorriso, desta vez sensato e compreensivo, a formar-se nos cantos dos seus lábios recheados.- Admite a ti próprio que és bom, pois apenas tu ainda não o viste.

E ela é sensata, toda ela feita da mais pura sensatez. Então como é que pode afirmar que eu sou... bom?

                                                                                          * * *

Bom. Tu és bom. Uma vozinha na minha mente sussurra-me a um ritmo alucinante. Tu salvaste almas e salvaste quem elas amavam.

Mau. Tu és mau. Outra vozinha, num coro estranho e mórbido, reforça gravemente. Tu mataste um homem inocente.

Tu foste um ladrão e um assassino.

Tu ajudas-te a Morte e as almas.

Tu transformas-te uma miudinha numa órfã.

Tu ajudaste a Diana a ser livre.

Tu criaste a maldade.

Tu redimiste-te.

A ferida do punhal sara, aprofunda-se, sara, aprofunda-se.

O Bem e o Mal, há alguma diferença entre eles? Porque, para mim, são dois fios entrelaçados, que formam um nó, um nó grande chamado Mundo. E o Mundo roda sempre, gira em torno de sim próprio, conhece e esquece as pessoas que o habitam.

- Tu habitaste-o um dia, outrora.- Murmuro, e ela observa-me atentamente.- Tu já habitaste o Mundo, já foste uma alma frágil. Minha bela Morte, quem foste tu? Uma alma boa, ou uma alma má?

Ela abre os olhos, surpreendida. Ela franze o sobrolho, tentando relembrar-se. E, por fim, ela abre a boca, disposta a contar a sua história.



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