13ºCapítulo

Atualmente - 9 de janeiro

Os envelopes não deixam margens para dúvidas: o pai de Madalena e Rodrigo era bastante assíduo no que dizia respeito a escrever ao filho. Infelizmente, as cartas ilustram apenas os momentos que um mês antes do incêndio haviam sucedido.

E nada mais, como se o que se havia passado não se importasse.

Mas agora, para além da minha curiosidade travessa quanto ao passado, também havia aquela curiosidade impertinente quanto à questão de Madalena: porque não havia ela recebido cartas do pai? Tê-las-ia guardado apenas para si, num sítio que, neste momento, estaria desfeito após o incêndio?

Não me parecia. Antes mais me parecia uma dedicatória do pai para o filho, uma dedicatória onde Madalena era excluída.

Mas porquê?

«8 de fevereiro de 2007 - Hospício Ferreira

Rodrigo,

Falta um mês! Um mês para nos reencontrarmos novamente, depois de tanto tempo. Não sei no entanto como me deixaram sair daqui para uma breve visita, visto que sou um dos pacientes menos lúcidos deste lugar, mas na verdade isso agora não é o importante. O importante é o nosso reencontro.

Tenho muitas coisas para te contar, nem todas felizes ou agradáveis: a maior parte são sussurros vindos do ar, gritos vindos de salas fechadas e risos vindos de fotografias. Olho para a janela do meu quarto e vejo pessoas que não são reais, com os seus sorrisos desumanos.

Depois do acidente muitos consideram que eu fiquei louco, mas eu não fiquei, filho, eu não fiquei. Eu apenas comecei a ouvi-los: vozes que, embora queira ignorar, têm a sua razão.

E não as posso ignorar. Não mais.


       

Com amor e carinho,
Do teu pai, Óscar.»


Folheio mais algumas cartas onde se encontram, em muitas delas, meros rascunhos desenhados à pressa: um homem sentado a uma mesa com um demónio a seu lado sussurrando-lhe algo ao ouvido; um homem a sorrir, com um sorriso feito de dentes afiados e diabólicos; uma mão feita de palavras odiosas a agarrar um coração enferrujado.

Mas, por entre todos esses rabiscos, encontro outra carta onde a caligrafia, embora não muito cuidadosa, parece conter pensamentos mais lúcidos.

«26 de fevereiro de 2007 - Hospício Ferreira

Rodrigo,

Chamam-me louco, dizem que as coisas que eu oiço não são reais. Mas que sabem eles sobre a realidade? Não passam de robôs a escrevinharem nos seus blocos de notas frases soltas: não têm sentimentos.

Mas eu já não tenho medo, sabes? Não tenho medos nem dos robôs insensíveis nem das próprias vozes desapiedadas que me assolam a mente: tenho aprendido a viver com ambos.

As vozes sussurram-me segredos, segredos que muitos não teriam coragem de guardar. E eu falo com elas e forço-as a pensar, se viver neste mundo cruel é melhor que partir.

«A minha história é desprezível e tão sôfrega que ninguém tem coragem de a ouvir.» Sussurra uma voz ao meu ouvido.

«A minha história é feliz, até ao momento em que abdiquei da paz para a voltar a viver.» Sussurra outra, por sua vez.

«E qual é a tua história, Óscar, qual é?» Pergunta ainda outra.

E eu conto-lhes a minha história: a história de um homem que tinha, e tem, uma família feliz e perfeita, que o amava e que ele, por sua vez, amava. No entanto, após um acidente que quase lhe tirou a vida, o homem ficou paralítico, num sofrimento diário. Após isso, começou a ouvir vozes, estas mesmas vozes, a troçarem do sofrimento dele e a compararem as suas próprias histórias dolorosas à história dele. E, depois disso, as pessoas vivas intitularam o homem de «Louco».

Mas que sabem elas sobre a loucura?

Se soubessem algo sobre a loucura, não me achariam um louco, não troçariam de mim ou fariam apontamentos, sempre com a mesma palavra gravada nas suas mentes: Louco, louco, louco.

EU NÃO SOU LOUCO.

Mas sei quem o é. A tua mãe, Rodrigo, a tua mãe de dia para dia, a jurar pelo que me contas, fica cada vez mais tresloucada, cada vez mais surreal. Ela acha que os seus pensamentos são a verdade, que tratar-vos assim tem uma razão de ser. Mas eu não. Eu oiço vozes, mas eu contenho-as na minha mente.

Apenas gritei uma vez, e foi porque o robô insensível que me interrogava no seu consultório não me deixou ouvi-las.

Mas eu agora oiço-as de uma forma límpida e retirada de ruídos. Oiço as almas perdidas: homens, mulheres, meninas e meninos. Mas também oiço uma mulher velha que não é decerto uma alma perdida e que, na hora do acidente, estava lá para me guiar até à paz, quando eu repentinamente regressei à vida.

Mas eu ainda posso ouvir as palavras dela, quando abri os olhos, de novo vivo e a ser levado para uma ambulância: «Ele irá ajudar-te, o meu Anjo irá ajudar-te. E não te esqueças de que, quando ele te ajudar, tu próprio o irás ajudar... guiando-o. Guiando-o até mim... Guiando o meu Am...»

Deixei de a ouvir nesse momento mas não para sempre. Sei que a voltarei a ouvir, em sonhos ou não, sinto que ela se está a aproximar de mim e que, mais que nunca, as almas também pressionam o meu sofrimento.

Elas querem-me guiar para um vazio sem fim.

Irei segui-las?

     

Com um carinho e um amor
Decertos não considerados loucura,
O teu pai, Óscar.»

Aquela mulher vestida de branco, por vezes velha, por vezes jovem. Aquela mulher que me faz sentir debaixo de água, ouvindo as suas palavras mas não podendo retorquir, dizendo o que sinto ou o que quero, pois sei que ela não me irá ouvir.

Mas agora, agora mudou tudo.

Pensava que seria eu a guiá-los, a levá-los até à paz, mas afinal... afinal alguém me irá guiar. Talvez este mistério possua outro significado que até agora não consegui enxergar.

Qual será? Quem será Madalena, quem será Rodrigo?

Quem será Emília ou Josefa, aquela velha que parece saber tanto?

Mas, mais do que tudo isso, outra pergunta se impõe novamente e eu já não a consigo ignorar, porque é a Morte, com o seu perfume doce e as suas palavras perspicazes: o que me quer ela dizer?

O quê?

E aquele palpitar quente no lugar onde um coração, enferrujado e feito de palavras odiosas parece repousar, começa a ganhar intensidade e o meu sorriso torna-se uma ténue linha nostálgica no meu rosto.

Estou condenado.

No entanto... guia-me Óscar, guia-me até ela. E depois...

Para onde quer que ela me leve.

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